Os muitos poderes da mulher Kalunga
Muitos são os poderes da mulher Kalunga. A casa é só o centro de tudo. Em Engenho Novo, numa das construções de alvenaria do governo federal que pôs fim às habitações de palha e de adobe, a mãe Getúlia, 57 anos, a filha Elizete, 28, dão o rumo ao futuro de oito crianças que correm livres pela comunidade. Elizete amamenta uma das gêmeas, enquanto Getúlia interrompe a conversa para avisar da janela o risco que os rebentos ainda desconhecem.
As crianças crescem aprendendo com a sabedoria dos mais velhos. Elizete se lembra do que o pai Sirilo, um dos líderes da comunidade quilombola, ensinava. Ela é do tempo das lamparinas de querosene e das casas distantes nove quilômetros uma das outras. Luz elétrica foi novidade do século 21. A chegada da televisão, então, um evento. Orgulhosos, Sirilo e Getúlia levavam a filha para assistir ao “Globo Rural”, programa predileto, na única televisão do povoado.
Mesmo com as tecnologias da cidade grande que Sirilo vislumbrou (algumas casas têm antena parabólica e wi-fi), a menina Kalunga começa a trabalhar cedo, nas coisas da casa e da roça, como se fazia antigamente. Não foi diferente com Elizete e não será com as filhas pequenas.
Aos 12 anos, Elizete estava na lida. Isso indica que a mulher Kalunga sempre se pôs ao lado dos homens, no lar e na labuta. Ainda que eles fossem o chefes da família consagrado pela tradição. O único que saia do sítio histórico para vender a colheita nas cidades.
Hoje, os tempos são outros. As mulheres também avançam as fronteiras. Saem para negociar e avançar nos estudos. Algumas conduzem as vidas sozinhas, sem o homem ao lado. Elizete, por exemplo, morou em Cavalcante para complementar os estudos. Na sua época, aprendizado, na comunidade, só tinha até o fundamental. Hoje, está implantado o ensino médio.
O dom do fogão de Elizete foi passado por mãe Getúlia, uma das primeiras empreendedoras da comunidade. Quando os visitantes começaram a aparecer em Engenho Novo, curiosos de tudo, Getúlia e Sirilo abriram um restaurante para alimentá-los. O povo da comunidade não vai comer lá porque não precisa. Comida, aliás, nunca foi problema para os Kalungas. Se a fome apertar, pega-se um coquinho de Macaúba no pé e levasse à boca. Hoje, para experimentar a comida de Getúlia, é preciso ligar, com antecedência, e avisar a quantidade de turistas que subirá a serra. A lida com o mundo novo que se abriu fez de Getúlia uma líder política.
Mãe Getúlia anda chateada com os sucessivos conflitos em torno da terra Kalunga. Ela conta que os grileiros chegam, fingem-se de amigos e, depois, passam a rasteira. São capazes de até queimar a plantação de arroz. Com eles, os Kalungas estão conhecendo a maldade humana.
Mãe Getúlia está a par dos direitos dos quilombolas. Sabe que tem muita coisa que precisa ser concedida pelo Estado. Está tudo previsto na Constituição. Isso tira sua paz. Ela se preocupa com o futuro dos netos. Quer que eles cresçam na comunidade sem ameaças e num tempo melhor. Diz que aprendeu muita coisa ouvindo “A Voz do Brasil”.
Rainha do tempo
O gosto pelo trabalho para a mulher Kalunga corre na veia. Mãe de Sirilo e avó de Elizete, Juliana Rosa é reverenciada pela comunidade logo que os visitantes chegam ao Engenho Novo. Numa das fachadas das casas, há um grafite com a imagem dela, sorrindo e recepcionando quem chega.
Aos 88 anos, mãe Juliana está surda e perdeu a capacidade de se comunicar por meio das palavras. Permanece, no entanto, lúcida. É capaz de reconhecer as fotos de todos que passaram por sua vida. Enquanto o fotógrafo Daniel Ferreira, do Metrópoles, mostra no visor da câmera as fotos das entrevistadas, ela balbucia o som do nome de cada uma.
A vocação para o trabalho na roça se sobrepôs aos dons da casa. Mãe Juliana era diferente. Do seu jeito, quebrou protocolos. Virou as costas para o casamento. Quis ser mãe solteira e não criou os filhos.
As crianças de mãe Juliana nasciam e eram entregues aos criadores. O que ela queria era trabalhar fora. Sirilo ficou com a tia, mãe Joana, poderosa parteira e benzedeira. Certa vez, mãe Juliana teve um surto psicótico (dizem que é comum na região). “Perdeu o cérebro” como falam os quilombolas. De repente, não se lembrava de mais nada. Nessa hora, os filhos espalhados se agregaram em torno dela. Hoje, mãe Juliana vive numa das casas das crias, resguardada como uma rainha Kalunga que viveu à frente de seu tempo. Ninguém a julga por nada. Apenas passam lá, ajoelham-se e pedem a bênção.
Linhagem de professoras
Rosilene Santos Rosa, 28 anos, queria ser professora, dar seguimento à linhagem de educadoras Kalunga da família. Mas teve três filhos e separou-se do marido. O tempo que tem se divide entre as coisas da casa, da roça e o trabalho de guia turística.
Ela costuma trazer os turistas para conhecer a casa de adobe, segunda geração de habitações da comunidade. Como a maioria das mulheres Kalungas, Rosilene não sabe detalhes da história dos antepassados. O pouco que conhece é que os negros chegaram fugidos dos engenhos, trazidos pelos índios para a Chapada dos Veadeiros. Aqui, eles se cruzaram, os negros africanos e os índios brabos. O povo Kalunga é essa mistura. Os turistas chegam sedentos de histórias. Na falta de repertório, Rosilene acaba contando casos da própria vida.
Feliz por criar os filhos na comunidade que se orgulha de fazer parte, Rosilene exalta a união dos Kalungas, povo que não depende de dinheiro para sobreviver.
Donas das tradições
Rosilene é filha de Joanir Francisco Maia, 58 anos, uma líder Kalunga que comanda festas religiosas, é rezadeira, professora e parteira de mão cheia. Joanir é do tempo que não havia pontes ligando uma comunidade à outra. Quando o rio enchia, as crianças do outro lado ficavam sem estudar porque não tinham como chegar à sala de aula. É irmã de uma Kalunga histórica, Joselina Francisco Maia. É o nome dela quem batiza a escola municipal.
Joselina tinha uma luta incansável para educar as crianças. Brigava por esse direito. Morreu aos 27 anos de parto, cercada pelas parteiras, mãe Messias e mãe Joana, esta última viveu até os 112 anos. Ao redor, as mulheres não desgrudaram um minuto de Joselina. Foi muita reza, carinho na cabeça e remédios caseiros. Mas a professora não sobreviveu.
Nessa época, Joanir ensinava adultos a ler e escrever. Com a morte da irmã, seguiu a sina e se tornou professora de todas as classes. Em sala de aula, fala do pertencimento à comunidade, das histórias que sabe. Mas não são muitas. A memória oral dos Kalungas se perdeu no vão do tempo.
Joanir tem a preocupação de cuidar bem da menina Kalunga que cresce hoje entre facilidades, mas não pode perder a tradição de vista. É ela quem solta a Festa do Divino de sua casa, uma das manifestações culturais que fortalecem a comunidade. É também quem puxa as rezas na igreja. Em Engenho Novo, a fé é de base católica.
As crenças dos deuses africanos não venceram o tempo. Acredita-se na força dos santos e nos remédios da natureza. No azeite de mamona, essencial para o parto das mulheres. Disso Joanir entende. Ela mesma tirou com as próprias mãos o filho do seu ventre. O rebento vingou.
Donas das tradições
Marcilene Rosa dos Santos Damasceno, 17 anos, nasceu em Brasília e veio com poucos dias para o Engenho Novo. Ela tem um orgulho que não cabe em si em ser negra e Kalunga. Quer ser médica e atender a comunidade. Não conhece muito a rotina da roça. A família tem dado a ela a chance de se dedicar aos estudos. Integra uma novíssima geração que se comunica com o mundo de fora sem perder a raiz. São crianças que não nascem mais pelas mãos das parteiras, porque agora há carros na comunidade. É possível chegar aos hospitais de Cavalcante. Antes, só no lombo dos animais. Era arriscadíssimo.
A função das parteiras, durante séculos, foi a de manter a população Kalunga preservada. Em que pese todos os riscos durante o nascimento, elas eram as guias da vida que explodia em choro de felicidade. Luzia da Cunha, 43, genitora de 10 filhos perdeu a mãe no parto, mas teve todos os seus rebentos naturalmente, nascidos pelas mãos das parteiras. Com Maísa da Cunha, 24 anos, uma de suas filhas, a história mudou.
Entre tantas atividades, Luzia e Maísa são guias turísticas e estão atentas às mudanças. Luzia aprendeu a fazer artesanato com fibra de banana e folha de buriti e Maísa tenta descobrir os segredos Kalungas para se diferenciar com os turistas.
Ela conta a história da planta Kalunga, uma das versões que batizaram o seu povo. "Kalunga era uma erva poderosa que curava malária." Comunicativa, acredita que a força da mulher Kalunga está em se manter e conservar as raízes. Talvez porque saiba que o homem Kalunga é do tempo e a mulher, do tempo e da casa.
Ela conta a história da planta Kalunga, uma das versões que batizaram o seu povo. Kalunga é uma erva poderosa que curava malária. Comunicativa, acredita que a força da mulher Kalunga está em se manter e conservar as raízes. Talvez porque saiba que o homem Kalunga é do tempo e a mulher, do tempo e da casa.
O saber universitário
Diracine Césario dos Santos, 29 anos, constrói a nova história da mulher Kalunga. Ela é professora e universitária. Estuda na Universidade de Brasília, em Planaltina. Não é a primeira Kalunga. Há muitas outras que estão discutindo o papel do seu povo. Hoje, fica entre a comunidade e o campus da Faculdade de Educação. Desenvolve uma importante pesquisa sobre as parteiras.
Diranice hospeda a tia, mãe Francelina, aquela senhora obcecada pela cobra que armou a tocaia no rio. Na hora de ser fotografada, todos pedem para que mãe Francelina ponha um sorriso no rosto. No lapso de lucidez, ela diz:
Daniel Ferreira / Metrópoles
A mulher Kalunga, aconchegante com quem chega, sabe que o riso fácil não cabe em sua história.
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