Praticamente todos os rastilhos de pólvora espalhados pelo avanço da pauta conservadora no Congresso têm como destino o Ministério da Justiça. Propostas como a maioridade penal, a revisão do Estatuto do Desarmamento e as novas regras para demarcações de terras indígenas se sucedem sobre o colo de José Eduardo Cardozo. Em meio às saraivadas de ruralistas, religiosos e da bancada da bala, ainda pesa a ameaça constante de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
O ex-deputado federal por São Paulo falou ao Correio na última quinta-feira, em uma sala de reuniões do ministério decorada por um armário e uma mesa importados do Palácio do Catete, no Rio, ambos da era Getúlio Vargas. A conversa ocorreu poucas horas antes de ele emitir uma nota cobrando explicações da Polícia Federal para a intimação de Luis Cláudio Lula da Silva às 23h. Alvo de suposta pressão do ex-presidente, ele negou relacionamento ruim com o cacique petista e garantiu ter dado parabéns a Lula pelos 70 anos. Por intermédio de um amigo, o advogado Sigmaringa Seixas. “Não costumo ligar (em aniversários), isso aqui é infernal. Normalmente, não ligo nem para parente, isso quando não esqueço os aniversários”, desconversa.
Cardozo conversou com o Correio ainda sob convalescença devido a um câncer na tireoide, que impôs a ele um delicado tratamento que incluiu três dias de isolamento total no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Com a sucessão de crises, o ministro da Justiça mais longevo do período pós-democratização, à beira de completar cinco anos no comando da pasta, dá indícios de fadiga. Admite ter colocado o cargo à disposição no fim do ano passado. “Achava que teria que ser avaliada a minha permanência sob a ótica da fadiga do material.” Com a rotina equilibrista de décadas entre a vida acadêmica e a política, o ministro aponta que uma eventual saída teria como destino a volta aos livros e à tese de doutorado em que versa sobre a crise no equilíbrio dos Três Poderes. Pela conjuntura política atual, não há campo para a pesquisa mais adequado do que o Ministério da Justiça.
Uma comissão da Câmara aprovou na semana passada a PEC da Demarcação (PEC 215), como fica o governo diante dessa proposta?
O governo tem uma posição muito clara, contrária à PEC 215. Ela transfere a iniciativa da demarcação para uma lei aprovada pelo Congresso. Isso é inconstitucional. A Constituição estabelece que as terras ocupadas pelos povos indígenas são da União com usufruto dos povos indígenas. Então, o entendimento de que ela pertence à União e são para o uso dos indígenas já está dado pela União. O que há em torno disso é uma definição técnica sobre o que é terra tradicionalmente ocupada pelos índios. Há divergências. Mas a demarcação não passa por um juízo político, mas técnico, antropológico, científico. Na medida em que o Congresso submeter a demarcação à aprovação de uma lei, o Congresso introduz na terra indígena um componente de discricionariedade política. Isso significa retirar uma competência exclusiva do governo, ofende o princípio da separação de poderes. É inconstitucional. Mesmo que o Congresso aprove, a meu ver, a inconstitucionalidade é clara.
A bancada ruralista está empenhada em aprovar essa PEC. Qual é a estratégia do governo para barrar a proposta ainda no Congresso?
Primeiro, eu acredito que essa PEC é ruim para indígenas e para produtores. Ela não é boa para ninguém. Embora alguns produtores achem que ela é boa, não é. Além de ser inconstitucional, ela acirra o conflito com os povos indígenas. Estou absolutamente convencido de que nada que passe pelo conflito gera alguma equação razoável para o problema das demarcações. Sou um defensor veemente da mediação para resolver esses conflitos, algo que faltou no passado, mas é inevitável agora. Isso porque a quase totalidade das terras que podiam ser demarcadas sem conflito, já o foram desde 1988. A partir de agora, sobraram situações conflituosas. Se não buscarmos uma pactuação para respeitar o direito de indígenas e produtores, o que eu tenho é conflito. Temos de discutir propostas que envolvam todos. O Senado aprovou uma PEC que prevê a indenização para produtores. O governo vê problemas nela também. Ela traz dificuldades, porque equipara a indenização à desapropriação. Fala em prévia e justa indenização em dinheiro para proprietários titulados. É estranho você fazer com que a União tenha de seguir um modelo de desapropriação para uma terra que já é dela. O que não quer dizer que não possamos discutir indenizações e outras alternativas que possam servir à mediação. Embora o governo não seja favorável à PEC 71, ele acha que o projeto pode ser utilizado como ponto de partida para um consenso. A própria indenização pura e simples não resolve. No Rio Grande do Sul, por exemplo, temos agricultores que não se satisfazem com a indenização, porque há uma relação de afetividade deles com a terra. Temos de pensar nas melhores formas pelas quais podemos evitar o conflito e garantir os direitos para todos. A PEC só coloca lenha na fogueira.
Quais são as alternativas?
Temos feito mesas de diálogo em todo o país. Mas é muito difícil ter um diálogo quando as lideranças dos dois lados não querem dialogar, mas impor derrota ao outro lado. E a mediação impõe a necessidade de espírito desarmado para avançar. O que nós propusemos como alternativas: em alguns casos, indenização, como no caso da Fazenda Buriti, em Mato Grosso; em outros casos, uma mediação provisória, como em Santa Catarina, onde o governo propôs ceder terra desapropriada para que os índios fossem assentados até a decisão final do Judiciário sobre o destino da área em disputa. Outra alternativa, que acabou derrotada pelo radicalismo de lideranças, surgiu no Rio Grande do Sul, em Mato Preto. Temos um laudo antropológico que propõe 600 hectares para os indígenas. Posteriormente, outro estudo da Funai reviu para 5 mil hectares o tamanho da área. Propomos ao Ministério Público, indígenas e produtores adotarem o primeiro laudo, e o governo indenizar os proprietários dentro dos 600 hectares e liberar o restante. Primeiro a proposta foi aceita, mas lideranças dos agricultores acirraram os ânimos, disseram que não se poderia assumir a existência de uma área indígena ali, pois isso implicaria em derrota para o Estado, e o acordo acabou inviabilizado.
Essa pauta conservadora do Congresso, em grande parte, passa pela sua pasta. Mas o governo está perdendo. Por quê?
Algumas situações ali colocadas transcendem a questão governamental. Há pessoas eleitas por bancadas específicas e a posição do governo acaba não decidindo o processo. Um exemplo é a questão do desarmamento, que preocupa demais o Ministério da Justiça. Todos os estudos mostram que o armamento gera violência. No entanto, alguns setores acreditam que a melhor forma de se combater a violência é armando a população. É evidente que existem interesses também da indústria armamentista por trás disso. Mas a questão é delicadíssima. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. E conseguimos combater algumas formas de violência com a aprovação do Estatuto do Desarmamento e as campanhas do desarmamento. Ao ser derrotado esse movimento, o Brasil viverá uma situação perversa de amargar um crescimento ainda maior dos seus índices de violência. O governo se empenhará ao máximo, com os parlamentares, para dialogar que essa postura é um equívoco que resultará na morte de milhões de brasileiros.
No caso da pauta conservadora, há a maioridade penal, que também representou uma derrota para o governo na Câmara. Não está faltando força política aos representantes do PT no Congresso?
Veja, é inegável que o governo passou por um processo de crise política que exigiu esforço para trazer coesão à bancada governista. Mas eu vejo que a maioridade penal é uma questão que fugiu a essa questão. Muitos parlamentares contrários ao projeto se sentiram pressionados pela opinião pública. Ouvi de alguns que eram contrários à redução que eles não queriam se indispor com 90% dos brasileiros que querem a redução. Acho que os setores contrários à redução da maioridade, entre eles o governo, têm falhado no dialogo com a sociedade. Há certos mitos, inverdades, que as pessoas repetem sem saber que são equivocadas. As pessoas não sabem que, hoje, há um conjunto de medidas para tratar o menor infrator. E que é melhor tratar essa questão sob essa lei do que colocar o menor infrator ao lado de adultos nos presídios que nós temos. Não conseguimos dialogar com a sociedade como precisávamos. E isso é um esforço que não só o governo, mas outros setores que sabem os riscos que uma pauta como essa traz para a sociedade deveriam estar juntos para refletir. Há certas questões que, pela ânsia de derrotar o governo num momento de turbulência política, fizeram com que setores da oposição que tradicionalmente têm uma postura humanista se uniram a esse tipo de pauta. Eu vi partidos oposicionistas, por exemplo, que nunca defenderam a redução da maioridade penal, defendê-la.
Por exemplo?
Eu vi setores do PSDB defendendo a redução da maioridade. Eu sei que boa parte dos líderes políticos desse partido nunca defendeu isso, ou seja, me causou espanto que o desejo tático de derrotar uma postura governista se desse ao preço de um valor que é caro para as vidas humanas.
Tem como judicializar o desarmamento? Porque no caso da demarcação tem uma brecha clara. No caso da maioridade, o governo já apontou brechas para contestar...
Eu não tenho a maior dúvida de que a maioridade é cláusula pétrea. Está na Constituição a inimputabilidade ao menor de 18 anos. E como a Constituição diz que direitos e garantias individuais não podem ser tocados, ao se reduzir a maioridade penal é evidente que eu tenho uma inconstitucionalidade. Já no desarmamento, eu tenho uma situação que não é tocada na Constituição. É evidente que podem haver discussões jurídicas sobre isso. Mas é uma discussão que acho que do ponto de vista jurídico não é tão clara quanto a redução da maioridade penal. Por isso, eu acho importante dialogarmos no Congresso Nacional e mostrarmos o grande erro que se coloca nisso.
Está faltando diálogo com a oposição?
Eu acho que é fundamental nós termos um diálogo com todos, inclusive com a oposição. Mas eu tenho sentido resistência de alguns oposicionistas. Justamente porque alguns desses líderes, eu acho que foram tomados pelo terceiro turno eleitoral desde o momento em que houve o resultado das eleições. Então, o que os move é recontar votos, o que os move é dizer que as máquinas eleitorais não captaram bem o desejo do povo, o que os move é o desejo de que as contas sejam rejeitadas para que se possa discutir um eventual impeachment. Essa é a pauta única. Eu me lembro de ver com alguns líderes oposicionistas o Ideiafix, das histórias do Asterix, que não mudava de opinião nunca. Ou seja, é aquela coisa, só pensa naquilo. E evidentemente, quando a pessoa tem a ideia fixa, só pensa naquilo, tudo o mais gira em torno daquilo. Então, você vai discutir situações econômicas para estabilidade do país? não, vamos derrotar o governo, porque quero enfraquecer o governo, porque quero agravar o problema, e quero impeachment. Tudo gira em torno da perda do mandato. Por isso, eu comprometo a economia do país, voto uma pauta bomba daquilo que eu nunca defendi, para isso eu voto a favor da maioridade penal para derrotar o governo. Eu acho incrível, embora respeite quem tenha ideias fixas dessa natureza, mas discordo veemente que toda a ação oposicionista se prenda à ideia fixa de atingir o mandato de uma presidente legitimamente eleita, mesmo que isso custe o preço da estabilidade econômica do país, custe valores humanistas, traga a morte milhões de pessoas, acho lamentável.
Quando o senhor fala em morte, refere-se a quê?
Ao desarmamento. E, se me permite, à redução da maioridade penal. Porque a mortalidade que temos no nosso presídio, só para vocês terem ideia assustadora, segundo dados do Depen, a possibilidade de uma pessoa contrair o vírus HIV é 60 vezes maior do que a possibilidade de contrair esse vírus uma pessoa que não está presa. É nessas unidades prisionais que vamos colocar os jovens? Para que, quando eles saiam, estejam contaminados com Aids?
Mas nesse caso, independentemente da redução da maioridade, já é um problema para o governo...
Já é um problema para os governos. E para a sociedade. O governo tem quatro presídios federais e está construindo o quinto. Eu sou muito criticado quando falo mal das prisões brasileiras. Como um ministro da Justiça pode falar mal dos presídios brasileiros, chamar de masmorras medievais? Não é porque eu virei ministro que a realidade mudou. Eu sempre falei isso quando era deputado. E a primeira questão que um homem público deve fazer é jamais escamotear ou encobrir a realidade. Porque a luz do sol constrói energias necessárias para a mudança. A realidade prisional do Brasil é inaceitável. E isso exige uma sensibilização dos governos, e da sociedade, para que possa entender a necessidade de que isso seja mudado. E não é reduzindo a maioridade penal que vamos resolver o problema. Só vamos agravar.
E quais são as alternativas, o que o governo pode fazer em paralelo para resolver esse problema?
O Brasil tem hoje a quarta população prisional do mundo. A maior são os Estados Unidos. A segunda é a da China, a terceira é a da Rússia. Todos três países estão aplicando alternativas penais para reduzir o encarceramento. Porque se deram conta de que o encarceramento gera violência reflexa, pela situação da pessoa quando sai, com mais dificuldade de reinserção. Os Estados Unidos, acho que reduziu 15% a população prisional no conjunto de anos. A China reduziu, a Rússia, 25%, a China, 9%. E nesses mesmos anos, comparativamente, o Brasil cresceu 33%. O país crescendo ainda aumenta a violência, mostra o caminho errado que se segue. Esse é o fato um. Fato dois: no Brasil, eu tenho hoje um deficit de quase 300 mil presos e tenho 400 mil mandados de prisão que tem de ser cumpridos. Ou seja, somando-se o deficit mais a quantidade de mandados que precisamos cumprir, é evidente que uma das alternativas é construir unidades prisionais, embora não goste, embora eu prefira construir escolas, tenho que atender essa demanda.
O ajuste atrapalhou?
Não. Não houve contingenciamento dessa verba. Agora, o que atrapalha é que o tempo médio para construir unidades prisionais são quatro anos. Mas tivemos problemas porque elas se recusaram a abrir os preços. Claro que você tem condições de construir pelo sistema que se convencionou chamar de pré-construído, pré-fabricado. Mostravam que as empresas credenciadas não podiam ser contratadas. Então, tivemos de investir somente nos métodos tradicionais. Vamos inaugurar as primeiras agora. Ao longo do governo Dilma, nós inauguramos as unidades prisionais contratadas pelo governo do presidente Lula, 20 mil unidades. Vamos entregar as 20 mil do presidente Lula, mais 40 mil da Dilma. Dá 60 mil. Isso não arranha o nosso deficit. E a presidente, na época, disse: trabalhe no limite da sua capacidade operacional, dou o dinheiro que você precisar. Mas, se eu ficar imaginando que é a construção que resolve o problema, é um equívoco. Porque não tem dinheiro, o custeio da unidade prisional é caríssimo. O que o Estado gasta para custear é quase o preço da construção por ano. É gravíssimo. Então, qual é a alternativa que nós temos? Constrói, mas temos de desenvolver alternativas e incentivar outras alternativas. Quais são? As penas alternativas e a monitoração por tornozeleiras.
Por falar em tornozeleiras, essas prisões temporárias da Lava-Jato, algunsministros do Supremo criticam. Como o senhor avalia essas prisões temporárias?
Eu não vou falar de Lava-Jato ou operações, eu falo em tese, tá? Eu fui relator, como deputado, da atual lei de medidas cautelares, a que trata de prisões temporárias e outras sanções. Em torno da metade dos presos é provisória, não foram condenados definitivamente. É um número muito alto, inclusive num padrão mundial. A lei é muito clara quando diz que a restrição à liberdade deve ser decretada apenas quando outra medida cautelar não deva ser aplicada. Se eu tiver outra medida cautelar com eficiência, eu devo aplicar. O que parece uma obviedade total, do ponto de vista de ser uma prisão cautelar, ou seja, a cautela, se puder ser atendida sem a restrição da liberdade, é correta. Se eu aplicar a medida cautelar mais gravosa, quando uma outra puder se aplicada, é um abuso. Em todo caso, se eu puder aplicar a alguém não tenha periculosidade, antecedentes ou não traga na sua conduta prejuízo por estar com outro tipo de sanção, eu tenho o dever de fazê-la. Essa é a minha concepção. Eu tenho uma visão mais garantista quando se fala em direito penal. Mas eu vejo que alguns magistrados não pensam assim. Eles preferem a privação da liberdade como uma forma, e muitas vezes eu vejo construções jurídicas artificiosas na linha de dizer que a pessoa fere a ordem pública, é um perigo a pessoa não estar atrás, seja por uma visão do direito penal, por algum tipo de pragmatismo do ponto de vista da investigação criminal. Quer dizer, a pessoa presa, ela talvez possa fazer delação premiada, isso eu, como professor de direito, sempre fui contra.
Então o juiz Sérgio Moro está extrapolando?
Eu não falo em casos concretos.
A Polícia Federal está extrapolando?
A PF jamais prende sem ordem judicial. Se o fizer, é ilegal. E eu não comento decisões judiciais concretas. Eu acho engraçado, porque muitas vezes eu ouço críticas do tipo: “Ah, a Polícia Federal prendeu”. Agora, prisão temporária, preventiva, busca e apreensão, condução coercitiva, isto é um pedido que o delegado faz, passa pela apreciação do Ministério Público e o juiz decreta. Então, você diz “a PF abusa”. Se o juiz autorizou, é porque o juiz reconheceu que não há abuso.
O senhor tem o controle da Polícia Federal?
É uma pergunta tão curiosa que exige um esclarecimento do que seja controle. Eu poderia falar, em tese, de dois tipos de controle da Polícia Federal, um das funções administrativas e outro das investigações. As funções administrativas estão submetidas ao princípio da hierarquia, que existe em qualquer órgão do Poder Executivo. O ministro da Justiça é o chefe maior da Polícia Federal do ponto de vista da atribuição administrativa e, portanto, eu afirmo: a atividade administrativa da Polícia Federal é controlada pelo Ministério da Justiça. Se eu detecto infração funcional, algum desvio de conduta, determino imediatamente a abertura de processo disciplinar. Tenho uma característica pessoal: sou muito duro, do ponto de vista disciplinar. A minha assessoria tem a orientação, não de ser arbitrária, mas de ser rigorosa, especialmente com polícias. Policial bom é o que cumpre a lei.
E a parte das investigações?
No que diz respeito a investigações, a lei é absolutamente clara, seja o Código de Processo Penal ou a Constituição: as investigações devem ser conduzidas de forma impessoal, não devem sofrer jamais algum tipo de viés político ou econômico, seja para perseguir inimigos, seja para não investigar o que se deve em relação a amigos. Os princípios da isonomia e da impessoalidade são constitucionais. Portanto, o ministro que controla a atividade administrativa jamais pode controlar ou orientar a investigação policial, que deve ser feita com autonomia.
O ex-presidente Lula não conseguiu entender isso até hoje?
Nunca recebi nenhuma crítica direta do presidente Lula. Tenho visto situações que os jornais expressam. Eu acredito que o presidente Lula compreenda essa situação, até porque ele foi, a meu ver, um dos grandes e principais responsáveis para construir uma Polícia Federal republicana e que age com autonomia. Recordo-me, inclusive, no período em que ele era presidente, houve situações envolvendo um irmão dele que tiveram uma busca e apreensão realizada pela Polícia Federal e ele, como estadista que é, afirmou que, efetivamente, naquela situação, a PF se afirmava como autônoma e era a prova de que ele estava construindo uma mentalidade republicana.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cancelou o próprio rito para o impeachment. Como o senhor observa essa aproximação entre ele e o governo?
Não acho que isso revele nem aproximação nem distanciamento do governo. Acho que é uma postura muito comum. Quando tenho uma decisão minha impugnada na Justiça, ou discuto na Justiça até as últimas situações recursais ou digo: “olha, reconheço que havia ilegalidades e não tenho condições de manter essa polêmica e revogo o ato que é atacado.” O que acho que o presidente da Câmara fez foi apenas revogar um ato que havia sido impugnado e cujos efeitos haviam sido sustados pela Justiça. É uma postura normal e comumente adotado na administração.
O presidente do PT, Rui Falcão, classificou como arbitrária a operação da PF e o mandado de busca e apreensão.
Não sei se é bem isso. No caso do filho do presidente Lula, não foi a PF que pediu a busca de apreensão. Há um certo equívoco de percepção não do Rui, não vi falando especificamente disso. O delegado responsável pela investigação não pede a busca de apreensão. Pede uma série de diligências. Aí, o Ministério Público Federal, com base no relatório da Receita Federal, pede a busca e apreensão, que é definida pela juíza, ou seja, não vejo ali como se possa imputar qualquer juízo valorativo a um eventual arbítrio da Polícia Federal quando ela sequer pediu. É claro que a PF é executora. Se a juíza pediu, quem executa é a Polícia Federal, mas não partiu da Polícia Federal esse pedido.
Ele colocou que houve uma perseguição, inclusive da PF. Não seria uma crítica em relação ao senhor?
Acho absolutamente correto que os partidos se manifestem dando suas opiniões sobre as questões, e o PT tem o legítimo direito de se manifestar. Se há um juízo crítico em relação à postura do Ministério Público, da Polícia Federal, da magistratura, da imprensa, é legítimo que o partido se expresse. Da minha parte, o que posso dizer é o seguinte: a minha função como ministro da Justiça é cumprir a lei. Vivemos num estado de direito. Obviamente, não me compete investigar juízes, isso é atribuição do CNJ. Não me compete investigar procuradores da República, isso é uma função do Conselho Nacional do Ministério Público e das suas respectivas corregedorias, mas se houver algum fato em que o Partido dos Trabalhadores, ou qualquer partido, ou qualquer cidadão ache que houve uma violação da lei, me apontem qual é o fato, façam uma representação, que eu mando apurar, como já fiz.
Não chegou, então, ao senhor nenhum relato de insatisfação de Lula com a presidente Dilma?
Li em jornais.
As críticas do presidente do PT e as notícias atingem o senhor, fala-se em substituições, a presidente falou alguma coisa com o senhor?
A presidente em nenhum momento pediu que eu obstasse qualquer investigação ou incentivasse uma investigação por ser de um adversário político. Nunca. Tenho absoluta tranquilidade em afirmar isso de forma peremptória. E digo mais: o papel do ministro da Justiça é garantir que a investigação se realize de forma impessoal. Tenho minha consciência absolutamente tranquila. É possível que pessoas não entendam isso. Vamos ser isonômicos: isso vale tanto para forças políticas que defendem o governo quanto para forças oposicionistas.
Em 2010, o senhor escreveu uma carta dizendo que não concorreria mais a cargo legislativo. Com essa pressão toda o senhor pensa em escrever uma carta em relação ao Executivo?
Não. Escrevi uma carta aos meus eleitores porque eu tinha tido dois mandatos de vereador, dois de deputado federal e cheguei à conclusão de que o sistema político brasileiro, da forma como ele está, além de ser gerador de corrupção faz com que muitas vezes uma pessoa que tem um comportamento ético corra riscos de ser visto como não ético quando essa nunca foia sua intenção. O custo das campanhas eleitorais, o sistema da forma como está posto, perdi totalmente o estímulo de disputar eleições. Eu até brincava no parlamento: gosto de ser parlamentar, mas disputar eleição nesse sistema não quero mais.
Em relação ao PT, quando era deputado, o senhor disse “não subestime a nossa capacidade de gerar crises para nós mesmos”. Continua pensando assim?
Ampliei um pouco mais essa visão. Hoje eu diria: “não subestime a capacidade do político brasileiro de gerar crises para si próprio.” Vejo isso na situação, na oposição, é impressionante como nós geramos crises para nós mesmos no mundo político. Um livro que sempre tive na cabeceira e comecei a ler recentemente é um da Barbara Touchman, A marcha da insensatez, em que ela mostra como a vida política da humanidade muitas vezes é marcada pelo insensato. O que é insensatez? É aquilo em que você tem informação, no momento histórico que você vive, você sabe que vai fazer algo insensato e faz. Por isso acho que a minha frase hoje é injusta em relação ao PT. Ela se estende a toda a classe política brasileira. Você sabe que é insensato, mas faz. A questão do impeachment, por exemplo, vejo assim.
Assim como?
Os oposicionistas sabem que não tem base jurídica para o impeachment. Eu sei que eles sabem que isso, de certa forma, prejudica o país. Eu sei que eles sabem que isso tem um efeito reflexo contra a própria oposição. E, no entanto, fazem.
A que se deve a baixa popularidade da presidente?
A uma série de fatores. Eu digo o seguinte: toda a situação de popularidade ou impopularidade se prende a um conjunto de fatores, sempre episódicos. Dilma, no primeiro mandato, teve grandes picos de popularidade. Hoje, não. No caso específico da presidente, tivemos fatores econômicos, políticos. Nenhum governo, por mais que tenha uma postura de combate à corrupção, quando a corrupção floresce traz uma sensação de mal-estar para o próprio governo. É inevitável. O evidenciado ato de corrupção traz um mal-estar social que é muito mais prejudicial para quem governa. Por isso muitas vezes até governantes honestos não queiram combater a corrupção como devem. Nesse ponto, justiça seja feita à presidente Dilma: em nenhum momento ela engendrou qualquer política que paralisasse ações de combate à corrupção. Ao contrário, sempre incentivou que a corrução fosse combatida.
E a ida e volta do Eduardo Cunha em relação ao governo?
Não comento tais questões, até por respeito à separação dos poderes. O presidente Eduardo Cunha, como presidente da Câmara, toma as condutas que acha que deve tomar, e ao governo resta ter uma relação institucional com o Legislativo, como do Judiciário.
Não há acordo com o presidente da Câmara para que ele não aprove o pedido de impeachment?
Não.
Existe uma determinação do partido em não avançar contra o Eduardo Cunha?
Eu sempre tive, desde a fundação do PT, uma forte atuação partidária. Menos em dois períodos: quando eu fui secretário de Governo da Prefeitura de São Paulo, e agora, aqui, como ministro. Quando eu me encontro no Executivo, eu não tenho como participar da vida partidária, assim é incorreto discutir posições da minha corrente ou de outra.
Em relação às críticas que têm sido dirigidas pelo partido, o senhor pediu para ser incluído na reforma ministerial?
A conversa principal que eu tive com a presidente foi em novembro do ano passado. E eu expus à presidente que em determinados casos tem uma fadiga de material inexorável. Eu observei a ele que, ao completar quatro anos, eu já seria um dos ministros com mais tempo em exercício no cargo. Acima de mim, em período contínuo, tem dois ministros da época da ditadura. Um é o Armando Falcão, e o outro, o Francisco Campos, mesmo assim não passa dos seis anos. Eu observei que, independentemente da minha vontade pessoal ou não, eu disse que era de uma lealdade ao projeto da presidente Dilma. E aqui ficaria o quanto ela quisesse, mas achava que teria que ser avaliada essa questão da minha permanência sob a ótica da fadiga do material que existe. Ela entendeu que eu deveria ficar. A presidente é quem decide quem deve ficar no governo.
Nunca houve um prazo para a saída?
Não. E posso afirmar o seguinte: na hora que eu sair do governo, a presidente Dilma Rousseff terá um cidadão que vai defender o seu governo, esteja onde quer que esteja. Porque eu acredito na honestidade e no projeto que ela defende.
Qual foi o momento mais difícil que o senhor enfrentou no cargo?
Talvez fosse melhor você perguntar qual foi o período mais fácil. Eu acho que no fim do primeiro ano de governo.
Antes das manifestações?
Sim, antes das manifestações de junho de 2013. Se for observar, eu tive várias situações atípicas. Eu tive a visita do papa, a Copa do Mundo, a Copa das Confederações, as manifestações. Só para citar a grosso modo situações atípicas.
Uma eleição mais conflagrada...
Uma eleição difícil, umas das mais disputadas da história. Estamos tendo aqui um período de investigação muito forte teve o mensalão, mas hoje tem um período bastante tenso por força das investigações. E temos agora as Olimpíadas, em que existe toda uma preparação do Ministério da Justiça. Mas acho que o período mais tranquilo foi o fim do primeiro ano, quando os principais programas já estavam desenvolvidos, os projetos das penitenciárias. Foi um período mais tranquilo. Fora isso...
O que o senhor achou da decisão da Marta de sair do PT?
Sinceramente, achei uma decisão incorreta dela, mas respeito.
O presidente Lula procurou o senhor para saber algo a respeito do filho? Ele telefonou?
Não.
O senhor não ligou para ele nem para dar os parabéns pelo aniversário?
Não (risos). Na verdade, eu tenho uma relação pessoal com o presidente Lula que, embora as pessoas em geral não acreditem, é muito boa. Converso com o presidente Lula e, em nenhum momento, ele me dirigiu qualquer crítica à minha conduta ou me fez algum tipo de observação que eu achasse que era inaceitável.
Mas por que o senhor não ligou?
Eu encaminhei o parabéns através de um grande amigo, o Sigmaringa Seixas, mandei um abraço.
O senhor achou que um telefonema poderia soar como provocação?
Não costumo ligar, isso aqui é infernal, normalmente não ligo nem para parente, isso quando não esqueço os aniversários.
Mas o do Lula é difícil esquecer, afinal, foi noticiado em todos os jornais.
Se você visse como é que é o dia a dia aqui, você entenderia. Mas o Sigmaringa me representou.
Academia e política lado a lado
Eu sempre tive um pé em duas canoas na minha vida, um lado acadêmico e um lado político muito fortes. Gosto de dar aulas e coordeno três cursos nas sextas e nos sábados. Eu sou professor da PUC de São Paulo, mas estou licenciado nesse período de ministério. E permaneço dando aulas na Escola Paulista de Direito, em dois cursos de pós-graduação, lato senso, de direito municipal, e um MBA de gestão governamental. E dou aula no Instituto Damázio, um curso de pós-graduação em direito público, além de gravar aulas para o IOB. Eu me filiei ao PT quando era estudante, em 1980. Depois, me tornei procurador da Prefeitura de São Paulo concursado e fui trabalhar na assessoria de uma vereadora do PT. Comecei a travar um contato muito forte com Luíza Erundina, quando ela virou deputada. Quando ela se elege prefeita, eu viro secretário de Governo aos 27 anos. Depois disso, disputei a eleição para vereador e não me elegi. No governo Itamar, eu venho para Brasília como chefe de gabinete da Erundina, na Secretaria de Administração Federal. Ela dura pouco no governo, quatro ou cinco meses. Depois, disputo novamente a eleição para vereador e sou o último da bancada, bato na trave, mas entro. Naquele período, teve a história, em São Paulo, da máfia das propinas, que envolvia acusações contra vereadores, deputados e o prefeito Celso Pitta. Presido a CPI da Máfia das Propinas, o que na época me deu muito destaque, visibilidade A minha trajetória é muito curiosa. Na primeira eleição, tive 9 mil votos, Na segunda, 16 mil votos. E depois 229 mil votos, a maior votação da história do Brasil para um vereador. Marta se elege e eu fico dois anos como presidente da Câmara. Depois, me elejo deputado federal e fico dois mandatos na Câmara. Eu gosto de Brasília, mas o bate e volta no fim de semana é desgastante.
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