Fortaleza
Um salve geral que partiu de dentro de um presídio cearense foi o gatilho que mergulhou o Estado em uma das piores crises de segurança pública de sua história. “Pedimos a todas as facções do Estado do Ceará e a todo crime em geral que parem todo o Estado (...) parem todas as cadeias”, dizia a mensagem enviada pelo aplicativo Whatsapp no final de maio. O recado se espalhou como fogo em pólvora pelas periferias de dezenas de cidades, e alcançou centenas das celas superlotadas do sistema penitenciário. O que mais preocupou as autoridades foi que o salve geral era assinado por todas as facções criminosas que atuam no Estado: Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital, Família do Norte e Guardiães do Estado.
Policiais observam corredor de presídio CPPL IV em chamas durante rebelião. REPRODUÇÃO
O chamado feito pelo crime mergulhou o Ceará em uma espiral de violência, com dezenas de atentados realizados em ao menos cinco cidades. Os alvos foram prefeituras, assembleias legislativas, delegacias e viaturas da polícia. Dentro das cadeias, o salve desencadeou a maior revolta simultânea da história do Estado: no total, sete presídios viraram ao mesmo tempo no Ceará. Ao menos 18 presos e dois policiais foram mortos até o final de julho, quando a situação começou a se acalmar. A ação tinha a marca do PCC: em 2016 a facção paralisou a cidade de São Paulo com uma série de ataques semelhantes e revoltas em dezenas de penitenciárias.
Nas periferias de Fortaleza, integrantes do PCC e do CV, que são aliados no Estado, afirmaram ao EL PAÍS que "apenas estupradores foram mortos" nos presídios. Pego de surpresa, o Governo tentou como pôde debelar a crise. No auge do caos, o delegado geral do Ceará, Raimundo Andrade Júnior, afirmou: "Observa-se que facções que historicamente são inimigas, aqui no Ceará resolvem se irmanar", uma menção velada à atuação conjunta do CV, PCC e dos grupos locais.
O ex-detento Carlos Almeida, que cumpriu pena de “um ano, seis meses e 26 dias”, descreve assim a chegada do PCC aos presídios cearenses: “Virou como se fosse o talibã[grupo radical islâmico afegão conhecido por suas práticas restritivas], não podia nada”. De acordo com ele, qualquer desvio das normas impostas pela facção “era paga com facada ou morte”. “Se sumia alguma coisa em alguma cela, logo vinham eles dizendo ‘quem foi? Vamos descobrir!”, afirma.
Ângelo Vannucio de Araújo, 35, é outro ex-detento que presenciou a ascensão do PCC dentro das cadeias locais. Condenado a uma pena de “cinco anos e alguns meses” por homicídio, ele ficou preso em diversos presídios cearenses, inclusive na Casa de Privação Provisória de Liberdade de Itaitinga, uma das mais violentas do Estado. “Com a chegada do PCC começou o apadrinhamento dos presos”, afirma, referindo-se ao processo de batismo a partir do qual um detento passa a integrar ‘oficialmente’ a ‘família’, após ser batizado e prestar juramento ao código de conduta da organização. “Eu não quis entrar, porque quem entra não pode sair, e eu queria cumprir minha pena e poder viver em sociedade depois”, conta.
A disciplina imposta pelo PCC, por vezes, cobra seu preço com sangue. Araújo relembra um dos momentos que mais o marcou durante seus mais de cinco anos de reclusão. Das mais de 20 mortes que ele presenciou dentro do sistema penitenciário, uma ele não esquece. “Meu primo estava preso na mesma unidade que eu. Ele cobrava pedágio de outros presos, obrigava eles a dar um pouco da droga que vendiam”, afirma. Pelo código de conduta da facção paulista a extorsão de outros presos não é um comportamento bem aceito. “Aí um dia durante o banho de sol um outro preso transpassou ele no peito com um coçoco [barra de ferro afiada na ponta]. Foi com tanta força que ele não conseguiu nem tirar o ferro depois”, diz. O primo se esvaiu em sangue e morreu no pátio. “Eu não pude ajudar, não podia fazer nada. O errado é errado. Se fosse tentar socorrê-lo, eu morria junto”.
Rebeliões coordenadas
“As rebeliões de maio foram atípicas, nunca houve rebeliões articuladas no Ceará: era uma aqui, outra ali, o que ocorreu em maio foi inédito”, conta o padre Marcos Passerini, 75, coordenador da Pastoral Carcerária no Estado. De acordo com o religioso, o estopim para essa revolta foi a greve dos agentes penitenciários. A consequência desta paralisação foi a suspensão das visitas dos familiares dos presos, o que jogou mais gasolina em uma situação já inflamada pela superlotação e por condições precárias de infraestrutura e salubridade. “As famílias levam alimentos, papel higiênico, e tudo aquilo que o Estado não consegue fornecer”, diz Passerini. "Mas essa greve foi apenas a gota d'água, as reais causas são superlotação, abusos e todo tipo de violação de direitos que ocorrem nas unidades".
"Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo"
O religioso afirma que o fato dos detentos cearenses não serem separados em presídios diferentes de acordo com sua facção, como ocorre no Rio e Janeiro, por exemplo, "facilita que elas se irmanem, acaba sendo uma escola". "Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo", diz. Debeladas as revoltas no sistema penitenciário, as autoridades anunciaram a apreensão de mais de 400 telefones celulares nas celas.
Talvez o maior sinal da importância do Ceará para o PCC tenha sido a prisão, no final de março deste ano, de Alejandro Herbas Camacho Junior em Fortaleza. Ele é irmão mais novo de Marcos Wilians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, a maior liderança do grupo criminoso. A Polícia Federal acredita que Junior era encarregado de cuidar dos negócios da facção no Nordeste, e coordenava uma rede de empresas de fachada utilizadas para lavagem de dinheiro oriundo de roubos a banco e do tráfico de drogas. O Ceará tem um papel importante na rota de tráfico mundial, uma vez que parte da droga proveniente da Colômbia e do Peru passa pelo Estado antes de ser enviada para a Europa.
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