Há dez anos, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) renunciava ao cargo de presidente da Câmara dos Deputados após denúncias de que havia recebido "mensalinho" para prorrogar a concessão de um restaurante da Casa.
Depois das revelações pela imprensa de que teria recebido pagamentos que somavam pouco mais de R$ 100 mil, Cavalcanti não durou três semanas na função.
Sua permanência no comando da Câmara se tornou insustentável devido a acusações bem menos ruidosas do que as que recaem agora sobre o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atual presidente da mesma instituição.
Desde o final de setembro, multiplicam-se evidências de que o peemedebista e sua família seriam donos de contas secretas milionárias na Suíça. O material repassado pelo Procuradoria daquele país às autoridades brasileiras inclui documentos com a assinatura de Cunha e cópias do seu passaporte, que teriam sido usados na abertura das contas.
De acordo com pessoas que fizeram acordos de delação premiada dentro da Operação Lava Jato, que investiga desvios na Petrobras, como o empresário Julio Camargo e o lobista Fernando Baiano, Cunha teria recebido US$ 5 milhões provenientes do esquema de corrupção na estatal. Nesses acordos de delação, o investigado aceita colaborar com a Justiça em troca de penas mais brandas.
As denúncias geraram uma representação contra Cunha no Conselho de Ética da Câmara. Se for aberto um processo contra ele, pode resultar em sua cassação pelo plenário ─ mas isso tende a se arrastar para o próximo ano. Já a possibilidade de renúncia foi rechaçada diversas vezes pelo próprio Cunha.
'Estatura política'
Mas o que explica a resistência de Cunha?
Cientistas políticos e deputados ─ sejam aliados ou opositores de Cunha ─ são unânimes em dizer que o peemedebista tem uma "estatura política" muito maior que a de Severino.
O peemedebista foi eleito em fevereiro presidente da Casa em primeiro turno, com apoio da maioria absoluta dos parlamentares (267 votos do total de 513), o que na época representou uma clara derrota para o governo Dilma.
Sua eleição já era esperada, enquanto e escolha de Cavalcanti para presidir a Casa foi um surpresa, a vitória de um "azarão".
"Eu vejo a diferença da estatura política. O Eduardo foi eleito numa grande articulação, no primeiro turno de uma eleição. O Severino foi eleito ali como uma pirraça dos aliados que estavam insatisfeitos com o governo (Lula)", assinala o deputado Washington Reis (PMDB-RJ), aliado de Cunha.
"Severino não era um parlamentar com projetos, ideias, vivia do próprio corporativismo. Era o fisiologismo puro, simplório. Cunha é um político de negócios, operador de muitas articulações inclusive financeiras", observa o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), um dos autores da representação contra Cunha no Conselho de Ética.
"Em fevereiro desse ano, há poucos meses atrás, ele obteve 267 votos em 513, ganhou no primeiro turno. Isso não se dissolve tão rápido assim", acrescenta.
Líder do PPS, Rubens Bueno (PR) vai na mesma linha.
"Eduardo Cunha tem uma bancada como o PMDB, que pouca coisa não é. Montou o maior bloco (aliança entre diversos partidos para atuarem juntos nas votações) da Casa e passou a ditar quando o governo ganha e quando perde, até agora. O Severino não tinha bloco, não tinha bancada, era muito mais fragilizado do ponto de vista de apoio".
Baixo clero
E como Cunha construiu esse apoio?
Cunha se candidatou à Presidência da Câmara com a promessa de fortalecer o Poder Legislativo e ampliar sua independência do Planalto. Após eleito, usou seu poder para concretizar isso, diz o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, diretor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).
"O cargo (de presidente da Câmara) lhe dá muito poder. Ele pode pautar temas de interesse do governo, segurar, nomear relator de comissões, criar comissões. Presidentes anteriores faziam isso mais como uma correia de transmissão do Executivo. Ele passou a fazer uma negociação (em torno disso) com o baixo clero (parlamentares com menos expressão na Casa)", nota.
Outro fator importante que garante apoio a Cunha, observa Monteiro, é sua articulação com as bancadas mais conservadoras. Esses grupos apoiam Cunha em troca do andamento de temas de seu interesse dentro da Câmara, como a revisão do Estatuto do Desarmamento (para facilitar a venda de armas) e a criação do Estatuto da Família (para proibir a adoção de crianças por casais gays).
"Daí o poder dele. Apesar de todas as denúncias ele ainda tem muita influência na Câmara", acredita Monteiro.
"Ele se apoiou não só no baixo clero, mas em várias bancadas específicas, por exemplo, bancada ruralista, bancada da bala, bancada evangélica. Então, Cunha conseguiu amealhar um apoio que ultrapassa os partidos. Ele hoje controla 120 deputados fiéis a ele. Isso equivale praticamente às bancadas do PT e do PMDB juntas, que são as duas maiores".
Há ainda os rumores de que Cunha teria ajudado a levantar fundos para campanhas de cerca de 100 deputados, lembra Chico Alencar. O peemedebista foi um dos candidatos à Câmara que mais conseguiu arrecadar doações de empresas nas eleições de 2014 ─ gastou sozinho em sua campanha R$ 6,5 milhões.
"Supostamente ele ajudou a angariar fundos para vários deputados se elegerem ou se reelegerem. Então, claro, coloca muitas fichas na mesa de dívidas", afirma o cientista político David Fleischer, professor da UnB (Universidade de Brasília).
Cunha foi procurado para responder às afirmações, mas não quis falar para esta reportagem.
Segundo Monteiro, outro ponto que dá força a Cunha para articular sua continuidade no cargo é a crise política, o que lhe abre espaço para negociar sua permanência em troca de aceitar ou não os pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Rouseff.
O (longo) caminho para a cassação
O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), já deu diversas declarações afirmando que as denúncias contra Cunha são questões internas da Casa e não dizem respeito ao Executivo.
Já o PT está dividido. Cerca de metade da bancada petista, 32 deputados, assinou a representação contra o peemedebista no Conselho de Ética. Ou seja, foram a grande maioria dos 48 parlamentares que apoiaram a denúncia capitaneada por PSOL e Rede.
No entanto, o partido não apoiou oficialmente a representação. "Ele (Cunha) diz que está seguro e cabe a nós, neste momento, aguardar o prosseguimento do processo (na Comissão de Ética) para nos pronunciar. Não há omissão", disse na semana passada Sibá Machado (PT-AC), líder do partido na Câmara.
Nenhum parlamentar dos principais partidos que defendem o impeachment da presidente (PSDB, PPS, DEM e Solidariedade) assinaram a representação. Há cerca de três semanas, os líderes dessas legendas assinaram uma nota defendendo que Cunha se afastasse da presidência da Câmara "até mesmo para que ele possa exercer, de forma adequada, o seu direito constitucional à ampla defesa".
Dessa forma, parece improvável no momento que Cunha deixe o cargo antes de uma eventual decisão do Conselho de Ética no sentido de recomendar sua cassação.
Isso pode ocorrer caso os deputados entendam que Cunha mentiu ao dizer em março, durante depoimento na CPI da Petrobras, que não possuía contas bancárias no exterior. O Código de Ética da Câmara prevê que mentir em depoimento é quebra de decoro e justifica uma cassação.
Cunha conta com o tempo para tentar salvar seu mandato. A expectativa é que o processo no Conselho de Ética seja interrompido pelo recesso parlamentar da virada do ano e só seja retomado após o Carnaval.
Antes disso há o risco de que ele decida dar início a um processo de impeachment contra a presidente. Até agora, ele tem seguido a orientação da área técnica da Câmara e mandado arquivar pedidos que não foram considerados procedentes.
Na próxima semana, Cunha prometeu que decidirá sobre o pedido apresentado pelo jurista Hélio Bicudo (um dos fundadores do PT). Segundo reportagem daFolha de S.Paulo, a área técnica da Câmara estaria finalizando parecer em que recomenda ao presidente da Casa que dê seguimento ao pedido.
Cunha tem dito a jornalistas que vai analisar os pedidos de impeachment do ponto de vista técnico e jurídico. Ele também nega as acusações sobre as contas na Suíça.
Severino Cavalcanti também foi procurado, mas estava viajando e não pode atender a reportagem.
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