sexta-feira, 2 de março de 2018

Mulher Carioca Em Carta Aberta Escancara A Violência No Rio: Essa Cidade Já Foi Maravilhosa Um Dia.




  • 02/03/2018




Alice Queiroz
Penso em marcar um chopp com uma amiga que não vejo há anos na Barra da Tijuca, a 15 minutos da minha casa.
Lembro que precisarei passar pela Cidade de Deus na volta, em ambos os caminhos possíveis.
Sinto medo. Desisto.
Preciso ir pra biblioteca estudar. Todos os dias. Fica no Maracanã. Ando até o ponto mais distante da minha casa porque o mais próximo é deserto demais pra eu ficar esperando sozinha. O ônibus passa pela serra Grajaú-Jacarepaguá. Semana passada fiquei presa no tiroteio dentro do ônibus nessa mesma serra, às 8h da manhã.
Sinto medo. Vou com medo mesmo.
Quando não passo pela serra, a origem é o Méier. O ônibus passa pelo Lins. Tiroteio. A outra alternativa é o trem. Preciso andar 10 minutos até a estação sozinha. Assaltos a pedestres quase sempre no caminho.
Sinto medo. Vou com medo mesmo.
Entrando na biblioteca, respiro aliviada. À tarde, preciso de um café pra me manter acordada. Vou à cafeteria que fica a 10 passos da biblioteca. Escondo o celular na roupa pra não ser assaltada a facadas por crianças que roubam transeuntes todos os dias aqui nessa mesma rua.
Sinto medo. Vou com medo.
Um jornalista sobe um morro pra fazer uma matéria. Os traficantes o torturam por mais de duas horas até se convencerem de que ele não era policial. Ele sai com inúmeros machucados. No corpo e na alma. Me arrepio ao ouvir a história e ao ouvir que ele terá que passar por uma cirurgia. Mas sai vivo. Graças a Deus.
Um outro amigo muito próximo sobe outro morro pra levar uma amiga em plena crise de epilepsia pra casa. Quando desce, a pé, pra pegar o ônibus, é interceptado por traficantes que o empurram no chão e apontam uma arma pra sua cabeça até terminarem de fuxicar sua carteira e seu celular pra se convencerem, também, de que ele não é policial, sob gritos de “apaga logo ele” a todo o tempo. Mas saiu vivo. Graças a Deus.
Saio à noite, já de olho na hora pra não voltar tarde. Na volta sinto fome. Penso em parar pra comer um lanche.
Lembro que um grande amigo, uma das melhores pessoas que já conheci, foi brutalmente assassinado enquanto aguardava o que seria sua última refeição. Não subiu o morro, apesar de fazer isso todos os dias por ocasião do seu ofício. Mas esse não saiu vivo.
Foi assassinado no quintal de casa, no bairro onde nascemos e fomos criados.
Uma dor insuportável que não passa.
Essa foi a gota d’água.
Me decido: preciso ir embora.
O medo é uma constante na minha vida.
Quem dera fosse medo de perder o carro ou o celular.
É medo de pensar na minha mãe se perguntando o porquê de ter sido eu nos noticiários dessa vez.
“Mas as praias são lindas”; mas há caveirões e grupos de militares com fuzis atravessados no peito a cada esquina, em plena luz do dia.
Ah, e se você vier pelas praias, cuidado: tem arrastão.
“Mas eu moro onde você passa férias”; mas nas férias eu saio correndo pra tirar férias daqui.
“Mas o Rio é legal porque o carioca é muito gente boa”; MAS O CARIOCA NÃO AGUENTA MAIS.
A Cidade Maravilhosa já era, meu amigo. Acorda.
É guerra civil na porta de casa. A gente dorme ao som dos tiros e acorda com a televisão anunciando que mais 3 filhos crescerão sem pai.
Que maravilha é essa em que ou eu desisto de sair de casa e vivo confinada ou vou da origem ao destino com medo?
Que maravilha é essa em que não sei se tenho mais medo de morrer e deixar meus pais sofrendo ou de vê-los mortos no caminho pra casa?
Que maravilha é essa que me faz repensar a maternidade só por não querer criar meus filhos nesse lugar pavoroso?
A violência aqui é brutal. É barbárie. Sem risadinha. Sem mimimi. Sem segunda chance.
É pena de morte pra quase todo mundo.
Demorou pra passar o celular? A pena é uma facada.
Não saiu do carro quando foi abordado? A pena são 11 tiros.
O Waze te mandou entrar numa rua pra cortar caminho e você foi parar na favela? A pena, com sorte, é uma arma na cabeça, se você acender as luzes internas e abrir os vidros. Sem sorte, a pena é de fuzilamento.
É oficial: estamos reféns da violência.
Não tem chopp com as amigas, não tem rotina tranquila, não tem lanche no Mc Donald’s. Nem de manhã, nem de tarde, nem de noite. Nem na Zona Sul nem na Zona Norte.
A violência é democrática.
Vivemos em um grande cativeiro e não haverá, tão cedo, preço de resgate que pague essa libertação.
Se tiver oportunidade, faça suas malas e saia correndo. Salve a sua família.
Essa cidade já foi maravilhosa um dia.
Mas agora ela já era, meu amigo.
Já era

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