Um massacre de posseiros sem-terra nas mãos de Policiais Militares e pistoleiros, ou batalha entre uma tropa despreparada e emboscada por guerrilheiros munidos de rifles com mira telescópica? Mulheres sem-terra foram usadas como escudo-humano, ou apenas convocadas para negociar o final do conflito? “A verdade tem pelo menos três lados”, afirma o jornalista João Peres, autor do livroCorumbiara, caso enterrado (Editora Elefante), ao lado do fotógrafo Gerardo Lazzari. As perguntas que giram em torno dareintegração de posse da fazenda Santa Elina, em Corumbiara, no sul de Rondônia, em 9 de agosto de 1995, não têm resposta simples.
No livro ninguém é santo. De um lado, lideranças sem-terra sem apoio de movimentos organizados como o MST impedem que famílias de posseiros deixem o local na iminência de um conflito de grandes proporções – o que poderia ter salvo vidas. Do outro, “policiais militares alucinados, sem controle, sem comando, assustados, com medo, agindo de forma brutal para o domínio físico dos acampados”, de acordo com um relatório feito pela polícia à época. E tudo isso sob a eminência parda do latifundiário Antenor Duarte, sobre quem pesa a suspeita de pressionar juízes e ceder aeronaves, veículos e jagunços para a ação desastrada da polícia.A ação, na qual morreram nove posseiros (incluindo uma menina de 9 anos), dois PMs e uma pessoa não identificada —possivelmente um pistoleiro —, foi à época o maior conflito agrário pós-ditadura no Brasil. Também serviu de prenúncio para outros que viriam, como o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, e no Pontal do Paranapanema, no interior de São Paulo. “Diferenças à parte”, diz Peres, todos nascidos de “incentivos estatais à concentração fundiária, de um lado, e de lentidão ou omissão na solução de tensões evidentes”, do outro.
O Ministério Público chegou a apresentar denuncia contra Duarte, mas o pedido foi negado pelo juiz, que alegou falta de provas que ligassem o fazendeiro aos pistoleiros. Indignados, promotores chegaram a escrever ao magistrado em tom irônico, dizendo que “é óbvio que não se tem comprovação documental disto, pois quem manda matar não registra escritura pública em cartório. Talvez pugnasse por prova documental, como, por exemplo, um contrato de empreita de pistolagem.”
É óbvio que não se tem comprovação documental disto, pois quem manda matar não registra escritura pública em cartório
Outro personagem do livro é o senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que à época da reintegração da fazenda era governador de Rondônia. A atuação do parlamentar —que teria recebido uma carta dos posseiros alertando sobre o risco de um conflito— é envolta em mistério, até porque ele se nega a comentar os fatos de 20 anos atrás. "Ele privatiza uma narrativa que deveria ser pública, colocando a questão pessoal acima do interesse geral da sociedade", escreve Peres. Procurado pelo jornalista, o assessor do senador diz que seu cliente "se reserva o direito de conceder entrevistas apenas sobre assuntos que lhe sejam positivos para a imagem, o que certamente exclui Corumbiara". Raupp não é um personsagem apenas do passado: é um dos parlamentares investigados naOperação Lava Jato. Sobre ele pesa a suspeita de ter recebido 500 mil reais de dinheiro de propina da Petrobras para sua campanha de 2010. Ele nega as acusações.
Mais do que narrar a reintegração, Peres se debruça sobre a investigação e o julgamento que levaram à condenação atabalhoada de três PMs — nenhum em posição de comando— e dois sem-terra. “Decidiu-se condenar alguns para oferecer uma resposta qualquer à sociedade, sem preocupação com a coerência”, diz o autor. Grande parte das provas periciais foram destruídas no incêndio que se seguiu à reintegração. Além disso, o uso de máscaras por policiais e a falta de recursos financeiros para a condução dos inquéritos fez com que condenações e absolvições estivessem repletas de ilegalidades. Os chamados “peixes grandes” escaparam da rede. Soa atual?
Nenhum comentário:
Postar um comentário