- 27/08/2017
Como já foi dito em textos analíticos, a chamada
“Constituição Cidadã”, promulgada em 1988, merece, entre outros
codinomes, o de “Constituição Ambiental”, tais os avanços no ordenamento
jurídico sobre temas como proteção e preservação de florestas, direitos
dos povos indígenas, demarcação, deveres da União, biodiversidade,
regulamentação das atividades de extração, entre outros. Desde então,
com menor ou maior zelo, tais preceitos vinham sendo observados e
praticados pelos governantes eleitos democraticamente, quaisquer que
fossem suas cores partidárias, seus erros e acertos, seus escândalos.
Mesmo quando iniciativas de alto impacto
ambiental estiveram na pauta dos chamados grandes projetos federais ou
das propostas de alteração da lei no Congresso, houve debate, diálogo e
atenção às manifestações de organismos não governamentais no país e no
mundo e de governos estrangeiros associados a investimentos
preservacionistas. Chegou-se a temer que a Amazônia caísse na mão dos
“gringos”, houve bravatas, mas sempre, de uma forma ou de outra,
manteve-se o trilho em equilíbrio.
Quarta-feira passada, Michel Temer descarrilhou o
trem na marra, ao ofertar, na base do decreto, uma gigantesca reserva
amazônica aos mineradores. “Há quatro grupos estrangeiros interessados”,
noticiou-se. Por ironia, essa reserva, extinta por Temer ao estilo
militar, foi criada justamente pelo último dos presidentes do ciclo de
chumbo, João Figueiredo. Se o medo era de que a gritaria das ONGs e dos
governos escondesse intenções nefastas d’além-mar, a objetividade
obscena de Temer abriu logo as pernas da floresta para as máquinas
entrarem sem muita conversa. Um atentado sem precedentes desde a
redemocratização. E um precedente, em si.
O pé fundamentalista desse tipo de terrorismo de
Estado está no círculo mais íntimo de Temer. Vem, em especial, da
figura do senador Romero Jucá (PMDB-RR), e o pior está por vir. Sem uma
reação forte, a mineração vai esquartejar a Amazônia. Na segunda metade
da década de 1980, durante o governo José Sarney, Jucá, na presidência
da Funai, celebrizou-se representando o papel de raposa no galinheiro,
ao estimular uma selvagem corrida ao ouro nas terras ianomâmi,
riquíssimas em reservas minerais.
(Nota pessoal: em minha visita, pelo GLOBO, em
parceria com Sebastião Salgado, a aldeias desse povo em 2014,
testemunhei que falar o nome de Jucá, principalmente em zonas ainda
semi-isoladas, era como evocar um espírito maligno. Vi um velho xamã
contar histórias dele como se o político fosse uma criatura mitológica,
dentro das narrativas da “fumaça canibal”, alusão às máquinas de
garimpo, que, na cosmologia ianomâmi, arrancam da terra o que deve ali
permanecer.)
No período em que Jucá reinou, o número de
garimpeiros chegou a ser de cinco vezes o de indígenas. Tal época viu
uma devastação só comparável à promovida desde os primeiros contatos com
a fronteira branca há um século e meio, e dos massacres do período
militar. Isso às portas de um Brasil novo.
A virada na História veio quatro anos depois da
Constituinte e seis meses antes do ocaso do governo Collor, em 1992,
quando foram reconhecidos os 9,6 milhões de hectares dos ianomâmis,
maior área contínua demarcada do Brasil, de alta relevância para a
proteção da biodiversidade amazônica, e até hoje guardada por tribos que
ainda têm pouco contato com a cidade.
(…)
Mas voltemos a Jucá. Mesmo com a demarcação
vitoriosa, o bravo senador jamais desistiu. De olho ávido no artigo 176
da Constituição, que libera a exploração com legislação específica
(nenhuma constituinte é perfeita…), Jucá propôs o projeto de Lei 1.610,
que, felizmente, ficou parado por 16 anos mesmo tendo sido aprovado no
Senado. Um substitutivo de 2012 teve por relator o deputado Édio Lopes,
do mesmo PMDB-RR de Jucá, historicamente ligado ao garimpo. Até
recentemente, estava em fase adiantada de tramitação, sob a mesma
relatoria. Enquanto isso, 54,8% da superfície ianomâmi estão
requisitados por mineradoras.
Tem mais: a filha de Jucá, Marina, é sócia
majoritária da Boa Vista Mineração, que tem 90 mil hectares ali
requeridos. Além disso, tramita a PEC 215, determinando a revisão das
demarcações em aberto e das homologadas, o que vai contra a
Constituição. Mas, no paraíso das PECs, quem se importa? Com Temer no
comando e Jucá no leme, e sem uma resistência eloquente, a mineração
pode comemorar, pois no Brasil ninguém vai para a rua protestar por
causa de floresta. A extinção da atual reserva (que, aliás, tem sete
unidades de terras indígenas), na fronteira entre Pará e Amapá (olha o
Sarney aí, gente) tem jeito de aperitivo antes de o inferno tomar conta
da mata virgem, patrimônio nosso e da Humanidade.
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