Rio de Janeiro
No dia em que não consegue levar sua própria agulha ao hospital, Jorge Pereira, de 54 anos, sabe que lhe espera um procedimento longo e doloroso. Jorge convive há quatro anos com os rins e o fígado transplantados e hoje depende de um tratamento semanal para retirar líquidos do seu abdômen. “Os hospitais deixaram de comprar agulhas tão grandes porque são mais caras, mas as pequenas, depois de determinada quantidade de líquido, se dobram e tem que trocar. Assim acabo furado até cinco vezes”, lamenta na recepção do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
A crise nos hospitais do Rio chegou a um limite em que os pacientes levam as fraldas e as agulhas de casa. O Pedro Ernesto, referência em radioterapia e quimioterapia, maternidade de alto risco, cirurgia cardíaca, hemodiálises e transplantes, funciona hoje na precariedade. O principal problema é que os serviços de limpeza, lavanderia, manutenção, segurança e cozinha deixaram de funcionar regularmente porque os funcionários terceirizados, que ganham pouco mais que um salário mínimo, não recebem há dois meses. Assim, as lâmpadas que quebram não são trocadas, os aparelhos médicos não são consertados, as pias ficam entupidas, os banheiros, sujos e as lixeiras, cheias.
À falta de pagamento do Estado, que reconhece dever 1,4 bilhão ao sistema de saúde e arrasta uma media de atraso nos pagamentos às empresas de até quatro meses, somam-se os atrasos da Prefeitura, denuncia a diretoria do hospital. Ela é responsável por depositar cerca de 20% do orçamento do centro, repassado a ela pelo SUS, e que corresponde aos procedimentos realizados pelo centro. “A justificativa é que os recursos estão sendo destinados às emergências dos hospitais municipais [sobrecarregadas com as dificuldades dos centros estaduais]”, afirma o diretor Edmar Santos, recém empossado. A Prefeitura, que não informa das datas específicas de quando os repasses devem ser feitos, afirma que os pagamentos estão "dentro do cronograma".
É com esse dinheiro, cerca 3,5 milhões de reais mensais, que se compram os insumos, hoje em falta na enfermaria de doenças infecciosas, onde não há fraldas, à de pediatria, onde não há gazes esterilizadas para fazer curativos. Uma lista na central de distribuição de material do centro já avisa no balcão: “Não há: fraldas, torneirinhas [que permitem a infusão intravenosa de várias soluções], Transofix [dispositivo para mistura de medicamentos em frascos], Jelco [cateteres], Nasodrem [para o tratamento da sinusites], lâminas de bisturi, coletor fechado [de urina]...” “Sempre vivemos momentos cíclicos em que falta alguma coisa, mas chegar a zerar as gazes é chegarmos a uma situação limite”, explica uma das responsáveis pelo serviço de enfermaria.
Os tapumes para tampar algumas janelas, goteiras, sacos de lixo em algumas esquinas e falta de manutenção geral de paredes e do sistema elétrico e hidráulico revelam que a crise não é de hoje. “Isto já vem acontecendo há anos, mas a situação hoje é crítica”, revela um veterano doutor. “Esse hospital, por ser universitário, tem que ter um tratamento diferente dentro do poder público, e ele, apesar de ser referência da rede, está sendo tratado como mais um centro”, reclama seu diretor.
Nos corredores, a calma se estende enquanto o hospital se esvazia. O centro, que conta com cerca de 480 médicos, 380 enfermeiros e mais de 1.100 técnicos de enfermagem, resolveu suspender no sábado novas internações. As cerca de 25 cirurgias realizadas por dia também foram canceladas na sexta-feira, porque o teto desabou devido à infiltração da chuva. Nenhum aparelho foi danificado, mas, sem faxineiras, a limpeza das salas estava sendo feita só nesta quinta-feira, quase uma semana depois. Os professores e doutores chegaram a discutir a possibilidade de eles limparem para retomar os procedimentos, mas finalmente a empresa responsável pelo serviço enviou funcionários de fora do hospital. “Está todo contaminado, vamos demorar muito mais em acondicionar todo de novo”, lamentavam os técnicos de enfermagem na correria do mutirão de limpeza. Não há previsão para voltar à normalidade e a sala de cirurgias, se for possível funcionar na semana que vem, será apenas para procedimentos de urgência.
Sem receber, a auxiliar de serviços gerais Ana Lucia Alla dos Santos resolveu formar parte da escala de serviços mínimos que atende o hospital, enquanto muitos dos seus colegas, como já fizeram no mês de setembro também por falta de pagamento, estão na entrada de braços cruzados ou com um microfone na mão reclamando seus direitos. Ela faz o básico, recolhe o lixo, passa um paninho, mas não limpa as paredes do banheiro nem lava o chão. Tem 59 anos e recebe 980 reais por mês. "Estou devendo o aluguel, a luz e já cortaram meu celular”, lamenta Ana Lucia, que diz não ter recebido o salário de dezembro, nem metade do décimo terceiro. “Eu tive essa consideração com os pacientes, mas isto não pode continuara assim".
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