A cultura da tolerância à violência policial que originou a frase "bandido bom é bandido morto" – cultuada por alguns segmentos da sociedade – pode estar contribuindo para a atuação de grupos de extermínio integrados por membros de forças de segurança.
Nesse contexto, governantes e autoridades de segurança pública têm que passar um recado claro aos agentes policiais de que não tolerarão abusos, segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
A discussão ocorre pouco mais de uma semana após a maior chacina do ano no Estado de São Paulo, que deixou 18 mortos nas cidades de Barueri e Osasco, na periferia da capital.
Uma das principais linhas de investigação das autoridades é que policiais militares ou guardas civis tenham cometido o crime para vingar assassinatos recentes de colegas por criminosos. Contudo, nenhum suspeito foi oficialmente identificado ou preso.
"A tolerância da sociedade a uma polícia violenta contribui para a criação de um terreno fértil para o surgimento de grupos de extermínio (integrados por policiais)", afirmou a pesquisadora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e associada ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
Segundo ela, um dos reflexos dessa posição da sociedade é que jurados em tribunais civis tendem a absolver muito mais policiais acusados de homicídio do que a própria Justiça Militar.
Outro fator que mostra essa tendência é o fato de que cada vez mais políticos vêm sendo eleitos com discursos baseados em ações robustas da polícia para o combate à violência.
Nas eleições do ano passado, 55 policiais militares, civis ou federais foram eleitos nas Assembleias estaduais e na Câmara Federal – contra 44 no pleito anterior. Muitos deles exploraram o combate à criminalidade em suas campanhas eleitorais.
"Os políticos que se declaram contra as práticas (de violência por policiais) acabam fragilizados em termos eleitorais", afirmou Dias.
Para ela, ao não condenar de forma enérgica os abusos, as autoridades podem passar uma mensagem implícita às forças de segurança de que toleram a violência policial – o que estimularia mais abusos.
Em relação à chacina da semana passada, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse à imprensa que se for comprovada a participação de policial, "ele vai ser tratado como um criminoso".
Para Rafael Custódio, da organização Conectas Direitos Humanos, a tolerância à violência policial é uma questão cultural originada na sensação de insegurança da sociedade.
"Há um consenso de que o Estado não é capaz de garantir a segurança, então muitas pessoas veem isso (abusos policiais) como violência contra o 'inimigo'. É a sensação de que alguém está fazendo alguma coisa", afirmou.
Porém, segundo ele, essa "legitimidade" dada aos maus policiais por setores da sociedade não pode ser adotada pelas autoridades.
"O Estado tem que reafirmar a legalidade. O Estado não pode ter emoção, tem que pautar suas ações pela legalidade", disse.
'Isso tem de ser reforçado todos os dias'
O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo, afirmou que o medo motiva parte da sociedade a apoiar abusos por parte de maus policiais.
Ele disse, porém, que não é possível afirmar que a tolerância da sociedade à violência policial motive maus policiais a se envolverem em chacinas.
Segundo ele, as autoridades da Segurança Pública devem fornecer treinamento adequado e passar mensagens claras a seus comandados de que não tolerarão abusos.
"Eu comandei um batalhão por mais de cinco anos. O recado para o policial tem que ser claro: eles têm que observar os limites da lei. Isso tem que ser reforçado todos os dias, independente de a população estar aplaudindo ou vaiando", disse.
Ele afirmou que os casos de abusos por parte de policiais são exceções em um cenário em que a polícia de São Paulo realiza mais de 1 milhão de abordagens de suspeitos por mês no Estado.
Guerra entre polícia e criminosos
Os especialistas concordaram ao afirmar que, caso seja comprovada uma relação direta de agentes das forças de segurança com a chacina da semana passada, ela pode ser interpretada como consequência da "guerra" que vem sendo travada entre a polícia e o crime organizado no Estado de São Paulo ao menos desde 2012.
Nesse cenário, ações violentas da polícia são vingadas por criminosos que passam a atacar agentes das forças de segurança fora do horário de serviço. Esses atentados geram então novas retaliações da polícia – por vezes por meio de ações ilegais contra suspeitos.
José Vicente da Silva Filho afirmou que, em sua opinião, o envolvimento de policiais em chacinas não seria algo muito comum.
Mas disse que se for comprovado no caso ocorrido na semana passada que maus policiais agiram para vingar as mortes de um policial militar ou um guarda civil, ambos assassinados dias antes, a ação pode ser uma tentativa de dar um "recado", de "não se metam com a polícia".
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