No comando da Câmara dos Deputados, um dos quadros mais importantes do PMDB precisa decidir se dá início a um processo de impeachment do presidente da República.
Esse cenário, que nos futuros meses pode vir a ser realidade para Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é conhecido pelo hoje deputado estadual Ibsen Pinheiro (PMDB-RS).
Presidente da Câmara durante o processo de impeachment de Fernando Collor, em 1992, o peemedebista, de 80 anos, disse à BBC Brasil não ver agora uma crise política que justifique afastar Dilma Rousseff. Mas que há, sim, potencial para isso.
Ele afirmou que Cunha deveria mostrar sua inocência em relação às acusações na Operação Lava Jato – segundo um delator, o peemedebista recebeu US$ 5 milhões (mais de R$ 15 milhões) de propina no esquema de corrupção na Petrobras, o que ele nega.
Gaúcho de São Borja, Ibsen é jornalista e advogado – foi promotor e procurador. Comandou a Câmara de 1991 a 1993, mas acabou cassado em 1994 após ser ligado ao escândalo dos Anões do Orçamento e ficou inelegível por oito anos. Hoje, preside o PMDB gaúcho.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Como o senhor vê esses movimentos que pedem o impeachment de Dilma?
Ibsen Pinheiro - Vejo muitos movimentos político-partidários que considero desautorizados pela realidade. Não acho que exista um clima de impeachment por qualquer critério técnico do Tribunal de Contas [da União], do Judiciário. Uma crise política, que gera às vezes efeitos inesperados, primeiro tem que se instalar como tal.
Estamos numa crise econômico-social e também administrativa, que é a incapacidade do poder público de responder à crise econômica. Não estão presentes os elementos da crise política. Há um grau de artificialismo nessas palavras de ordem. O que pode ocorrer é que as circunstâncias mudem.
BBC Brasil - São apontadas duas razões para afastar Dilma: uma é via TSE, pelas eventuais doações ilegais de campanha por empresas da Lava Jato, e outra via Congresso, caso o TCU condene as "pedaladas fiscais".
Ibsen - Não posso imaginar que uma circunstância tão dramática como o afastamento de um governo eleito ocorra por decisão de sete juízes do tribunal eleitoral ou por ministros do TCU, por uma questão técnica.
Qualquer questão de campanha se resolve nos limites da Justiça Eleitoral. Ela não tem o condão de interferir, nesse grau, na vida do país. Assim como uma decisão do TCU. O Congresso, ao examinar uma questão dessa natureza, não dispensa os aspectos técnicos. Mas os determinantes são os critérios políticos.
Não nego que haja um potencial que possa desembocar numa crise institucional. Alinho três fatores que podem produzir esse resultado: crise econômico-financeira, incapacidade do poder público de responder a ela e falta de gosto ou jeito da presidente para lidar com esses temas.
BBC Brasil - Vê chances de o Congresso afastá-la?
Ibsen - Lembro de que, em 1992, tive de interromper tudo para receber parlamentares australianos. A chefe da delegação pediu licença para abordar temas do Brasil, estavam muito ligados na nossa crise.
E perguntou: "o senhor acha possível que, após 20 anos de ditadura, o primeiro presidente eleito seja afastado? Acha possível somar dois terços de votos?". Respondi: “Dois terços, acho impossível. Mais fácil é a unanimidade.”
Numa circunstância de normalidade, não há dois terços para afastar um presidente. Agora, a anomalia resultante de uma crise política pode criar um ambiente tal que os votos [como] no caso de Collor sejam meramente simbólicos. O combustível foi a crise.
BBC Brasil - Como o senhor vê o papel do PMDB?
Ibsen - O PMDB está condenado a uma espécie de dupla militância. É parceiro do governo na sua sustentabilidade, mas não gêmeo univitelino, porque não é o centro do governo.
Com todo o seu tamanho, o PMDB é periférico. Tem compromisso com a ordem institucional, com o apoio ao governo na sua preservação. Mas, se o governo for atingido, talvez tenha de demonstrar que não é o governo.
BBC Brasil - A Lava Jato colocou o PMDB em posição desconfortável. Como avalia isso?
Ibsen - O que fica sob suspeita é toda a atividade político-partidária. Um pouco por suas distorções, e aí os partidos merecem o grau de culpa, mas também porque a repercussão das distorções da política é maior que a de outras áreas da vida institucional.
Nosso sistema público tem funcionamento precaríssimo. O Judiciário acumula processos numa quantidade absurda, não responde às necessidades da população.
A política é criminalizada num grau que não é injusto pelas deformações, mas é pela falta de isonomia, pois toda a máquina pública tem a eficiência comprometida.
BBC Brasil - Como avalia a presidência de Cunha na Câmara?
Ibsen - Em algumas coisas teve um papel positivo, como o de colocar a Casa para deliberar e trazer à pauta questões relevantes. Outra é a Câmara não agir como anexo do Executivo. Isto ocorreu com as presidências petistas.
É claro que não é preciso, nem possível, ignorar a pauta do governo, a vinda do Senado. Mas a Câmara deve ter independência.
Desagrada que ele tenha abandonado, na reforma política, o centro da questão, para ficar na periferia. Também não me agrada ver um ou outro ato de mera hostilidade ao Executivo.
BBC Brasil - Como vê o rompimento dele com o governo, acusando-o de prejudicá-lo na Lava Jato?
Ibsen - Não acho que isso tenha causado [um problema institucional] porque não mudou essencialmente o posicionamento dele. Sobre a investigação, não tenho meios de opinar. Não posso ser solidário sem saber dos fatos, mas também não posso condená-lo.
Entendo que, para aquilo que tenha de administrar como árbitro, não vá praticar facciosismos. Vai administrar com imparcialidade as relações com os demais poderes. Espero que assim seja.
Quanto às acusações, tem a seu favor a presunção da inocência. Mas, num clima dessa natureza, quase que se inverte o ônus da prova. É preciso, pelo menos ao agente político, mostrar sua inocência. Não basta dizer que a acusação tem que demonstrar a culpa.
BBC Brasil - Cunha deveria deixar a presidência da Câmara? A acusação combina com o cargo?
Ibsen - Pode até não combinar, mas o afastamento de alguém eleito pelos representantes do povo pode ser uma violação. Diferente é o ministro que, acusado, procura o presidente e diz: "meu cargo está à sua disposição, me afasto para não causar constrangimento".
Não é adequado o chefe de um Poder se afastar por uma acusação, isso seria um precedente perigoso.
BBC Brasil - O senhor é do PMDB, presidia a Câmara e comandou um processo de impeachment. Vê paralelo com o momento atual?
Ibsen - O paralelo que vejo é um pouco forçado, mas é uma projeção. O impeachment do Collor, em setembro, ou mesmo agosto, tinha uma lógica avassaladora, avançava com grande ímpeto. Mas, se recuarmos a março, abril, é parecido com o ambiente atual. Não havia clima para cogitar o afastamento.
O processo de impeachment que acolhi, se não me engano, foi o 14º ou 15º pedido. Os anteriores mandei arquivar. Alguns, muito bem fundamentados. E mandei arquivar, pura e simplesmente.
BBC Brasil - Por que?
Ibsen - Um processo de impeachment não é um processo penal, é político. Têm que estar presentes todas as circunstâncias do processo político, a representatividade dos autores do pedido, no caso os presidentes da ABI, OAB, o ambiente no país, a opinião pública. E estas condições, presentes em agosto, não estavam em março.
Qualquer tentativa de adivinhar seria um pouco arriscada agora. Se hoje não há, não sei se ali adiante não haverá as condições para um processo semelhante.
BBC Brasil - O rompimento entre Cunha e governo pode antecipar um processo de impeachment?
Ibsen - Não acho que o presidente da Câmara, na solidão do seu gabinete, que é onde tudo termina, deixe de perceber todas as implicações de um processo dessa natureza. Ninguém chega ao cargo para decidir as questões com seus humores.
É por isso, aliás, que esse tipo de decisão é solitária. O presidente da República, da Câmara, do Senado escuta. Mas decide sozinho.
BBC Brasil - Recorda-se do momento de sua decisão no caso Collor?
Ibsen Pinheiro - Lembro muito. Ouvi tanto lideranças políticas como assessores. Mas sempre tive clareza de que a decisão de acolher o processo era minha. A decisão de levar ao plenário e sobre o rito também. Por melhor que fosse a assessoria, e por mais competentes que fossem as opiniões políticas que recolhia, no fim é presidente da Câmara que decide. E essa decisão é política.
Cunha não vai decidir essas questões com seus humores. Pode até dizer algumas coisas que correspondam seus humores. Mas quem o conhece pode achar que isso é também um processo calculado de impacto. Acho eu. Na decisão ele será equilibrado como deve ser o chefe de um dos Poderes da República.
BBC Brasil - O senhor passou por um processo de cassação, ficou inelegível. Alguma mágoa?
Ibsen - Não fui vítima de uma conspiração que alguns tivessem urdido. Fui vítima de uma conjugação. Tinha alta visibilidade e não tinha poder político. Isto faz de você um alvo. É cogitado para presidente da República, é lembrado. Isso desperta em torno do seu nome o ambiente de conflito político. E você não tem a aparelhagem que é o cargo de líder, presidente. Voltei para a planície.
Isto numa análise do quadro. Numa análise pessoal, aprendi algumas coisas. Uma delas é que o ódio só faz mal ao seu depositário. Não a seu alvo. Considero-me um privilegiado, meu sofrimento se desfez em vida, e é tão frequente que isto só se supere no obituário.
BBC Brasil - Pensa em voltar à Câmara?
Ibsen - Não penso. Já não me candidatei em 2010, estava no mandato 2007-2011. Acho que tive um bom mandato, dediquei-me à Justiça tributária, especialmente à questão dos royalties.
Acredito que teria uma eleição relativamente tranquila, mas não quis voltar. Fui de lá afastado pela cassação. Acho que queria, talvez como sentimento íntimo, voltar e sair por vontade própria, e não pela alheia. Acredito que cumpri isso.
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