domingo, 1 de novembro de 2015

Mulheres usam dados como arma para deter ‘epidemia de cesáreas’ Ativistas criam listas com as taxas de cirurgias feitas pelos médicos em várias cidades ANS desenvolverá um projeto-piloto que busca remunerar mais os partos normais

Laiz Zotovici descobriu nas lista que o médico era um 'cesarista'. / ARQUIVO PESSOAL
As novas regras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)para estimular o parto normal, que entraram em vigor em junho passado, uniram mulheres ativistas pela modalidade. As normas determinam que operadoras de saúde devem informar qual a taxa de cesáreas praticada por seus médicos credenciados. A partir disso, militantes se organizaram em mutirões para pedir os dados em diversos Estados e disponibilizá-los em planilhas na Internet para quem quiser consultá-los.
Com as informações em mãos, houve casos de mulheres que acabaram trocando seus obstetras no meio da gestação, porque as taxas de cesáreas do médico eram altas demais. Outras descobriram que seus médicos, que se diziam pró-parto normal, provavelmente as induziram para uma cesárea desnecessária. “Quando fui ter meu filho, há cinco anos, escolhi um médico que todo mundo na cidade dizia que era a favor do parto normal. Diziam que eu podia confiar. Duas semanas antes da data prevista para o parto, ele disse que o bebê não podia mais esperar e que eu não tinha dilatação suficiente. Acreditei e acabei em uma cesárea”, conta a fotógrafa Laiz Zotovici, de 35 anos. Há duas semanas, quando viu a lista com as taxas de diversos médicos da cidade, ela percebeu o que pode ter acontecido: “96% de cesáreas! Ele era um cesarista! Fui enganada”, indigna-se.
O incômodo dos profissionais tem explicação. Pela planilha é possível saber, por exemplo, que de 1.020 médicos de São Paulo cujos dados já foram disponibilizados, 720 praticaram as cirurgias todas as vezes que fizeram um parto. No Rio, dos 696 médicos cadastrados, 472 tem taxa de 100% de cesáreas.As listas têm gerado tanto furor que grupos de médicos já chegaram a ameaçar as mulheres de processo. “Eles afirmavam que as associações médicas iriam acionar o Ministério Público”, conta a obstetriz e ativista Ana Cristina Duarte. A própria ANS esclarece que não há nada de errado em divulgar os dados, já que eles são, de fato, públicos.
Em um país onde oito de cada dez mulheres que engravidam terminam em um parto cesárea na rede privada, os dados não deveriam espantar. Mas eles serviram como um alerta importante, porque podem indicar que a taxa de cirurgias é tão elevada porque a maioria dos médicos agenda as cesáreas de todas as suas pacientes, alertam as militantes.
“O único jeito de um médico fazer cesárea todas as vezes é marcando. E marcando para antes do tempo previsto do parto. Porque não é possível que ele não tenha tido nunca nenhuma paciente que entrou em trabalho de parto e já chegou ao hospital com o bebê prestes a nascer”, diz Duarte. “Isso mostra que as taxas são elevadas porque o médico quer organizar sua agenda e acaba marcando todos os partos precocemente”, complementa ela, que defende que as medidas adotadas pela ANS são inócuas e que a forma mais eficaz de reduzir as cirurgias seria proibir as cesáreas agendadas.
O tema é polêmico. Os que defendem as cesáreas agendadas afirmam que a proibição interferiria no direito de escolha da mulher. Mas o agendamento é condenado por muitos especialistas, que afirmam que é necessário, pelo menos, que a mulher entre em trabalho de parto para que o bebê nasça, já que antes disso o pulmão dele, que amadurece por último, pode não estar completamente pronto, aumentando as chances de que a criança tenha que ser internada em uma UTI neonatal.
As listas têm gerado tanto furor que grupos de médicos já chegaram a ameaçar as mulheres de processo
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirma que o país é o campeão neste tipo de cirurgias, não há motivos que expliquem uma taxa de cesarianas maior do que 10% a 15%. Como todas as cirurgias, elas só deveriam ser feitas quando há necessidade. Ou seja, quando a mulher entra em trabalho de parto e, por complicações, o parto se torna uma emergência.
Para tentar tocar no assunto, ainda que de forma bastante delicada, as normas da ANS que passaram a vigorar em junho também trouxeram algumas outras limitações para as cesáreas. Cirurgias só poderão ser marcadas quando a mulher completar 39 semanas de gestação –muitos médicos marcavam para 37 semanas, quando o bebê já deixa de ser considerado prematuro, apesar de nem sempre estar com o pulmão pronto. Os obstetras também têm que preencher um partograma, que registra informações detalhadas do trabalho de parto. Eles deverão apresentar ainda uma justificativa por escrito quando não for possível fazer o documento porque a mulher não entrou em trabalho de parto. Até agora, entretanto, nada mudou na incidência global de cesáreas do país, afirma a diretora de desenvolvimento setorial da ANS, Martha Regina de Oliveira, que ressalta que ainda é cedo para tirar conclusões.
A agência, no entanto viu indícios de sucesso em um projeto-piloto, implementado em 42 hospitais e 30 operadoras de saúde há seis meses. Ele identificou os procedimentos que levavam às cesáreas nessas unidades e adotou algumas medidas, entre elas a de esclarecer as futuras mães sobre os riscos de cesáreas desnecessárias, capacitar médicos e enfermeiros, reduzir intervenções dolorosas desnecessárias, como a episiotomia (corte cirúrgico na região do períneo, entre a vagina e o ânus), e substituir salas cirúrgicas por salas de parto. A taxa de partos normais nesses hospitais passou de uma média de 19,8%, em 2014, para 27,2%, em setembro de 2015.
“A gente tenta lidar com essa situação desde 2005. Durante esses dez anos só vimos as taxas aumentarem independentemente das ações implementadas. Isso mostra que a gente vai precisar mudar a forma como essa cadeia de atendimento está organizada”, afirma a diretora da ANS. Uma nova estratégia que será testada no grupo-piloto é mudar a forma como a remuneração dos partos é feita. Uma das ideias é que as operadoras passem a pagar mais pelo parto normal, para compensar a perda financeira que os hospitais terão ao reduzir as cesáreas. “Com menos cesáreas, se reduz também a quantidade de internações nas UTIs neonatais, que é algo caro. Os hospitais vão receber menos ao mudar para os partos normais. Por isso, é preciso reorganizar o financiamento e pagar mais pelos partos bem-feitos”, diz.

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