Como saques e contrabando de antiguidades ajudam a financiar o 'EI'
BBC ouviu contrabandistas, comerciantes e autoridades para investigar comércio proibido pela ONU; rotas saem da Síria e passam pela Turquia e Líbano até chegar à Europa.
O comércio de antiguidades é uma das principais fontes de dinheiro do grupo autodenominado 'Estado Islâmico' (EI), junto com petróleo e sequestros.
Por isso, na semana passada, o Conselho de Segurança da ONU proibiu todo o comércio de artefatos históricos vindos da Síria e acusou militantes do grupo extremista de saquear a herança cultural para aumentar sua capacidade de "organizar e realizar ataques terroristas".
A BBC investigou este comércio e as rotas que saem da Síria e passam pela Turquia e Líbano até chegar à Europa.
O contrabandista
Foram necessários vários telefonemas e muita persuasão para nos encontrarmos com um homem que vamos chamar de "Mohammed".
Foram necessários vários telefonemas e muita persuasão para nos encontrarmos com um homem que vamos chamar de "Mohammed".
Ele tem 21 anos, é de Damasco, mas agora trabalha no vale do Bekaa, na fronteira entre a Síria e oLíbano.
Nos encontramos em um apartamento na região central de Beirute e o jovem descreve em voz suave como começou a contrabandear antiguidades roubadas da Síria.
"Há três amigos em Aleppo com quem negociamos, eles trazem (o material) de lá até a fronteira, e pagam um taxista para trazê-lo para dentro (do país) ", disse.
Ele é especialista em objetos pequenos, mais fáceis de transportar. Mas, segundo ele, até o contrabando destes está muito arriscado.
"Tentamos muito conseguir os objetos de mais valor, brincos, anéis, estatuetas...", disse Mohammed.
O contrabandista consegue um bom lucro, mas conta que outros "já venderam peças no valor de US$ 500 mil (cerca de R$ 1,4 milhão), algumas por US$ 1 milhão (R$ 2,8 milhões)".
Quando pergunto quem lucra e quem controla o contrabando na Síria, a voz suave fica mais dura.
"(Os membros do) EI são os principais fazendo isto. Eles estão no controle do negócio, eles roubaram os museus, principalmente em Aleppo. Eles têm conexões com outros países (...) e enviam para esses lugares usando estas conexões."
Mohammed ainda está envolvido com comércio na fronteira, mas não lida mais com antiguidades. "A punição é muito dura. Eles te acusam de ser do 'EI'", afirmou.
O intermediário
Para vender antiguidades roubadas, você precisa de um intermediário que, no nosso caso, vamos chamar de "Ahmed". Ele é do leste da Síria, mas agora está em uma cidade no sul da Turquia - que ele pede para não ser identificada.
Para vender antiguidades roubadas, você precisa de um intermediário que, no nosso caso, vamos chamar de "Ahmed". Ele é do leste da Síria, mas agora está em uma cidade no sul da Turquia - que ele pede para não ser identificada.
Quando conversamos pelo Skype, ele me mostra uma manta estendida no chão onde estão vários artefatos: estatuetas de animais e figuras humanas, vidros, jarros e moedas. Eles foram encontrados nos últimos meses.
"Estes vieram do leste da Síria, de Raqqa, todas as áreas controladas pelo 'EI'", disse.
O "Estado Islâmico" tem um papel de peso no controle do comércio, segundo Ahmed. Qualquer um que queira fazer escavações arqueológicas precisa de uma permissão dos inspetores do "EI", que monitoram as descobertas e destroem qualquer objeto que represente a figura humana, o que é visto como idolatria.
O grupo também coleta um imposto de 20% sobre este objetos.
Este comércio pode ser muito lucrativo.
"Vi uma peça sendo vendida por US$ 1,1 milhão (R$ 3,1 milhões). Era um objeto do ano 8.500 a.C.", afirmou o intermediário.
Ele mostra os objetos pela webcam, dizendo que pagou muito por eles. O destino final delas é a Europa Ocidental.
"Comerciantes turcos vendem para negociantes na Europa. Eles ligam para eles, enviam fotos... pessoas da Europa vem checar as mercadorias e as levam embora."
Ahmed terá de devolver estes objetos para seus contatos na Síria, já que não vou comprar nada. Ele diz que não pretende retornar a seu país. "Se voltar, serei morto', diz ele.
O negociante
Na vitrine de uma loja comum para turistas no centro de Beirute estão antigas lâmpadas a óleo, anéis e objetos de vidro. O dono da loja, um homem de mais de 40 anos, diz que a maioria das "antiguidades" é falsa.
Na vitrine de uma loja comum para turistas no centro de Beirute estão antigas lâmpadas a óleo, anéis e objetos de vidro. O dono da loja, um homem de mais de 40 anos, diz que a maioria das "antiguidades" é falsa.
Mas ele garante que tem peças genuínas, de cerca de mil anos de idade.
Demonstro interesse por mosaicos, pois arqueólogos me disseram que estas peças com certeza seriam as mais comuns entre as saqueadas atualmente, o que significa que há grandes chances de serem da Síria.
"Se você estiver falando sério, podemos ter uma negociação séria... sempre tem um jeito", diz o dono da loja.
Pergundo se é legal e ele, sorrindo, me diz que a única forma de transportar estas peças legalmente é com documentação oficial de um museu dizendo que elas estão regularizadas para exportação.
Ele me explica que, se a peça for pequena, posso levar comigo, mas corro o risco de ser pego. Com o pagamento de uma taxa, ele se dispõe a enviá-la para a Grã-Bretanha.
Nos despedimos e ele me entrega um cartão de visitas.
"O comércio ilícito é gerenciado como um negócio profissional, com escritórios e cartões de visita e você pode comprar antiguidades do Líbano, mas também da Síria ou Iraque", diz Arthur Brand, investigador de Amsterdã que ajuda a recuperar antiguidades roubadas e tem experiência no Líbano.
As ligações entre contrabandistas e negociantes é um segredo sujo que o mundo da arte não quer reconhecer, segundo Brand.
O policial
Nicholas Saad é um policial chefe do escritório de roubo internacional do Líbano. Em seu escritório, há fotos de grandes bustos romanos apreendidos em uma busca recente no Líbano.
Nicholas Saad é um policial chefe do escritório de roubo internacional do Líbano. Em seu escritório, há fotos de grandes bustos romanos apreendidos em uma busca recente no Líbano.
No telhado da delegacia, olhamos para o leste, além das montanhas, onde está a fronteira com a Síria e por onde os refugiados entram no país e são explorados por gangues de contrabandistas.
"Os refugiados vêm em grandes números e as gangues colocam peças entre os pertences dos refugiados", disse o policial.
Desde o início do conflito, ele notou um aumento no contrabando de artefatos saqueados, vindos principalmente de "Raqqa, (a base) do Estado Islâmico".
A equipe de Saad já apreendeu centenas de artefatos sírios que, segundo um arqueólogo, são valiosos e "do período romano, do período grego, anos antes de Cristo".
Mas, o policial afirma que estas peças não ficam no Líbano, elas vão para a Europa.
O tesouro
No Museu Nacional de Beirute estão tesouros romanos, bizantinos e muitos outros, alguns de até 3 mil anos de idade.
No Museu Nacional de Beirute estão tesouros romanos, bizantinos e muitos outros, alguns de até 3 mil anos de idade.
Escondidos do público, em uma sala abaixo da galeria principal, estão as antiguidades saqueadas que aguardam para ser devolvidas para a Síria.
Assaad Seif, arqueólogo e chefe de escavações da Diretoria Geral de Antiguidades de Beirute, nos leva até uma sala onde estão cerâmicas e esculturas. Mas, os objetos mais valiosos estão em um armazém.
"Temos esculturas funerárias enormes, representando homens e mulheres, usadas para fechar as tumbas da (antiga cidade de) Palmira (na Síria)", disse.
A maioria dos objetos apreendidos vem de escavações e não de roubos em museus. Os saqueadores têm como alvo armazéns em locais históricos como Palmira, declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Seif afirma que estes armazéns têm objetos que ainda não foram listados ou catalogados e os contrabandistas acham que pode ser mais fácil vendê-los.
Depois de alguma persuasão, Seif finalmente fala em valores.
"Temos uma dezena de objetos que seriam vendidos por US$ 1 milhão (cada) no mercado aberto", afirmou.
O destino
Foram dias até conseguirmos chegar a Maamoun Abdulkarim, arqueólogo que comanda o departamento de antiguidades da Síria, em Damasco. E ele está indignado.
Foram dias até conseguirmos chegar a Maamoun Abdulkarim, arqueólogo que comanda o departamento de antiguidades da Síria, em Damasco. E ele está indignado.
"Nos locais sob controle do 'EI' temos um desastre, muitos problemas. O 'EI' ataca todas as coisas apenas por dinheiro. É a nossa memória, nossa identidade", disse.
É impossível deter os saques, mas ele afirma que é possível fazer mais para evitar o comércio.
"Temos certeza, através de todas as fontes, que muitos objetos vão da Síria para a Europa, Suíça, Alemanha, Grã-Bretanha - e países do Golfo (Pérsico) como Dubai e Catar", disse.
Todos os ouvidos nesta reportagem disseram que o mercado principal é a Europa.
Vernon Rapley já liderou o esquadrão de artes e antiguidades da Polícia Metropolitana de Londres e agora é chefe de segurança do Museu Victoria e Albert.
Ele ainda tem contatos na polícia e tem certeza de que os artefatos da Síria estão sendo vendidos na Grã-Bretanha. Para Rapley, o comércio destas antiguidades precisa ser considerado "socialmente repugnante e inaceitável" para que, no futuro, "não tenhamos decoradores procurando por estas coisas para enfeitar domicílios alheios".
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