domingo, 29 de novembro de 2015

“Até aqui, a Europa agiu como se fosse invulnerável ao caos do mundo”


TÁBUA RASA. “Devemos olhar o mundo com olhos novos”
JOSÉ CARLOS CARVALHO

Dois dias após os atentados de Paris, Boubacar Boris Diop participou num colóquio na Fundação Gulbenkian sobre Media e Desenvolvimento. Sob o signo da influência dos meios de comunicação na construção da imagem do outro, Diop falou ao Expresso sobre os atentados de Paris. Tinha voado para Lisboa diretamente da capital francesa, onde também se encontrava a 7 de janeiro, por ocasião do ataque ao “Charlie Hebdo”.
Como avalia a cobertura mediática dos atentados de 13 de novembro?
O que mais me impressionou, no 7 de janeiro e no 13 de novembro, foi o contraste radical entre o silêncio da população, que se cruzava nas ruas sem reagir, chocada, e o barulho dos media. Sou também jornalista, sigo os media, leio, reflito e, enquanto observador não francês, vejo que este tipo de acontecimentos aprofunda a clivagem entre a população e o establishment oficial e mediático, que exorta à guerra e ao fim da liberdade dos inimigos da liberdade.
Coloca os media ao lado do Governo?
Sim, em França não vejo exceção. O que os media fazem é ir no sentido daquilo que eles pensam ser a opinião do público. Depois há a questão do medo. Os jornalistas são seres humanos e têm medo. A sociedade francesa tem tabus, coisas que toda a gente pensa sobre o Islão e sobre o mundo árabe e sobre os magrebinos - as “comunidades”, como eles dizem - e que saltam à superfície detonadas por situações como os ataques de Paris. Eu fico chocado e infeliz com este radicalismo islamita, as pessoas que o seguem são doentes. O que me choca nos atentados de 13 de novembro é a quantidade de jovens que foi morta!
Quer isso dizer que o Governo e os media franceses não representam a população?
Os media não cumprem a sua obrigação de esclarecimento lúcido. É preciso ultrapassar a leitura das consequências para mostrar os mecanismos. Há cidadãos baleados e ninguém explica porquê. Não se relaciona o presente com a invasão do Iraque em 2003, uma lição da História que não aprendemos. Em segundo lugar, penso que se deveria mostrar à opinião pública ocidental a ligação entre o global e o local, ainda que eu ache que a Europa e o Ocidente estejam prestes a descobri-la. Nós já o sabemos há muito tempo.
Nós, os africanos?
Nós, os africanos e todos os povos que foram conquistados, sabemos há muito tempo que podem vir pessoas de muito longe e transformar as nossas sociedades e as nossas vidas. Até aqui, a Europa agiu como se fosse invulnerável ao caos do mundo. É por isso que cada vez que há um debate sobre a guerra no Iraque a questão que se levanta é sempre sobre moral. A Europa considerava-se uma fortaleza. Destruiu-se a Líbia, a seguir a Síria e a consequência é esta crise de refugiados que os países europeus não querem. Mas que vão ter de aceitar por força do desespero. Esta crise vai mudar a forma que a Europa tem de olhar o mundo. É preciso que os cidadãos europeus pensem a política global em função da sua vida. Não se pode pôr o mundo a ferro e fogo e os europeus ficarem tranquilos a preocupar-se com a crise económica e com a idade da reforma.
O acolhimento dos refugiados diferenciou os governos das sociedades civis?
Por muito respeito que tenha pelos cidadãos comuns, que seguem os seus corações e não fazem cálculos políticos, estamos na quadratura do círculo. E tenho medo. É nobre e louvável o exercício dos cidadãos que acolhem pessoas e as ajudam, mas é um contributo limitado, principalmente quando os partidos políticos dos países cada vez mais dizem que essa situação não é tolerável. Ao lado dos cidadãos que os aceitam há os que dizem “não”. Tenho medo que isso faça explodir a xenofobia. Espero enganar-me. Mas acho que estamos a caminhar para o fim de Schengen.
O que se pode fazer para evitar a estigmatização?
Tem de se educar os olhares. Quando se é africano, oriental, indiano etc, nota-se logo. Quando se é branco é como se fosse normal. Como reconhecer o humano no outro? No fundo, é preciso fazer um esforço sobre si mesmo, considerando que somos todos humanos sobre a mesma Terra e que os acidentes da História nos fizeram percorrer percursos singulares... o que não faz que o sírio ou o africano seja um ser humano incompleto. Há duas formas de validação destes preconceitos: a espontânea, como a dos tipos nos estádios que gritam como macacos para gozar com os jogadores negros; e há o racismo sofisticado dos intelectuais, aquele que reina nos meios de comunicação.
O que quer o Daesh? Que futuro acha que tem a organização?
Todas as ideias de terror que conhecemos até hoje partiam da ideia de que os outros deveriam morrer e os terroristas sobreviver. Entrámos numa nova dialética em que jovens na força da vida se fazem explodir para levarem o maior número de gente com eles. Não compreendo! É inaceitável que a vida tenha perdido a importância. O Daesh pode ter métodos sofisticados, mas está condenado a ser destruído. Só conta com o apoio das monarquias do Golfo e como ataca em todas as direções - Europa, Japão, China, Estados Unidos... -, tem o mundo todo contra si. Eles sabem-no, por isso têm uma tática de terra queimada. Diz-se que eles utilizam novas tecnologias de forma muito sofisticada, mas os serviços secretos dos países fazem o mesmo. Toda a gente utiliza a internet e as redes sociais para manipular a informação, são meios tão poderosos quanto o provam o Wikileaks, o Snowden... Porém, há atores espantosamente silenciosos de quem não se fala e que deveriam estar no centro do debate. A chave da situação internacional está na Arábia Saudita e no Qatar, mas ainda são intocáveis. E entretanto, enquanto nos distraímos com o Daesh, a Al-Qaeda reorganiza-se e ganha tempo. Acho que a procissão vai no adro e não há líderes políticos à altura do desafio.

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