Uma epidemia de heroína com características muito diferentes daquela que atingiu grandes cidades dos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 vem matando cada vez mais americanos e se tornou um dos temas de destaque na campanha para a eleição presidencial, em novembro.
Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças, ou CDC, na sigla em inglês), ligado ao Departamento de Saúde dos Estados Unidos, o número de mortes por overdose de heroína ou de analgésicos opiáceos (remédios contra dor obtidos com receita médica e que agem no cérebro de maneira semelhante à heroína) aumentou 200% desde 2000.
Somente em 2014, overdoses mataram 47.055 pessoas no país, mais do que em qualquer outro ano e mais do que as mortes no trânsito.
Desse total, 61%, ou 28.647 mortes, foram associadas a overdose de heroína ou opiáceos.
Segundo o CDC, as mortes por heroína mais do que triplicaram desde 2010.
Perfil
Além dos números alarmantes, o que vem chamando a atenção é o perfil das vítimas.
"A duas últimas grandes epidemias de drogas nos Estados Unidos, de cocaína e crack nos anos 1980/1990 e de heroína nos anos 1960/1970, afetaram desproporcionalmente negros e latinos que viviam em comunidades de baixa renda, especialmente nas grandes cidades", disse à BBC Brasil o médico especialista em abuso de drogas Andrew Kolodny, da Universidade Brandeis, no Estado de Massachusetts.
"A atual epidemia é o oposto. Atinge principalmente pessoas brancas que moram em bairros residenciais de classe média, cidades pequenas ou zonas rurais", destaca Kolodny, que é diretor médico da Phoenix House, organização dedicada ao tratamento de dependência de drogas.
Calcula-se que 90% dos americanos que experimentaram heroína pela primeira vez na última década sejam brancos.
"As taxas de dependência e mortes por heroína são muito mais altas entre a população branca", ressalta Kolodny.
Origem
Uma das explicações para essa diferença de perfil pode estar relacionada à origem da epidemia, ligada ao aumento no número de analgésicos opiáceos receitados pelos médicos americanos a partir da década de 1990.
"Pacientes brancos têm mais probabilidade de receber uma receita de opiáceo. Há indicações de que médicos são mais cautelosos ao receitar essas drogas para pacientes negros", salienta Kolodny.
Segundo o CDC, o número e analgésicos opiáceos receitados nos Estados Unidos quadruplicou desde 1999.
"O que deu início a essa epidemia foi a aprovação pela FDA (Food and Drug Administration, agência do governo responsável pelo controle de medicamentos) de remédios muito poderosos contra a dor nos anos 1990", disse à BBC Brasil o doutor em psicologia Adam Brooks, do Treatment Research Institute, instituto de pesquisa sobre abuso de drogas, na Pensilvânia.
Cautela
Kolodny observa que essas drogas eram vistas inicialmente como alternativa para tratar apenas pacientes terminais, com doenças como câncer.
"Na época, os médicos eram muito cautelosos ao receitar", afirma Kolodny.
No entanto, várias campanhas começaram a ser lançadas, com o apoio de especialistas médicos, hospitais e órgãos reguladores, dizendo que os médicos não deveriam permitir que seus pacientes sofressem dor desnecessariamente.
"Uma organização médica nacionalmente reconhecida lançou um relatório dizendo que a dor não estava sendo tratada adequadamente, que essas drogas podiam ser usadas de maneira segura e havia pouca evidência de que levassem a abuso", disse à BBC Brasil o especialista em abuso de drogas Theodore Cicero, professor de psiquiatria da Universidade Washington, em Saint Louis.
Preço
Com o tempo, esses analgésicos opiáceos passaram a ser receitados cada vez mais para problemas crônicos, como dor na coluna ou dor de cabeça, e muitos pacientes acabaram viciados.
"Muitos pacientes chegam a um ponto em que o médico reconhece que têm dependência e para de receitar. E eles acabam considerando usar heroína, que custa muito mais barato do que um comprimido no mercado negro", diz Brooks.
Segundo o CDC, "o aumento da oferta, a queda nos preços e a pureza da heroína nos Estados Unidos" estão entre os principais motivos para o crescente uso da droga e aumento de overdoses.
Assim, uma droga que no passado era vista como exclusiva de junkies ou veteranos retornando da Guerra do Vietnã e restrita a grandes cidades acabou se infiltrando em comunidades de todo o país.
Eleições
O alcance da epidemia faz com que ela cada vez mais seja reconhecida como um problema de saúde pública e acabou provocando mudanças no tom da campanha presidencial.
Diante de pesquisas que indicam que quatro em cada 10 americanos conhecem alguém dependente de opiáceos, pré-candidatos democratas e republicanos têm se esforçado para demonstrar empatia com essa fatia do eleitorado.
O ex-governador da Flórida Jeb Bush já falou sobre a dependência de sua filha, Noelle. "Nunca imaginei ver minha linda filha na cadeia", disse Bush. "Ela passou pelo inferno, assim como sua mãe e eu."
Nesta quarta-feira, o senador texano Ted Cruz lembrou a morte de sua meia-irmã por overdose de comprimidos. "Ela passou anos entrando e saindo da prisão. Ela era uma pessoa bonita e encantadora que tomou uma série de decisões erradas."
No fim do ano passado, em um vídeo que viralizou na internet, o governador de Nova Jersey, Chris Christie, falou sobre a morte de um colega de faculdade devido a overdose de opiáceos. "Pode acontecer com qualquer um. E por isso temos que começar a tratar as pessoas nesse país, e não prendê-las", disse.
Mudança de atitude
Ao contrário de defender prisão para os usuários, como em em epidemias anteriores, políticos de ambos os partidos e o governo agora concordam que a dependência é uma doença e que a melhor solução é oferecer tratamento e prevenção.
"Quando o problema de dependência era mais grave entre pobres e minorias, acho que era mais fácil para políticos e governantes criminalizar os viciados", observa Kolodny.
"Agora temos uma epidemia que afeta as famílias de policiais, advogados, juízes, políticos, então eles começam a ver a dependência de maneira diferente. E isso está ajudando a mudar as atitudes em relação ao vício", diz.
Alguns críticos reclamam que muitos políticos não defendem a mesma compaixão para viciados em cocaína ou crack, que afetam mais negros e pobres.
Mas, apesar disso, a mudança de tom em relação à heroína é bem recebida por especialistas.
"Tenho esperança de que essa mudança de foco traga mudanças na maneira como os recursos são gastos", ressalta Brooks.
Soluções
O presidente Barack Obama, que já foi criticado por especialistas como Kolodny por ignorar a epidemia, também mudou de tom nos últimos meses.
Em outubro, Obama falou publicamente sobre o problema em viagem ao Estado da Virgínia Ocidental, onde apresentou proposta de aumentar em US$ 133 milhões os gastos no combate à dependência e ampliar o acesso a tratamento e prevenção.
Na semana passada, a Casa Branca anunciou uma iniciativa para combater o problema em áreas rurais, envolvendo vários departamentos do governo, com coordenação do ministro de Agricultura, Tom Vilsack.
Especialistas concordam que prevenção e tratamento são as melhores maneiras de combater a epidemia.
"Para prevenir novos casos, é preciso fazer com que médicos receitem de maneira mais cautelosa", diz Kolodny.
Cicero sugere um grande esforço educacional, como o visto em relação ao fumo.
"É preciso que haja o reconhecimento de que esse é um problema em nível nacional", diz Cicero.
Para Brooks, é importante lembrar que essa é uma doença de longo prazo.
"Temos que ter o cuidado de não gerar uma expectativa na população de que esse problema pode ser resolvido da noite para o dia", diz.
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