sábado, 5 de novembro de 2016

A lama soterrou a vida

Publicado em 05/11/2016, Atualizado em 05/11/2016

A lama soterrou a vida e coloriu as paisagens e os rios de alaranjado. Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, se transformou na maior tragédia ambiental do país. O tsunami de água e rejeitos levou 19 vidas, casas, animais, memórias. E muitas perguntas seguem sem resposta: o que fazer com a lama agora? O que pode acontecer na época de chuvas? Como estão os moradores? Veja desafios que vítimas, governos e a mineradora ainda têm de enfrentar.

INTRODUÇÃO

Há um ano, milhões de metros cúbicos que estavam na barragem de Fundão devastaram o distrito de Bento Rodrigues, atingiram dezenas de outras localidades e cidades entre Minas Gerais e o Espírito Santo e chegaram ao mar. Reveja como foi essa tragédia.

O QUE FAZER COM A LAMA?

Um ano após o rompimento da barragem de Fundão, o pó de minério ainda encobre áreas devastadas. Ao longo de rios, o alaranjado das águas encontra o cinza e o marrom dos bolsões de rejeito. Milhões e milhões de metros cúbicos da lama – agora, boa parte seca – seguem espalhados, deixando marcas no meio ambiente. E o que fazer com todo esse rejeito? Ainda não há uma solução definitiva.
Para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a remoção do rejeito é urgente para evitar novas tragédias e para o início efetivo da recuperação ambiental. Até agora, a Samarco só tirou 2% da lama que se acumulou entre Bento Rodrigues, o distrito mais afetado pela tragédia, e a Usina Hidrelétrica de Risoleta Neves, conhecida como Candonga.

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No Rio Gualaxo do Norte, no distrito de Gesteira, águas alaranjadas correm entre bancos de rejeito (Crédito: Raquel Freitas/G1).
Quando a barragem de Fundão se rompeu, liberando 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeito, o promotor do MPMG Carlos Eduardo Ferreira Pinto imaginava que, um ano depois, o trabalho do órgão estaria focado na fiscalização das ações de recuperação. Mas a realidade é outra. “Hoje, não. A gente se encontra fiscalizando obras emergenciais, que são feitas para garantir segurança de Candonga ainda, porque a lama não foi retirada dos rios”, afirma.

No Plano de Recuperação Ambiental Integrado (Prai), entregue pela Samarco a autoridades mineiras em agosto, a mineradora estimou, de acordo com cálculos feitos em julho, que 25,7 milhões de metros cúbicos de sedimento foram depositados entre a comunidade devastada e o barramento da usina, que serviu como obstáculo, interrompendo o fluxo de parte do “mar de lama”. A Fundação Renova divulgou a estimativa de que foram removidos pouco mais de 500 mil metros cúbicos de lama, entre 5 de novembro de 2015 e 31 de outubro de 2016.

Essa fundação é a responsável pelos programas de reparação e reconstrução das áreas afetadas. Ela foi criada depois do acordo firmado entre a Samarco e os governos federal, mineiro e capixaba, mas sua homologação foi anulada pela Justiça. A mineradora e a entidade não quiseram conceder entrevista. O posicionamento veio por meio da assessoria de imprensa da fundação e da mineradora.
Para promotor do MPMG Carlos Eduardo Ferreira Pinto, remoção da lama é fundamental para garantia da segurança e para efetiva recuperação ambiental (Foto: Reprodução/TV Globo).
Segundo a Fundação Renova, a remoção de rejeitos é discutida em câmaras técnicas. “Uma matriz de decisão está sendo construída junto com os órgãos ambientais”, afirma. Segundo a entidade, paralelamente a esses debates, a Samarco vem atuando no controle de erosão, desenvolvendo trabalhos de bioengenharia e outras iniciativas para minimizar o aporte de sedimentos nos rios.

Apesar de acreditar que a retirada da lama é o melhor para a reabilitação do ecossistema e para garantia da segurança, o promotor não se mostra otimista quanto à limpeza definitiva dessas áreas. “Isso acontece muito no [campo do] meio ambiente. Você estabiliza e recupera em cima daquilo. É mais fácil, é mais cômodo, mais barato”, diz.
(Crédito: Arte/G1)

PARA ONDE VÃO OS REJEITOS

Dos cerca de 500 mil metros cúbicos de rejeito removidos pela Samarco até agora, 157 mil metros cúbicos saíram de Barra Longa. Conforme a Fundação Renova, parte do material está depositado em uma fazenda, a aproximadamente 1,5 quilômetro da cidade. “O local é utilizado desde janeiro deste ano e foi autorizado pelos órgãos ambientais”, diz a entidade.
Parte do rejeito retirada de Barra Longa foi levada para local onde deveria abrigar p arque de exposição (Foto: Raquel Freitas/G1).
Outro ponto de descarte temporário dos rejeitos é um terreno que fica no bairro Morro Vermelho, logo na entrada da cidade. Em agosto, a empresa foi multada em R$ 1 milhão pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por omitir em um documento oficial a existência desse depósito. A empresa recorreu e afirmou, na ocasião, que foi uma das soluções encontradas para restabelecer os acessos urbanos e a limpeza da cidade. Segundo a Samarco, órgãos ambientais sabiam e tinham vistoriado o local.

O secretário municipal de Administração e Meio Ambiente, Antônio Alcides, diz que a prefeitura não sabe até quando o material ficará nesse terreno, que deveria abrigar um parque de exposições. “Essa lama foi colocada no parque porque não tinha outro lugar. A previsão era de tirar em abril, no máximo”, afirma ele, completando que isso é responsabilidade da Samarco. “Eles vão ter que tirar [a lama], porque ali é o início das obras de um parque de exposição e já tem dinheiro do governo federal [cerca de R$ 350 mil] investido ali”, diz Antônio Alcides. O secretário acrescenta que a mineradora prometeu finalizar as obras, mas ele não fala em prazos.
O secretário municipal de Administração e Meio Ambiente ainda não sabe até quando a lama vai ocupar um terreno da prefeitura (Foto: Raquel Freitas/G1).
De acordo com a Samarco, a lama foi depositada no parque exposições até janeiro. A mineradora diz que a manutenção do material no local foi discutida com o poder público e com a comunidade. A companhia afirma ainda que, para evitar o que o sedimento seja carreado para o Rio do Carmo, instalou contenções. “Foi feito uma conformação do material, plantio de hidro-semeaduras no local e aplicada uma biomanta no talude. Além disto, foi instalado um dispositivo de drenagem em toda a extensão do parque, na margem do rio”, explica.

Ainda conforme a mineradora, a pilha de rejeito será transferida para um campo de futebol ao lado do terreno, que será alteado e reformado. “O projeto do campo foi idealizado com o objetivo de conter o material, que será compactado, evitando carreamentos do material para o Rio do Carmo. A comunidade e a prefeitura foram ouvidas durante a elaboração do projeto, que já foi protocolado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad)”, afirma a mineradora. O campo de futebol deverá ser entregue à comunidade no primeiro semestre de 2017, e o parque de exposições, em dezembro do mesmo ano.
Vista aérea da região da usina de Candonga, em 29 de outubro de 2016 (Foto: Reprodução/ TV Globo).
O restante da lama removida – cerca de 380 mil metros cúbicos de rejeito – saiu de Candonga, onde, de acordo com estimativa divulgada pela própria Samarco no plano de recuperação, 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeito se instalaram. Em julho, dragas começaram a sugar a lama, que é lançada em cinco pontos ao longo da represa. Segundo a Fundação Renova, a Samarco também comprou um terreno perto da usina e pretende levar para lá os sedimentos. Denominada Fazenda Floresta, a área está em fase de sondagens. A previsão é que comece a ser usada em janeiro de 2017.

Ainda de acordo com a fundação, a expectativa é que a dragagem atinja 1,3 milhão de metros cúbico de rejeito até julho de 2017. Mas, com a chegada do período chuvoso, o Ibama teme que mais lama chegue ao reservatório, apesar de descartar risco o de rompimento. Em um cenário pessimista, o órgão considera que outros 4 milhões de metros cúbicos de rejeito possam ser carreados para lá e que a lama possa seguir caminho pelo Rio Doce, chegando, novamente, ao mar do Espírito Santo. Para os técnicos que assessoram o MPMG, ainda não está claro o que fazer com o restante da lama.
Em Barra Longa, Rio do Carmo é tingido pelo alaranjado do rejeito de minério no encontro com as águas do Gualaxo do Norte (Foto: Raquel Freitas/G1).

CHUVAS TRAZEM MAIS RISCOS

Com tanta lama ainda espalhada e com chegada de mais uma temporada de chuva, a preocupação com a segurança aumenta, e o tempo para Samarco implementar medidas para reduzir os riscos diminui. Pesquisadores dizem que a chuva pode fazer com que uma parcela do rejeito que está às margens dos rios seja levada para dentro d’água, afetando mais uma vez a cadeia ecológica. Nas águas alaranjadas, as praias de minério estão por toda parte.
Na área de Bento Rodrigues, Samarco constrói diques para reforçar segurança e evitar carreamento de rejeitos (Foto: Raquel Freitas/G1).
“Se isso não for retirado, em toda época de chuva, vai ter lavagem de parte do material. Parte disso vai encontrar a calha do rio e vai, de novo, gerar turbidez na água. E isso vai chegar ao oceano. (...) Você está impedindo que a recuperação se inicie. Ou, uma vez iniciada, ela vai parar sempre no ciclo chuvoso”, explica o coordenador do Instituto Prístino, Flávio Fonseca do Carmo, que assessora os trabalhos do Ministério Público.

Em Bento Rodrigues, as memórias dos antigos moradores dividem espaço com as obras para construção de mais um dique, o S4. Motivo de polêmica e de questionamentos na Justiça, a estrutura, conforme a mineradora, é fundamental para evitar um novo carreamento de rejeitos. (...) carreamento de rejeitos. Outra obra é feita na área do Complexo de Germano, onde é construída a nova barragem de Santarém. Ela fica ao lado da antiga barragem de mesmo nome, onde parou parte da lama de Fundão, e terá como finalidade conter a possível descida da lama remanescente no vale.

A professora Bernardete Domingos Atanásio, de 36 anos, mora em Barra Longa, cidade que fica a cerca de 60 quilômetros de Mariana e para onde a lama também levou destruição. Ela diz que o medo do que pode ocorrer quando a chuva chegar tem tirado seu sono.

Como os moradores, o promotor também se diz angustiado com o fim da estiagem. Ele destaca que não despreza as medidas adotadas pela Samarco para contenção da lama, mas questiona a forma como a empresa vem implementado essas ações. “Agora, isso é o mínimo que se podia esperar de alguém responsável pelo maior dano ambiental da nossa história. Então, não dá para aplaudir o que está sendo feito. Pelo contrário, tudo é feito de maneira emergencial, depois do tempo. Então, me parece que a Samarco reagiu e reage de maneira improvisada”, argumenta.
Placas alertam sobre perigo em Bento Rodrigues, localidade devastada pelo 'mar de lama' (Foto: Raquel Freitas/G1)

EXEMPLO DA ESPANHA

Apedido do MPMG, Flávio Fonseca do Carmo e Luciana Hiromi Yoshino Kaminoque, do Instituto Instituto Prístino, analisaram estudos sobre outros desastres ambientais, ocorridos em diversas partes do mundo. Nos casos elencados, as ações depois dos incidentes foram divididas em três fases: obras emergenciais, limpeza e recuperação ambiental. Para eles, no caso de Fundão, os trabalhos se encontram, predominantemente, na primeira etapa.
Um dos exemplos destacados pelos pesquisadores como um caso bem-sucedido é o desastre de Aznalcóllar, na região da Andaluzia, na Espanha. Em abril de 1998, uma barragem de rejeitos da mineração de ouro, mantida pela empresa sueca Boliden AB, rompeu-se, liberando material tóxico e colocando em risco o Parque Nacional e Natural de Doñana.

Segundo os biólogos, neste episódio, os rejeitos foram retirados do meio ambiente e levados para uma cava da mineradora. De acordo com uma publicação da WWF, em um ano, 7 milhões de metros cúbicos de material foram removidos e colocados na estrutura. Ainda conforme a ONG, também em 1999, outra limpeza foi feita em áreas em que concentração residual de metal ainda não havia atingido os níveis recomendáveis, e mais 1 milhão de metros cúbicos de rejeito foi transportado para a cava.

REJEITOS PODEM GERAR RENDA

Pesquisadores buscam formas de reaproveitar o rejeito de minério. O professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Ricardo Fiorotti, por exemplo, estuda como transformar a lama em ferramenta de resgate social e ambiental. O pesquisador coordena um projeto que recebeu cerca de R$ 60 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). O objetivo é investigar possibilidades de reciclagem e reutilização do rejeito para produção de materiais de construção, como peças de concreto, tijolos e até tintas orgânicas.
Em Gesteria, como em outras localidades tomadas pelo 'mar de lama', paisagem continua encoberta pela lama (Foto: Raquel Freitas/G1).
“Vamos olhar a bacia do Rio Doce como engenheiros, em primeiro lugar, e, depois, como empreendedores, porque a gente quer descobrir se é possível transformar esse material que está depositado ao longo da bacia do Rio Doce em fonte de renda, e modificar, de verdade, a vida daquelas pessoas, que foi tão abruptamente alterada”, explica.
Apesar de o projeto de pesquisa do professor prever a remoção do rejeito de minério de locais afetados pelo desastre ambiental, ele afirma considerar mais razoável a implementação de esforços para recomposição da natureza do que a retirada total da lama. Além de citar a dificuldade de se encontrar uma solução para remoção, transporte e disposição do material, Fiorotti acredita que esse processo pode trazer ainda mais danos para as comunidades já afetadas.
Professor da Ufop estuda possibilidades para reutilização da lama depositada na bacia do Rio Doce (Foto: Raquel Freitas/G1).
“Se você tirar essa lama de lá e levar para um aterro industrial, quem vai ganhar é o dono do aterro industrial, o dono da máquina e o dono do caminhão. A população vai ganhar o quê? (...) Eles vão ficar sem nada. Eles vão ficar cinco anos sem poder usar aquela região, porque vai ter máquina trabalhando”, argumenta. Para o professor, mais eficaz seria se o valor necessário para a retirada de toda a lama fosse reinvestido nas localidades.

De acordo com a Fundação Renova, entre as opções de manejo do rejeito, estão a remoção ou a conformação e tratamento do material no próprio local. “A escolha da melhor forma de recuperação ambiental deve levar em conta os impactos das atividades e a eficácia das mesmas para se obter os resultados desejados”, diz a entidade.

Nos pontos em que houver remoção, a intenção da fundação é adotar metodologia semelhante à escolhida para Barra Longa e Candonga, dispondo o material “definitivamente em depósitos preparados para este fim, contendo todos os controles ambientais e prevendo seu uso alternativo futuro”. Para a área de Bento Rodrigues, a retirada de 1 milhão de metros cúbicos de rejeito já está prevista. Os coordenadores do Instituto Prístino dizem que o discurso ainda está distante do que é visto na prática. “Eles têm que buscar uma alternativa, ou melhor, uma solução definitiva. Nós não temos a resposta”, diz a bióloga Luciana Kaminoque.

LEMBRANÇAS DA TRAGÉDIA

As marcas da altura atingida pela lama da barragem de Fundão em Barra Longa (MG) já não são mais evidentes no portal que sustenta o nome da cidade, assim como em postes e muros do entorno da praça central. Com cerca de 7 mil habitantes, o município é um dos mais de 40 atingidos pela tragédia. Lá, os sinais dos trabalhos de recuperação estão para todo canto e no horizonte embaçado pela poeira das obras. Mesmo com a revitalização em curso, os moradores ainda enfrentam transtornos e traumas emocionais, que chegaram com o “mar de lama”.
Tomada pela enxurrada de rejeito em novembro de 2015, Praça Manoel Lino Mol foi revitalizada e, mesmo antes da reinauguração, marcas da lama já não eram mais perceptíveis (Foto: Raquel Freitas/G1).
A professora Bernardete Domingos Atanásio, de 39 anos, conta que seu filho, Marcus Vinícius, de 5, ficou em estado de choque depois da tragédia e desenvolveu alergias. Hoje mal tem vontade de sair para ir à aula e até para brincar. “Isso tudo mexeu demais com ele, demais mesmo. Agora, ele não quer nada.”

A lama atingiu Barra Longa na madrugada do dia 6 de novembro, cerca de dez horas após a barragem se romper. As lembranças daquele dia seguem vivas para a professora, assim como as consequências. “Quando foi meia-noite, passou um carro buzinando pela rua afora, dando um alerta. Diz que era o prefeito que mandou avisar que era para todo mundo sair, porque o negócio era feio”, recorda. Por volta das 2h, os moradores da zona urbana testemunharam a força do “mar de lama”, que já havia demonstrado brutalidade no distrito de Gesteira, onde foram destruídas oito casas. Os escombros permanecem sob a lama seca.

“Na hora que chegou aqui fez o estrago todo na cidade, mas deu tempo de todo mundo sair de casa”, conta a professora, que se abrigou com uma irmã. Enquanto os restos de minério solapavam as ruas de Barra Longa, o filho de Bernardete dormia. Foi na manhã seguinte que Marcus Vinícius viu de perto os efeitos do maior desastre ambiental do país. “Na hora que a gente saiu de casa, ele não viu aquilo tudo acontecendo, estava meio sonolento, né? Mas, no sábado de manhã, meu Deus, ele acordou em estado de choque”, afirma.

PROBLEMAS DE SAÚDE

Quatro dias após a lama chegar a Barra Longa, uma alergia atacou os pés e as pernas de Marcus Vinícius. Para sua mãe, a professora Bernardete Atanásio, isso foi resultado do contato com a lama. Foi preciso buscar tratamento com um especialista na vizinha Ponte Nova. Depois, vieram as alergias respiratórias, bronquite, uso diário de bombinha. No dia a dia do menino, também foram incluídas consultas com psicólogo e psiquiatra, além de prescrição de remédio tarja preta.
Bernadete Domingos Atanásio mostra fotos da alergia que atacou pés e pernas do filho Marcus Vinícius (Raquel Freitas/G1)
A professora não é a única que teve a vida afetada. Um grupo de moradores foi criado há dois meses para discutir questões relativas à saúde. Quem também faz parte é Diana Jaqueira Fernandes, de 33 anos, que se mudou para a cidade para fazer a pesquisa do doutorado em psicologia social, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A percepção da psicóloga é que problemas de saúde não são pontuais em Barra Longa. “A questão de saúde está silenciada, e as pessoas vão se cuidando como podem. Algumas se cuidam e outras não se cuidam porque não tem recursos”, diz.

Somente nos primeiros cinco meses de 2016, a prefeitura da cidade registrou aumento de cerca de 1.000% nos atendimentos em geral, que saltaram de 22, entre janeiro e maio de 2015, para 289, no mesmo período deste ano. Mas moradores dizem que falta atendimento especializado no município e, muitas vezes, têm que viajar para outras cidades e pagar por consultas particulares.

A Samarco afirma que o rejeito não traz riscos à saúde, sendo classificado como inerte e não perigoso pela norma brasileira NBR 10.004. “Só que o rejeito que está aqui não é o rejeito lá da barragem. O que está aqui é um rejeito que trouxe animal, casas, pessoas mortas. E é um processo de desequilíbrio do meio ambiente muito grande”, afirma a psicóloga.

PILHAS DE RECEITAS E LAUDOS

Com a voz rouca e por vezes interrompida pela tosse, a comerciante Edivânia de Oliveira, de 36 anos, conta sobre as diversas vezes que foi a Ponte Nova levar a filha caçula, de 4, ao médico. Ana Clara está fazendo tratamento para alergia respiratória e precisa tomar todos os dias doses de uma vacina. Para a comerciante, a situação da filha é agravada pelas obras de recuperação de Barra Longa.
Moradoras de Barra Longa reclamam de problemas de saúde. Da esq. Para dir.: Diana Jaqueira Fernandes, Maria Geralda Bento, Edivânia de Olive ira, Lucas da Silva, Maria Aparecida Silva Neves, Simone Maria da Silva, Bernadete Domingos Atanásio e a pequena Sofia Silva Marques (Foto: Raquel Freitas/G1).
Uma semana antes da data em que se completa um ano que a lama atingiu a cidade, a Samarco entregou para a população a nova Praça Manoel Lino Mol, o que, segundo o diretor-presidente da empresa, Roberto Carvalho, não é motivo para comemoração. Segundo a mineradora, 90% das obras previstas de reconstrução e reparação ficaram prontas nestes 12 meses. Apesar disso, Carvalho admitiu que ainda há muito a ser feito.

A cidade se transformou em um canteiro de obras, e onde há obras, há transtornos. Ao mesmo tempo em que a poeira sobe, castigando o organismo e ofuscando a paisagem, caminhões-pipa seguem num vai e vem pelas ruas, mangueiras ajudam comerciantes a proteger estoques e um equipamento lança um jato de água, que se espalha como uma névoa sobre a montanha de rejeito no parque de exposições. As tentativas para amenizar as consequências do pó, no entanto, parecem não ser suficientes.
Poeira que embaça horizonte de Barra Longa é motivo de reclamação de moradores (Foto: Raquel de Freitas/G1).
“Eu moro na rodovia, perto do encontro dos rios. A poeira nossa é dia e noite porque, no centro, os caminhões passam a 30, 40 km/h. Lá, como é rodovia, eles passam a 60, 70 km/h. Eu não tenho como colocar uma roupa para secar durante o dia. Eu tenho que limpar a casa de manhã, à tarde e à noite. Tenho que trocar roupa de cama e toalha todos os dias”, diz Edivânia.

Assim como a comerciante, outras mães de Barra Longa passaram a ter o cotidiano tomado por viagens e gastos extra para tratamento de alergias. A auxiliar de educação básica, Simone Maria da Silva, de 39 anos, coleciona receitas e diagnósticos de Sofia, de 1 ano e 9 meses, assim como a professora Maria Aparecida Silva Neves, de 53, que guarda toda a papelada que se acumula a cada nova consulta de Lucas, de 15.

A Samarco diz que forneceu insumos hospitalares, medicamentos e equipamentos médicos, além de diversos profissionais de saúde, como médicos generalistas, psiquiatra, enfermeiro, psicólogos e assistentes sociais. A mineradora afirma também que oferece ao munícipio uma ambulância com condutor e enfermeiro socorrista para atendimentos e remoções de urgência e de emergência. Ainda segundo a empresa, foram contratadas consultorias em saúde pública e em saúde mental, para apoiar e capacitar tecnicamente a Prefeitura de Barra Longa.
A cada consulta do jovem Lucas da Silva, receitas, laudos e recibos de medic amentos se acumulam (Foto: Raquel Freitas/G1).

TRISTEZA ABATE IDOSOS

Além de mudanças na saúde das crianças e jovens, moradores relatam impactos na vida de idosos nos últimos 12 meses. Edivânia, por exemplo, afirma que a tristeza tomou conta do pai dela, que passa por tratamento psiquiátrico. “Ele trabalhava, ele tinha o quintal todo dele para cuidar, mas ele perdeu todo o quintal dele, só ficou a casa. Perdeu as galinhas, os porcos, os pés de fruta, mandioca. É isso que adoeceu ele. No princípio, ele só comia e dormia, não saia de casa”, lamenta a comerciante.
A chegada da lama também mudou a rotina de Maria Geralda Bento que, aos 78 anos, recorda que andava para cima e para baixo vendendo roupas, tapetes, entre outros artigos. Hoje, não mais. “Dessa idade, dessa magreleza, eu rodava essa Barra Longa todinha, vendendo tudo. Acabou que a lama veio e levou tudo. O que que eu vou fazer? Eu não tenho nem prazer de fazer tapete mais”, conta.

A enxurrada de rejeito obrigou Maria Geralda a se mudar, às pressas, da zona rural para a área urbana da cidade. A idosa, que morava em uma das oito casas destruídas em Gesteira, só teve coragem de voltar ao distrito cinco meses depois da tragédia. Até hoje, ela tenta encontrar os tachos de cobre, que acredita estarem encobertos e camuflados pela terra.

Em junho deste ano, os moradores da comunidade escolheram o terreno onde será reerguida a parte destruída de Gesteira. A previsão da Samarco é que a entrega dos imóveis ocorra até 2019. Atualmente, Maria Geralda vive em um imóvel alugado pela mineradora, mas está temerosa porque, segundo ela, o pagamento do aluguel estaria atrasado. A espera pela casa nova é marcada pelo desânimo. “Eu não tenho saúde mais, não. Minha vida é chorar, não durmo, estou só emagrecendo. Era gostoso demais minha casa, era tudo direitinho. Agora, eu não tenho alegria na minha vida mais”, desabafa. Segundo a mineradora, a situação da idosa está em regularização, e novas opções de imóvel serão apresentadas a ela.
A idosa Maria Geralda Bento perdeu a casa que morava em Gesteira e agora diz não ter mais alegria (Foto: Raquel Freitas/G1).
No entorno da casa de Maria Geralda, escombros, pedaços de móveis e objetos que pertenciam a ela e aos vizinhos se misturam ao rejeito acumulado, criando um relevo onde é difícil caminhar. Os pés da aposentada Creusa da Silva Gomes, de 63 anos, parecem já estar acostumados com os obstáculos da nova geografia de Gesteria; os olhos, no entanto, não. Na casa da aposentada, na parte alta do distrito, a lama não chegou. Já na plantação de Creusa, que ficava às margens do Rio Gualaxo do Norte, legumes, frutas e hortaliças não brotam mais. Até o fim da década de 1970, quando uma enchente atingiu o distrito, ela morava no terreno. Mesmo depois de se mudar, manteve a horta, que servia para o sustento da família.

Sem a plantação, Creusa viu o orçamento mensal apertar. Ela diz que as aposentadorias dela e do marido, que somam dois salários mínimos, passaram a também ter que dar conta de um gasto extra de cerca de R$ 600 todo mês. Apesar de alegar prejuízo na renda, a aposentada afirma que, devido ao fato de a plantação ser de subsistência, não teve direito ao cartão de auxílio, distribuído para quase 250 famílias em Barra Longa.

Segundo a Samarco, “os critérios para recebimento desse cartão foram definidos junto ao Ministério Público e estão relacionados às atividades laborativas ou ao deslocamento físico causado pelo evento”. Ainda conforme a empresa, os cartões não têm caráter indenizatório, e a moradora poderá participar do “Programa de Indenização Mediada” realizado pela empresa.

Mesmo passando um ano bem perto da destruição, relembrar a tragédia e pensar no futuro ainda não é fácil para ela. “Sinto saudade, saudade do lugar, das plantas, porque hoje a gente vê só isso – lama, mato – sem ter um retorno. Esperança a gente tem, mas não tem certeza porque eles só fazem reunião, reunião... Não decidem uma coisa certa, eles ficam enrolando a gente. Hoje em dia, a gente não conhece o coração dos outros, coração é terra que ninguém vai. Então, a gente tem que esperar o que Deus prepara pra gente”, lamenta Creusa.
Mulher ainda tem esperança de ver o Rio Gualaxo do Norte novamente limpo (Foto: Raquel Freitas/G1).

CRÉDITOS:

Reportagem: Raquel Freitas (texto e fotos) e Thais Pimentel (vídeo)
Edição: Cintia Paes (conteúdo), Amanda Polato (texto) e Humberto Trajano (vídeo)
Design: Fernanda Garrafiel e Rodrigo Cunha 
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