Em tempos de polarização da política e do debate econômico, o professor da Fundação Getúlio Vargas Luiz Carlos Bresser-Pereira se recusa a se enquadrar em categorias preconcebidas.
Amigo pessoal e ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso (FHC), ele apoiou Dilma Rousseff nas últimas eleições.
É um orgulhoso desenvolvimentista (linha que defende ação ativa do Estado na promoção do desenvolvimento econômico), mas também um defensor do ajuste fiscal que está cortando o orçamento da saúde e educação.
Seu apoio ao governo também não o dissuade de classificar a gestão Dilma como "desastrosa" em muitos aspectos.
Nem de acusar Luiz Inácio Lula da Silva de promover um "populismo cambial" ao manter o dólar a R$ 2 para garantir a eleição de sua sucessora e apaziguar a classe média, que hoje, segundo ele, teria desenvolvido um ódio "profundo" e "irracional" ao PT.
"O dólar a R$ 2 foi o pior legado de Lula, a bomba que ele deixou para Dilma", afirma. "Fala-se no superávit primário, mas até 2012 não tivemos problema nessa área (...) O que arrebentou a economia foi o câmbio, que provocou uma desindustrialização."
Aos 81 anos, Bresser já esteve no PMDB e foi um dos fundadores do PSDB. Foi ministro da Fazenda do governo José Sarney (quando um plano com seu nome falhou no controle da inflação), ministro da Reforma do Estado no primeiro mandato de FHC e de Ciência e Tecnologia no segundo.
Ele falou com a BBC Brasil em seu escritório, em São Paulo, dias antes de receber o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano da União Brasileira de Escritores.
BBC Brasil - Muitos de seus colegas desenvolvimentistas estão criticando o ajuste fiscal. Como vê essas críticas?
Luiz Carlos Bresser-Pereira - São críticas dos desenvolvimentistas populistas ou keynesianos vulgares. Acredito que o Estado deve ter uma intervenção moderada na economia e uma política macroeconômica ativa.
O mercado é uma maravilha para coordenar setores competitivos, mas os baseados em monopólios ou quase monopólios, como o de infraestrutura, precisam de uma intervenção forte e planejada. Mas não há nenhuma razão para eu defender a irresponsabilidade fiscal, que o governo possa gastar dinheiro sempre que quiser. John Maynard Keynes (economista britânico) deve estar rolando na cova de irritação diante dessa irresponsabilidade que a gente vê em nome dele.
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BBC Brasil - O governo está cortando onde deveria?
Bresser - Nenhum ajuste corta no lugar certo. Estamos reduzindo o investimento (público), que já estava baixo. O governo está cortando onde pode, no fundo é isso. Defendo o retorno da CPMF: é um imposto pequeno, necessário.
Mas o ajuste é o que tem de ser feito. Por outro lado, não sou a favor desse aperto monetário. Sei que a inflação está alta, mas com essa recessão não precisamos de juros mais altos para segurar os preços – o que, além de ser um empecilho para a retomada dos investimentos, têm um custo financeiro enorme.
O Banco Central está ‘descontando’, como dizem as crianças. Em 2011 fizeram uma redução grande na taxa de juros que não deu certo. A inflação subiu, a Dilma teve que voltar atrás e eles ficaram com a imagem prejudicada junto ao sistema financeiro. Agora, disseram à sociedade brasileira: ‘vocês vão ver’. E estamos vendo.
BBC Brasil - No seu livro A Construção Política do Brasil (Editora 34), o sr. fala das coalizões de classes que se formaram no país. A Lava Jato colocou em evidencia um problema estrutural da relação do Estado com o grande empresariado ou o que revelou foi uma exceção?
Bresser - Não vejo nada de estrutural nisso. É natural que existam estatais e um Estado que faz compras e, nesse quadro, infelizmente, sabemos que a corrupção é grande. Nesse caso, ainda temos um fato adicional: o partido de esquerda no poder fez uma coisa que normalmente os partidos não fazem. Só posso entender isso como uma loucura stalinista que atingiu uma minoria do PT, mas o fato é que algumas pessoas com posição de líderes, especialmente o José Dirceu, inventaram essa história de que era legítimo no capitalismo você financiar um partido com dinheiro de corrupção.
Quando você financia uma campanha específica é diferente. É menor. A coisa ficou muito grande e foi um desastre. E está desmoralizando um partido que tem pessoas admiráveis e que dedicaram sua vida para fazer um Brasil melhor.
Mas uma coisa boa dessa crise é que ela não foi denunciada por políticos, nem pela imprensa, e sim pelo próprio Estado. O Ministério Público já tem liberdade há muito tempo. E a partir de 2004, houve uma série de mudanças que deram à polícia mais autonomia e melhores salários. Hoje, temos órgãos do Estado capazes de defender o Estado. O que mostra que nossa política vai mal, mas o Estado não vai tão mal assim.
BBC Brasil - Mas se há uma ideologia de que um Estado forte deve defender o interesse dos grandes empresários, não se cria muitas oportunidades para associações espúrias?
Bresser - Essa é a tese liberal: o Estado tem de ser pequeno para evitar a corrupção. Mas sabemos que a corrupção dentro das empresas também é grande.
Não sou a favor de um Estado imenso. A grande maioria dos investimentos tem de ser feita pelo setor privado. Agora, o Estado tem um papel social fundamental - e para isso precisa de recursos. Estão querendo até acabar com o SUS (Sistema Único de Saúde), imagine.
O sistema de saúde pública é uma grande conquista da democracia e do capitalismo. O consumo coletivo (de serviços de saúde) não é só mais justo, é mais barato e eficiente. Na Europa, o total gasto com saúde é de 11% do PIB, por exemplo. Nos EUA, onde o serviço é baseado no setor privado, é 17%.
BBC Brasil - O sr. apoiou a Dilma na campanha. Ela prometeu uma política econômica e ao ser eleita aderiu a outra, fazendo cortes até em áreas como educação e saúde. Houve estelionato eleitoral?
Bresser - De nenhuma maneira. A Dilma cometeu erros graves como a irresponsabilidade fiscal, que atribuo ao desespero. Não conseguia fazer o país crescer e, de repente, acreditou na bobagem de fazer uma política industrial agressiva.
Mas, em outubro de 2014, quem estava prevendo que o Brasil entraria em uma gravíssima recessão econômica, com queda de 3% do PIB? Ninguém. Não sabíamos. A economia é uma cienciazinha muito modesta, só é perfeita na cabeça dos economistas ortodoxos. Só se começou a falar em crise em dezembro.
As pessoas dizem que ela (Dilma) passou a fazer o que “a direita quer”, mas a mudança de política mostra algo admirável: ela reconheceu o erro. O que ela é, de fato, é incrivelmente incompetente do ponto de vista político. Em dezembro ela já devia estar sabendo que a situação das contas estava ruim e precisava reajustar o que havia desajustado.
BBC Brasil - Por que a crise chegou a esse ponto?
Bresser - Essa crise está ligada a uma grande insatisfação da classe média tradicional, que nos anos 80 liderou a transição democrática. Tivemos 35 anos de baixo crescimento e (mais recentemente) uma clara preferência pelos pobres. O PT não traiu os pobres, foi coerente nesse ponto, embora também tenha deixado os ricos ganharem muito dinheiro. Então os ricos e os pobres ganharam e a classe media ficou de fora.
Quando o PT começou a se perder, primeiro com o mensalão e depois com o problema da expansão fiscal, começaram as manifestações. Essa classe (média) desenvolveu um ódio profundo ao PT e o governo. Uma coisa irracional, perigosa e antidemocrática.
A democracia é uma forma de governo de pessoas que lutam entre si, mas é uma luta de adversários. De repente nos vimos em uma luta de inimigos. Ainda é um setor minoritário, mas há um setor da sociedade brasileira que radicalizou para a direita e passou a adotar posições pior que udenistas, fascistas.
BBC Brasil - O sr. já tinha defendido essa tese do ódio das elites ao PT. Mas a Dilma tem uma aprovação em torno de 10%. Não é exagero falar que a rejeição vem só da elite e classe média? 90% da população é elite?
Bresser - A Dilma de fato perdeu popularidade em todos os setores. Quando ela percebeu que tinha errado tinha de falar para a imprensa: “Olha, fiz uma reavaliação, algumas coisas não deram certo e vou ter de mudar a política. Peço desculpas por não ter previsto isso antes.”
Em vez disso, depois que ela foi eleita, desapareceu, e só apareceu de novo ao lado do (ministro da Fazenda Joaquim) Levy, já com a política definida e sem explicações. Só reconheceu que errou há um mês. Como disse, ela é muito inábil politicamente. Isso dificulta a sua vida. E a nossa.
BBC Brasil - Como o sr vê o debate sobre o impeachment?
Bresser - Acho que é resultado desse ódio (da classe média ao PT) e do oportunismo de alguns deputados, que se sentem ameaçados por essas investigações (de corrupção). Resolveram contra-atacar.
E o contra-ataque se faz à presidente, porque ela não barrou a Polícia Federal e o Ministério Público (nas investigações). Mas o debate amorteceu. O grande problema do país hoje é se a Dilma consegue levar o ajuste fiscal adiante.
BBC Brasil - Quais seriam as consequências econômicas de um impeachment?
Bresser - Seria um caos danado. Até eu iria para a rua. Nunca vou para a rua, sou um intelectual, mas se houvesse um impeachment com as razões que eles tem aí, pedaladas, TCU, eu iria. Agora, se descobrirem algum crime que a Dilma praticou é outra coisa. Como no caso do Collor.
Acho que as elites brasileiras, e as empresariais principalmente, perceberam que isso (impeachment) não adiantaria nada. Poderia até piorar a crise. Então de um ponto de vista conservador, eles são contra.
BBC Brasil: É uma crise de um modelo de desenvolvimento?
Bresser - A crise é por falta de modelo. Não temos modelo desde os anos 80. Estamos semiestagnados e sem saber o que fazer.
BBC Brasil - Houve um momento em que muitos intelectuais acreditaram que o Brasil estaria criando um novo modelo. A Economist chamou de Capitalismo de Estado, alguns acadêmicos, de um desenvolvimentismo repaginado.
Bresser - De fato houve quem visse um novo modelo e quem tenha se entusiasmado. A própria Economist colocou o Cristo Redentor decolando na sua capa. Foi um grande equívoco. O que houve no Brasil entre 2005 e 2010 foi um boom de commodities, que fez as exportações triplicarem. Isso enganou os economistas da esquerda e da direita.
BBC Brasil - É possível ter um governo um governo de esquerda e um Estado forte com equilíbrio fiscal?
Bresser - Um ajuste fiscal é necessário para por as finanças do Estado em boa forma, uma condição para um Estado forte, capaz. Para que (esse Estado) não quebre, nem dependa de credores. O mesmo vale para o Estado-nação, que inclui o setor privado: você fica devendo para outros países quando tem deficits em conta corrente (que inclui importações e exportações e transferências unilaterais). Em 2014, esse deficit foi de 4,6% do PIB. Uma loucura.
Esse problema começou há algum tempo. Eu participei do governo Fernando Henrique, que é meu amigo, mas descobri que discordava fortemente da parte econômica dele. Foi no governo Itamar (Franco) - sem duvida, com a liderança de Fernando Henrique - que o Brasil estabilizou seus preços. Mas os oito anos do governo FHC foram muito ruins, o crescimento foi baixo. Ele começou dizendo que o Brasil cresceria com poupança externa, ou seja, com deficit em conta corrente financiado com empréstimos (lá fora) ou (atração de investimentos de) multinacionais. Naquela época não havia arcabouço teórico para criticar isso. Fiquei assistindo. Depois passei a fazer a crítica a esse esquema.
BBC Brasil - Como?
Bresser - A questão é que quando o dinheiro entra no Brasil, o câmbio aprecia (o real fica mais forte em relação ao dólar). Mas os investimentos caem, porque sem um câmbio competitivo os empresários não têm acesso a demanda efetiva (os consumidores preferem importados). Portanto, a taxa de investimento depende do câmbio. Mas dizer isso é uma revolução.
Nos países em desenvolvimento há uma tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio que leva o país de crise em crise. Na crise, a taxa cai, depois começa a subir de novo. Até que um dia a dívida começa a aumentar, os credores se preocupam, há um efeito manada e o país quebra. É o ciclo.
BBC Brasil - Ou seja, o sr. está dizendo que se um jantar em São Paulo está mais caro que um em Nova York algo vai mal, uma crise se avizinha?
Bresser - É isso.
BBC Brasil - Que patamar do dólar é ideal para o crescimento?
Bresser - Hoje deve estar perto de R$ 3,8. Já foi R$ 3,6, mas teve a inflação. Mas agora está no lugar certo porque houve uma crise. Não uma crise total, mas uma semicrise. Em 2002, a taxa a preços de hoje foi a R$ 7. Agora foi a R$ 4 - e já está caindo.
BBC Brasil - O sr. é bastante crítico do governo FHC nessa questão. E o governo Lula?
Bresser - Foi um desastre do ponto de vista cambial. Lula recebeu o governo com uma taxa de cambio que seria hoje equivalente a R$ 7 por dólar. E entregou para a Dilma a uma taxa de R$ 2, R$ 2,10. Com isso segurou a inflação, aumentou os salários dos trabalhadores e elegeu sua sucessora. Agora, para Dilma receber essa taxa de R$ 2 foi receber uma missão impossível. Como a Dilma não é o Tom Cruise - é uma mulher corajosa, meio turrona, nem sempre muito brilhante -, fez o que pode. Não conseguiu o desenvolvimento econômico nos primeiros dois anos de seu primeiro mandato e depois foi irresponsável fiscalmente. E aí foi um desastre.
O dólar a R$ 2 foi o pior legado de Lula, a bomba que ele deixou para Dilma. Fala-se no superavit primário (economia que o governo deve fazer para pagar juros da dívida), mas até 2012 não tivemos problema (nessa área). A própria Dilma só se perdeu nos dois últimos anos, quando inventou as desonerações e outras coisas do tipo. A história que contam do déficit estrutural, isso e aquilo, não existia há três anos. O que arrebentou a economia foi o câmbio, que provocou uma desindustrialização.
O Brasil por muito tempo teve um projeto nacional que se resumia nessa palavra: industrialização. Chegamos a ter 28% de participação da indústria no PIB. Hoje é 10%. Foi uma queda brutal e prematura. De duas, uma: ou nossos empresários são todos incompetentes, ou a taxa de câmbio inviabilizou seu negócio.
Brasil - A quem interessa uma taxa sobrevalorizada?
Bresser - Aos rentistas, aos interesses estrangeiros.
Isso é o populismo cambial. Temos o populismo o fiscal, que é o Estado gastar mais que arrecada, e esse cambial. Quem percebeu esse processo primeiro foi o economista argentino Adolfo Canitrot, nos anos 70.
Quando você aprecia o câmbio, todos os rendimentos, salários, lucros e dividendos, aluguéis, tudo vale mais em dólar. Como muitas mercadorias em uma economia aberta têm seu preço impactado pelos preços internacionais, você fica mais "rico". Os eleitores ficam felicíssimos. E é mais fácil para um político a se reeleger. O Fernando Henrique fez isso – e o Lula fez mais.
Mas logo há uma desvalorização (do real), o salário cai de qualquer maneira. Tudo fica mais caro. A classe media perdeu muito com a queda do real. Continua viajando para Miami, mas menos. A quantidade de brasileiros que comprou casas lá... uma tristeza.
A perda da ideia de nação mais essa preferência pelo consumo imediato são dois males da sociedade brasileira que precisam ser repensados. O Brasil só voltará a crescer se fizer essa crítica da taxa de cambio apreciada.
BBC Brasil - Em 2008 o senhor previu o fim da onda neoliberal, mas países que apostaram no desenvolvimentismo enfrentam problemas. Brasil, Venezuela, Argentina… Fala-se em refluxo da esquerda na região.
Bresser - Tivemos uma crise do capitalismo americano em 2008 que expandiu para o europeu. Foi uma crise do liberalismo econômico, porque foi a aplicação de suas teorias que deu nesse desastre com o qual o mundo sofre até hoje. O neoliberalismo continua em baixa, mas isso não significa que caminhamos para um desenvolvimentismo progressista.
Agora, sobre a América Latina, a Venezuela teve um presidente corajoso, com vontade de salvar o país e beneficiado pela alta do petróleo, mas que adotou um populismo violento que está liquidando com a economia local. Antes disso, os liberais sempre governaram a Venezuela e foi um fracasso atrás do outro. Apenas as elites ganhavam. O (ex-presidente Hugo) Chávez pelo menos melhorou o padrão de vida da população. Mas o mal do populismo é muito forte. Ele tinge tanto a esquerda quanto a direita - mas mais a esquerda e os desenvolvimentistas que os liberais.
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