CONHEÇA OUTROS DESTINOS: Aldeias de Norte a Sul
É quase premonitória a frase que se lê na alminha dedicada ao Senhor dos Aflitos, onde alguém, há muito tempo, pintou à mão numa pequena tábua: "Milagre que fez o Senhor dos Aflitos à aldeia da Cerdeira, que não a deixou morrer." Foi assim durante as invasões napoleónicas, quando foi uma das únicas, a par da vizinha Candal, a não ser saqueada pelas tropas francesas.
Aldeias de Xisto: Um passado que também é futuro
Uma das mais isoladas da serra, a aldeia parece ter parado no tempo, com o seu casario em xisto espalhado pela encosta, num verdadeiro monumento ao engenho humano. Os edifícios foram implantados sobre a rocha, deixando as escassas áreas mais planas para a agricultura, que os antigos habitantes dispuseram em socalcos, de modo a segurar a terra, protegendo-a assim das enxurradas.
Hoje já quase não há agricultura, mas o cenário mantém toda a sua magia, servindo agora para seduzir os visitantes, cada vez em maior número, que se deixam impressionar com esta verdadeira obra-prima da engenharia popular. A entrada na aldeia, através de um caminho pedonal em ardósia, acompanha um pequeno regato, transformado em cascata um pouco mais à frente. Não é difícil imaginar a dureza das vidas que outrora a habitaram, num ciclo que teve o seu fim na década de 70 do século passado, quando uma discussão sobre a partilha da água acabou em tragédia para os últimos habitantes primitivos da Cerdeira, numa história imortalizada, em 1992, no filme O Fim do Mundo, de João Mário Grilo.
E para a aldeia, o fim do mundo aconteceu com o golpe de sacho com que Augusto Constantino encerrou, em definitivo, a questão. Mas nem aí deixou de ser amparada pelo Senhor dos Aflitos: após cumprir a pena, Constantino aqui regressou para se dedicar, até ao fim da vida, a ensinar e partilhar os seus conhecimentos com os novos habitantes, que então começavam a chegar. Uma das primeiras a chegar foi a alemã Kerstin Thomas, que tem na aldeia um ateliê de artesanato contemporâneo, onde cria imaginativas peças e esculturas em madeira. "Durante 10 anos, fomos os únicos a viver aqui, eu, o meu mariDO e os meus dois filhos", recorda, com visível orgulho, ao olhar para o vaivém de visitantes, em especial no fim de semana, desde a abertura, há dois anos, da Cerdeira Village, uma unidade de alojamento local composta por sete casas recuperadas. "Não é só recuperar por recuperar, mas sim dar um outro sentido à vida na aldeia. As pessoas saíram porque não havia condições para terem uma vida confortável e hoje as exigências são outras", explica Kerstin, uma das grandes responsáveis pelo renascimento da aldeia através da arte e da criatividade. Começou por organizar a exposição Elementos à Solta que, todos os anos e já com nove edições, reúne obras de diversos artistas internacionais pelos campos circundantes, numa simbiose perfeita entre arte e natureza. E foi com o mesmo objetivo "de trabalhar com as pessoas de acordo com valores éticos e de modernidade", que avançou para um dos seus mais ambiciosos projetos, a criação da Casa das Artes e Ofícios. Um verdadeiro caso de estudo por ter sido construída segundo critérios de ecorreabilitação, de acordo com as técnicas antigas e apenas com recurso a materiais locais como pedra, barro, cortiça ou madeira de castanheiro.
Para além de já ter recebido diversas residências artísticas, com artistas europeus ou de paragens mais distantes, como o Nepal, a Argentina e os EUA, serviu também, no final do ano passado, como estúdio para os músicos de jazz António Eustáquio e Carlos Barretto, que aqui gravaram o disco Guitolão. "O objetivo é promover esta aldeia como um destino de turismo criativo e artístico, pois quem vem de fora sente que está a chegar a um mundo diferente, sem televisão, internet ou sequer rede telefónica, onde é possível estar em perfeita comunhão com a natureza."
Pelos caminhos do antigamente
Um dos melhores modos de conhecer a zona é a pé, pelos percursos que devolveram a vida aos antigos trilhos serranos, usados durante séculos pelos antigos habitantes. São mais de 30 os percursos pedestres que cruzam a rede das Aldeias do Xisto, numa proposta diferente para conhecer uma região onde história, natureza e tradição se cruzam a cada passo. A cerca de uma hora de caminhada da Cerdeira fica a vizinha aldeia do Candal, onde é obrigatória uma visita à Loja do Candal. É gerida por um grupo de artesãos locais e aí podem ser descobertas peças únicas de artesanato tradicional ou contemporâneo, para além de diversas iguarias serranas como os licores, os enchidos ou o mel, ou ainda aprender a confecionar pão, queijo e doces à moda antiga.
Um dos percursos pedestres mais bonitos da região é o que parte junto ao castelo da Lousã e percorre as aldeias de Casal Novo e Talasnal. Também conhecida como Castelo de Arouce, esta fortaleza, construída no século XI, foi uma das primeiras linhas defensivas criadas para controlar os acessos a Coimbra. Lá em baixo, no vale, a ribeira de São João desagua numa aprazível praia fluvial, encimada pela ermida de Nossa Senhora da Piedade, cada vez mais para trás, à medida que se sobe a encosta - primeiro por um trilho escavado na rocha, com uma vista deslumbrante sobre o desfiladeiro, e depois, mais a pique, por um carreiro entre a densa vegetação.
No Casal Novo, a única habitante a dar as boas-vindas é uma simpática gata. O largo caminho de terra batida dá agora lugar a um pequeno trilho que serpenteia, para cima e para baixo, pela floresta. Ao longe já se vê a aldeia do Talasnal, que, pela localização, dimensão e disposição do bem preservado conjunto urbano, se tornou num dos símbolos das aldeias de xisto da serra da Lousã. Durante a semana, tem apenas um único habitante (um lisboeta que há alguns anos trocou o bulício da grande cidade pelos ares da serra), mas ao fim de semana recupera a vida, entre as muitas famílias da região que aqui têm casas de férias e os cada vez mais regulares visitantes, vindos em busca de uma natureza quase virgem. É normal, aliás, quando menos se espera, dar de caras com veados, corças ou javalis. É tempo de voltar a descer, até à antiga Central Hidroelétrica da Ermida, uma peça de arqueologia industrial que serviu, em tempos, para iluminar a vila da Lousã. Passadas as águas da Ribeira de São João, que aqui corre em cascata, a estrada volta a alargar. Ao longe, mas cada vez mais perto, já se vê novamente o Castelo.
Outro percurso pedestre imperdível é o que parte de Casal de São Simão, uma pequena aldeia do concelho de Figueiró dos Vinhos, encavalitada numa encosta sobre um imenso vale. Em tempos uma das mais populosas da região, com mais de 100 habitantes, foi aos poucos recuperando a vida, com uma leva de novos moradores sazonais que aqui compraram e recuperaram as tradicionais casas de pedra, devolvendo à localidade o encanto de antigamente.
O percurso, circular e com uma extensão de 5 quilómetros, percorre alguns dos locais de maior beleza em redor da aldeia, como a maior mancha de sobreiros do concelho, o Vale da Abundância, a antiga área de cultivo da aldeia e onde hoje apenas persistem algumas árvores de fruto ou o "bosque reliquial", uma surpreendente mancha de floresta Laurissilva, verdadeiro monumento vivo do que foi esta região há milhares de anos. Segue-se depois o ponto alto deste roteiro, as imponentes Fragas de São Simão, uma grandiosa escarpa rasgada pela força da água, que aqui forma uma aprazível praia fluvial. Se ainda houver forças, podese continuar até à vizinha aldeia de Ferraria de São João, já nos limites do concelho de Penela, onde fica um dos quatro centros de BTT da rede das Aldeias do Xisto, uma estrutura com balneários, oficina e zona de lavagem para bicicletas, onde começam e acabam cinco percursos cicláveis. Nesta aldeia podem também ser apreciados os tradicionais currais, alguns ainda a uso. Mesmo ao lado, fica um sobreiral que a associação de moradores local transformou num espaço público e no qual os visitantes podem até adotar um sobreiro, numa iniciativa original para ajudar a financiar a manutenção destas árvores, muitas delas centenárias - o valor da adoção varia entre os 40 e os 80 euros por um período de nove anos. Para além de "usufruir da sombra", o adotante tem ainda direito a 50% do valor da venda da cortiça.
Aos poucos, o turismo tem devolvido a vida às aldeias, como se constata também no concelho de Góis, no núcleo composto por Aigra Nova, Aigra Velha e Pena. Na primeira, fica situado o ecomuseu, construído a partir de peças reais e das memórias dos habitantes locais, com o objetivo de dar a conhecer as tradições, usos e costumes destas populações. Saberes recuperados ao tempo e à memória, depois aplicados na prática em locais como a Maternidade das Árvores, onde são criadas plantas autóctones (castanheiro, azevinho, carvalho ou medronheiro) para reflorestar a serra. Um pouco mais acima, fica o Núcleo Asinino, onde três simpáticos burros lanudos transmontanos esperam pacientemente pelos visitantes para os levar em passeio pela serra. Em Aigra Velha, outrora uma das mais importantes aldeiasda região, o forno e o alambique comunitários foram entretanto recuperados e podem hoje também ser visitados. A aldeia era conhecida pelos seus imensos rebanhos de cabras e funcionava como uma autêntica fortaleza, com portões que se fechavam à noite, para proteger o gado dos ataques dos lobos. Daí parte uma estrada panorâmica, em terra batida, que liga ao Trevim, o ponto mais alto da serra da Lousã, a 1204 metros de altitude e ao santuário de Santo António das Neves, mandado construir por Julião Pereira de Castro, neveiro-mor da casa Real, junto ao qual era armazenada a neve, coberta com palha e fetos, de modo a conservá-la e de onde seguia em grandes blocos para Lisboa, para que no verão a corte pudesse saborear gelados. Na aldeia da Pena, o ar enche-se agora com o cheiro da lenha e do pão acabado de fazer, anunciando o fim do dia. É tempo de regressar a casa, cerrar as portas e acender a lareira.