A frente da Operação Jerichó, que mobiliza desde terça-feira (7/7) cerca de 247 agentes policiais, públicos e do poder judiciário no combate à pirataria no Mercado Popular da Uruguaiana, no Centro do Rio de Janeiro, a delegada Valéria Aragão, titular da Delegacia de Repressão a Crimes de Propriedade Imaterial (DRCPIM) conseguiu identificar novas modalidades de crimes que podem estar sendo cometidas no local. Uma das revelações, vindas através de denúncias, aponta indícios de participação de políticos na comercialização de produtos contrabandeados. Além disso, assaltantes e milicianos também estariam agindo no mercado e escondendo armas usadas nas suas ações dentro dos boxes.
A delegada vai encaminhar, na próxima semana, pedidos de investigações dos políticos citados por denunciantes durante a operação para as presidências da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e Câmara Municipal. Desde o início da operação esta semana, Aragão vem sendo procurada por ambulantes que se sentem ameaçados com novas práticas criminosas no centro comercial popular.
Segundo eles, comerciantes que alugaram boxes recentemente - o que pela legislação municipal já representa uma ilegalidade - estariam cometendo assaltos no Centro e vendendo as mercadorias nas barracas, sem a participação de qualquer intermediário. As armas usadas nos delitos estariam escondidas dentro dos boxes. Os camelôs contaram ainda para a delegada, que este seria o motivo da contratação de milicianos ligados aos seguranças que prestam serviço no mercado. As duas associações representativas dos ambulantes na Uruguaiana cobram, de forma voluntária, R$ 30,00 por mês de cada barraqueiro para manter os serviços de iluminação, limpeza e segurança nos 1.600 boxes. "O que eles me contaram é que agora escutam dos seguranças - 'olha, melhor pagar a mensalidade, porque o seu boxe pode ser saqueado'. É uma ameaça velada", conta Aragão.
Pelas denúncias dos camelôs, parlamentares teriam adquirido boxes em nome de "laranjas" para venda de mercadorias piratas ou até alugando estas barracas por até R$ 20 mil, dependendo da localização. As mais valorizadas ficam à margem da Avenida Presidente Vargas. Os políticos estariam ainda fazendo promessas de melhorias para a classe dentro do centro de comércio popular. A delegada ainda não sabe se todos os crimes denunciados têm relação ou são praticados isoladamente.
Em conversa com a equipe de reportagem do Jornal do Brasil, um ambulante do mercado, que pediu para não ser identificado, citou o nome de um político que estaria atuante no local e chamou a atenção para imagens de deputados colocadas em adesivos nas colunas e até em boxes do mercado.
Após várias inspeções, Valéria Aragão afirma não ter encontrado nenhuma prova dos crimes delatados no local, mas não descarta a hipótese dos envolvidos terem deixado o mercado com as pistas no momento da ocupação. O aumento da criminalidade no Centro do Rio nos últimos meses, especialmente a elevada sensação da população quanto o crescimento de assaltos, pode ter relação com este novo movimento dos bandidos no mercado da Uruguaiana, na opinião de Aragão.
A operação Jerichó
A ocupação do Mercado Popular da Uruguaiana, mais conhecido como mercado do Saara, teve início na última terça (7), com uma ação de entrada estratégica de cerca de 247 agentes especializados - 16 deles da DRCPIM, 48 policiais de outras delegacias especializadas, 20 oficiais de Justiça, 20 advogados da área de combate à pirataria, 30 carregadores e 5 chaveiros contratados, 3 peritos da Polícia Civil, 100 Guardas Municipais e cerca de cinco funcionários da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop). A ação começou a ser planejada há dois meses, com a participação de fabricantes de marcas pirateadas, que identificaram para a polícia as características fraudadas nos produtos, assim como intermediaram na Justiça os pedidos de investigação e mandados de busca e apreensão, como medida para evitar o vazamento da operação. Denúncias através do Disque-Denúncia também serviram de base na ação.
Segundo a delegada, neste período foram infiltrados agentes no mercado do Saara para confrontar as estruturas dos boxes com o mapeamento fornecido pela Seop. "Foi quando descobrimos os boxes que estavam completamente irregulares. Tinha de tudo, até puxadinho. A cada semana o mercada muda e se adapta a realidade que é melhor para eles [ambulantes]", conta Aragão, que já está na sua terceira operação policial no mercado, a primeira realizada no ano de 2007.
A operação Jerichó apreendeu até a noite desta sexta (10), quando foi feito o balanço final das apreensões, quatro toneladas de mercadorias pirateadas das mais diversas utilidades. Os produtos, que encheram quatro caminhões baú, foram encaminhados para a Cidade da Polícia, identificados por boxes e já periciados. Agora, eles podem ser destruídos ou doados, de acordo com a decisão da Justiça. Para Aragão, algumas mercadorias não devem ser doadas, já que podem prejudicar a saúde do consumidor, como óculos, brinquedos e tênis falsificados e fora dos padrões recomendados para uso. Nos próximos meses, a DRCPIM deve realizar novas operações na região. A Jerichó tem previsão de terminar neste domingo (12) no Saara, enquanto isso a área segue interditada e somente os agentes envolvidos na ação tem permissão para circular no mercado.
Criação do sistema integrado entre município e polícia a partir de novo mapeamento
Durante os quatro primeiros dias de operação a DRCPIM fez um novo mapeamento dos boxes no Mercado Popular da Uruguaiana, que será compartilhado com a Seop. Nesta listagem, os boxes que foram flagrados com mercadorias contrabandeadas estarão identificados e os donos não poderão mais se cadastrar na prefeitura. A Seop afirma que vai abrir um novo processo de legalização dos comerciantes e os camelôs já estão fazendo cadastramento em posto montado na sede administrativa da prefeitura, na Cidade Nova. Os boxes foram enumerados pelos agentes da Seop e aqueles inspecionados pela polícia estão com etiquetas nas portas. Neste sábado (11) e domingo (12), a delegada Valéria Aragão terá reuniões com os agentes da Seop para confrontar todas as informações e apresentar os novos dados cadastrais.
Na terça-feira (7) o secretário municipal da Ordem Pública, Leandro Matielli, se comprometeu em manter uma ação mais rigorosa por parte da prefeitura. Ele disse que os boxes que forem desocupados em função de irregularidades, serão sorteados e o novo ocupante terá que cumprir as exigências, conforme as normas voltadas para microempreendedor.
A delegada contou que vai propor ainda um sistema integrado de dados, que deve ser compartilhado entre polícia e prefeitura, com o intuito de manter sempre atualizado o mapa do mercado.
O mercado do Saara
O Mercado Popular da Uruguaiana foi erguido em um terreno da RioTrilhos, desapropriado pelo estado dos remanescentes das obras do metrô, no ano de 1994, durante o governo de Cesar Maia. A área foi cedida ao município para atender a um projeto de reordenamento viável dos camelôs que atuavam no Centro da cidade. De acordo com uma lei municipal, somente poderiam ser favorecidos com o sorteio dos boxes os ambulantes portadores de deficiências especiais, egressos do sistema penitenciário, maiores de 45 anos desempregados e idosos. Cada pessoa só teria direito a um alvará.
Ao longo de duas décadas, os proprietários não pagaram a taxa anual de Uso de Área Pública, no valor de R$ 136,04, acumulando uma dívida com o município que pode chegar a R$ 32 milhões. O retrato feito pela DRCPIM nos últimos dias mostra de forma inegável o crescimento desordenado do camelódromo do Rio, deixando para trás o antigo mapa da prefeitura. Além dos crimes denunciados, que apontam para o aluguel de barracas por valores exorbitantes, supostamente por políticos, ainda é visível aos olhos da população que transita pelo local os boxes sem fachada, vendendo produtos diferentes do anunciado na sua entrada, sem numeração, com fiação pendurada e oferecendo risco de incêndio, entre outras irregularidades. "Isso aqui [Saara] muda de estrutura a cada semana. Eles [ambulantes] vão se adaptando para vender mais, sem levar em conta a legislação e os perigos iminentes", diz Aragão.
Além do cerco da Jerichó na Uruguaiana
"Eu amo fazer este trabalho, é tudo de bom para mim. Quero entregar este mercado limpo para as pessoas de bem", desabafa Valéria Aragão ao terminar o balanço da operação na Uruguaiana, na noite desta sexta-feira (10). Ela mantém uma relação amistosa e até de confiança com a maioria dos camelôs do Saara, conquistada em nada menos que três operações policiais realizadas no decorrer de oito anos.
Na opinião da delegada, a questão da pirataria é tratada pelo trabalhador ambulante como "um crime menor", sem a análise de que este delito fomenta uma "cadeia do mal", que fortalece atravessadores e muitos outros criminosos. Desta forma, ela acredita que a própria sociedade alimenta, culturalmente, este tipo de crime, que sempre segue a rota internacional China, Paraguai, São Paulo e Rio de Janeiro, exatamente nesta ordem.
Em todos os dias da Operação Jerichó, Aragão atravessou o cordão de isolamento no mercado popular quase antes do sol nascer, mesmo tendo saída do local no dia anterior quase à meia noite. "É para pegar a troca dos agentes, gosto de acompanhar tudo", justifica ela, gargalhando. A rotina é sempre cumprimentar cada agente, assim como faz quando deixa o local.
A medalha com a imagem de Jesus pendurada em um discreto cordão já dá um sinal da sua fé, que ela demonstra carregar para o campo profissional. "Eu tenho fé que vamos mudar esta realidade. Esta área aqui é privilegiada no Centro, quero entrega-la com a minha equipe limpa para as pessoas de bem", destaca na entrevista, realizada em um dos vãos entres os boxes lacrados - única forma dela não ser interrompida por agentes e camelôs ansiosos por um anúncio de reabertura.
E foi com esta postura que Aragão conseguiu conquistar a confiança dos ambulantes e também adquiriu uma fama que corre nos quatro cantos do Saara. "Ela é magrinha assim, mas é incansável. Quando resolve dá bronca, sai de perto. Mas reconhecemos que ela está conseguindo dar jeito aqui e, por isso, confiamos no trabalho da sua delegacia", conta um camelô.
Apesar de não ser uma atribuição do seu cargo, Aragão faz questão de vistoriar o cordão de isolamento dos boxes todos os dias e reforçar com uma fita especial, cujo rolo já se transformou na sua pulseira preferida nos últimos dias, ela só retira do braço nas horas de dar entrevista para a TV. E quando um camelô reclama da sua permanência a frase já está pronta: "vocês não gostam da minha presença?", brinca ela arrancando risadas dos trabalhadores.
Para a delegada, este relacionamento foi o que proporcionou uma ocupação da área sem qualquer incidente violento, contando ainda com a cooperação dos ambulantes e uma promessa deles de regularizar os seus boxes. "Eles sabem que eu vou voltar outras vezes e levar cada investigação adiante, então, este espaço deve mudar para melhor daqui pra frente", aposta a delegada.
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