Amy, o documentário que triunfou em Cannes e que estreou no Reino Unido e em vários países neste mês (no Brasil, a expectativa é que ele chegue aos cinemas até setembro), apresenta uma questão inquietante: quais novidades se pode contar sobre uma celebridade do século XXI? Como a de tantas celebridades de hoje, a vida pública de Amy Winehouse aconteceu em horário nobre, sendo vista pelo mundo inteiro. De alguma forma, até sua morte trágica parecia prevista, predestinada, assumida com antecedência.
Na verdade, nossa informação era escassa e incorreta. Quando morreu, em julho de 2011, todos pensaram que a “pobre Amy” tinha sofrido uma overdose de drogas ilegais. Para surpresa geral, a investigação dos legistas determinou que a causa imediata foi intoxicação aguda com uma droga legal: tinha consumido uma quantidade enorme de vodca.
O diretor do documentário, Asif Kapadia - o mesmo que dirigiuSenna (2010), sobre o piloto de Fórmula 1 e ídolo brasileiro Ayrton Senna, se encontrou com um dilema muito próprio do tempo presente: tinha muitos documentos audiovisuais da cantora, incluindo muito material nunca exibido. A primeira montagem deAmy durava três horas e os poucos que assistiram dizem que era devastador. Em sua forma final, são 128 minutos e, mesmo assim, ainda deixa um gosto amargo.
Essa opção narrativa por parte de Kapadia também tem seus perigos.Amy nos submerge em uma vida tumultuada sem permitir nem descanso ou reflexão. Kapadia inclusive reflete sobre o que podia sentir Winehouse quando saía na rua, atacada pelos flashes dospaparazzis e os holofotes das câmeras de TV. Embora mencionem a possibilidade de que seu telefone pudesse estar grampeado, não é explorada a relação – em seu caso, mais parasitária que simbiótica – entre os meios de comunicação e os famosos que são caçados por eles. É retratada a crueldade gratuita dos apresentadores de televisão, esses heróis do talk show que encenavam as maldades de seus fabricantes de gags.Tecnicamente, Kapadia tinha suficientes imagens e sons de Amy para que ela pudesse contar suas experiências em primeira pessoa. Mas não era suficiente: tudo foi muito rápido e nem ela entendia a experiência terrível que foi sua profissionalização, coincidindo com sua entrada na vida adulta. O filme precisava de outras vozes: amigos, família, colegas, médicos. E todos eles intervêm: a abundância de cenas de Amy Winehouse permite que o cineasta evite esse tema dos documentários que é a sucessão de cabeças falantes.
A potência da montagem de Amyesconde, no entanto, uma clara divisão de heróis e vilões. Mitch Winehouse não termina com uma boa imagem: o pai da artista foi para a ilha caribenha, onde ela estava tentando se recompor, acompanhado de uma equipe de filmagem, disposto a gravar um documentário que terminaria se chamando Saving Amy (Salvando Amy). Foi Mitch que decidiu que sua filha não precisava ir para a reabilitação, inspirando, de quebra, a memorável canção Rehab, mas também facilitando o aprofundamento de seus problemas.
Blake Fielder-Civil, o grande amor da vocalista, é retratado como um cafetão em todos os sentidos da palavra: o dinheiro de sua namorada servia para pagar o silêncio do dono de um pub que Fielder-Civil e outros amigos atacaram, um suborno que o levou a uma severa pena de prisão.
Não devemos esquecer de Raye Cosbert, o segundo manager, que tomou a decisão fatal de enviá-la em turnê quando Amy estava frágil, como se achasse que a estrada tem virtudes que podem salvar artistas com problemas. Ela era muito boa ao vivo, mas o grande número de apresentações coincidiu com seus momentos de fraqueza; precisou enfrentar plateias envenenadas, que talvez secretamente esperavam que ela fizesse coisas ridículas.
A nova idade de ouro do “soul” impulsionado por “Back in Black”
Amy Jade Winehouse chegou em uma época boa para cantoras. Mas tinha argumentos mais do que suficientes para se destacar no mercado. Em primeiro lugar, seu ecletismo natural: dominava a sensibilidade pop doBrill Building nova-iorquino, conseguia cantar standards, mantinha a pose na frente de músicos de jazz, não era difícil se envolver com os ritmos jamaicanos, até queria competir com rappers.
O segundo, e talvez não tenha sido suficientemente apreciado: compunha com facilidade surpreendente, escrevendo letras cruas e precisas.Amy, o documentário que estreia hoje na Espanha, inclui uma entrevista inédita onde ela lamenta que agora não haja compositores como James Taylor e Carole King. Na verdade, embora utilizasse linguagens diferentes, queria chegar a esse nível de perspicácia e honestidade expressiva.
E o mais evidente: essa voz, com sua pitada desoul da velha escola, felizmente sem maneirismos. Não pretendia ser uma nova Aretha Franklin: era uma garota do bairro, abençoada por essa capacidade britânica de absorver outras músicas, que usava seus ensinamentos para tentar se mostrar ao mundo.
Seu exemplo reverbera em todo o pop triunfante da última década. O impacto de Back in Blackfacilitou a aceitação global de vocalistas londrinos polidos como Adele ou Sam Smith.
Graças à associação com Amy, prosperaram os Dap-Kings, a banda oficial do selo Daptone; um de seus produtores, Mark Ronson, arrasou recentemente com Uptown Funk, cantada por Bruno Mars.
Por outro lado, o papel de guardião paternal recai sobre Nick Shymanksy, primeiro representante de Amy. Embora, vendo em retrospectiva, qualquer um pode apontar os erros. Sua gravadora Universal Music também aparece bem, o que era previsível: a multinacional financiou o documentário.
Sensível a sua má reputação, a indústria musical se moveu com cautela ao redor de Amy: no mês passado, o atual chefe da Universal Music no Reino Unido, David Joseph, afirmava ter destruído os originais e outros materiais inéditos dela, para evitar que no futuro saiam discos fracos ou os chamados desenterrados, onde são colocados novos fundos instrumentais às pistas de voz. Com todo o respeito, é difícil acreditar nisso; além disso, são feitas várias cópias de tudo que foi gravado por uma figura importante.
Em geral, é possível afirmar que a Universal não cedeu a seus piores impulsos na hora de vender a música de Amy. Aceitou que ela não tinha energia suficiente para tentar conquistar o mercado discográfico mais importante, o dos EUA. Lançou edições corretas ampliadas dos dois álbuns publicados durante sua vida,Frank e Back to Black. Como álbuns póstumos, só editou Lioness: Hidden Treasures (2011) e Amy Winehouse at the BBC (2012).
O que não se consegue explicar emAmy é a natureza complexa do jogo em que ela se destacou. Sem subestimar seu imenso talento natural, era um produto do prodigioso pop britânico, com suas academias especializadas e seus hábeis mecanismos para cultivar projetos comercializáveis.
Aos 19 anos, sem ter gravado, Amy recebeu 250.000 libras (o que hoje chegaria a cerca de 1,2 milhão de reais) a título de adiantamento de direito autoral por suas canções presentes e futuras. Avançou na primeira divisão do negócio da música, trabalhando com produtores nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se beneficiava do clima criativo do bairro londrino de Camden, onde participava em jam sessions sem chamar a atenção.
No entanto, apesar de toda sua potência econômica, a indústria musical não tem um Departamento de Saúde. Era óbvio que algo estava errado com Amy. Embora a indústria discográfica não sabia nada dos antidepressivos ou dos episódios de bulimia da juventude, era evidente seu emagrecimento, sua transformação física: aquela menina ossuda parecia determinada a encarnar a versão 2.0 das integrantes das exuberantes Ronnettes. Continuava praticandodieta romana: comer até se fartar e depois vomitar.
Podemos aceitar que Amy Winehouse tenha sido vítima dos modelos dominantes de beleza e terminasse ferida por um relacionamento tóxico. Ao assistir ao documentário, ficamos ainda mais espantados ao saber que sua baixa autoestima chegava até mesmo a seus extraordinários poderes para compor e cantar. É o único que hoje ninguém duvida.
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