Um pesquisador que trabalhou dentro da Comissão Nacional da Verdade (CNV) diz que as Forças Armadas "mentiram descaradamente" ao colegiado, sob a "passividade absoluta" do governo Dilma Rousseff.
No Brasil, afirma o jornalista e escritor Lucas Figueiredo, o poder militar mente há 30 anos sobre o paradeiro de documentos sigilosos da ditadura, enquanto todos os presidentes civis – de Tancredo a Dilma - ajudaram a manter esses arquivos no escuro.
Para ele, a CNV colheu 1.121 depoimentos, promoveu 80 audiências, consumiu mais de R$ 7 milhões em recursos públicos e terminou em dezembro de 2014 com um relatório de 4.328 páginas "muito fraco" em novidades e esclarecimentos.
"A CNV nasce cheia de problemas, com saída e troca de integrantes, mas tinha condições de avançado muito mais", diz o autor mineiro de 48 anos, que acaba de lançar o livro Lugar Nenhum – Militares e Civis na Ocultação dos Documentos da Ditadura (Companhia das Letras).
O livro nasce do trabalho de Lucas na chamada "equipe Ninja", um time de três jornalistas com fontes nas áreas militar e de inteligência montado pela CNV em 2013 para tentar localizar arquivos sigilosos da ditadura que ainda estivessem nas mãos de órgãos do Estado ou particulares.
Trabalhando em conjunto com historiadores da Universidade Federal de Minas Gerais, a equipe teve acesso a documentos inéditos dos arquivos da repressão, e concluiu que estes haviam sido escondidos do poder civil pelos militares. O material, contudo, ficou de fora do relatório final da CNV – por motivos que Figueiredo diz desconhecer.
"Sinceramente não sei, mas foi muita informação que deixaram de usar. É uma pergunta que tem que fazer para eles. No mínimo aconteceu alguma coisa muito estranha ali", diz o jornalista.
Em fevereiro deste ano, questionada pelo jornal Folha de S.Paulo, a ex-integrante da CNV Maria Rita Kehl disse ter ficado "estarrecida" pela ausência dos documentos, disponíveis à comissão desde 2013.
O último coordenador da CNV, Pedro Dallari, disse à BBC Brasil que não se manifestaria sobre o livro de Figueiredo por desconhecer seu conteúdo. Afirmou, contudo, que a professora da UFMG Heloísa Starling, que trabalhou com Figueiredo na CNV, teve acesso a todos os textos do relatório final da comissão antes da publicação.
"Tenho segurança que se a professora tivesse notado notasse alguma lacuna relevante (no relatório) ela teria, como todo outro assessor da CNV, apontado sugestões, e isso não ocorreu", disse Dallari. A reportagem tentou contato com Starling, mas não obteve resposta às mensagens deixadas.
Professor da Faculdade de Direito da USP, Dallari afirmou ainda que a colaboração dos militares com a comissão foi mínima, e que "o argumento de que os documentos (da ditadura) foram destruídos não me convence". Sobre uma eventual passividade do governo diante da atitude do poder militar, disse "não ter elementos para fazer juízo de valor".
Microfilmes
A documentação confidencial citada por Figueiredo no livro são 2.775 microfilmes do acervo do Cenimar, o serviço secreto da Marinha, produzidos no início da década de 1970. Na microfilmagem, o documento é fotografado e fica registrado em película de alta resolução – que pode durar até 500 anos.
O material havia sido cedido pelo jornalista Leonel Rocha, que o recebera de um militar anônimo que o guardara por 30 anos. A revista Época publicou parte do conteúdo em 2011.
Os papeis registravam que o Cenimar havia miniaturizado 1,2 milhão de páginas de documentos do regime, e isso apenas entre 1972 e 1973. Também detalhavam engrenagens da repressão: operações de órgãos de inteligência, cadastros e recibos de pagamentos a espiões infiltrados em organizações de esquerda, relatos oficiais que confirmavam a prática de tortura pelo Estado.
Para Figueiredo, esses papeis ignorados pela CNV também trazem revelações ao serem comparados com respostas que as Forças Armadas vêm dando desde 1985 sobre o paradeiro dos arquivos da ditadura – a linha geral é que houve uma destruição total, legal e rotineira dos documentos.
"Quando pegamos os microfilmes de 1972 e comparamos com as respostas de 1993 (dadas pelas Forças Armadas na primeira tentativa do Executivo de obter informações sobre desaparecidos políticos), você conclui que em 1972 eles sabiam muita coisa e em 1993 diziam não saber mais. Fica claro que em 1993 tinham documentos e mentiram", afirma o escritor.
Um exemplo de "comparação que fala" na opinião de Figueiredo: os microfilmes de 1972 tinham uma seção chamada "prontuários de pessoas mortas", que misturava fichas de mortos ilustres com dados sobre 11 desaparecidos políticos. "Em 1993, porém, as mesmas 'pessoas mortas' foram mencionadas pela Marinha como foragidas, desaparecidas, em local ignorado, etc. Nenhuma figurava como falecida", escreve o jornalista no livro.
'Pacto de silêncio'
Pioneiro na safra brasileira mais recente de jornalistas-escritores, Figureiredo lançou-se na seara do livro-reportagem com o best-seller Morcegos Negros (2000), sobre bastidores do esquema PC Farias durante o governo Collor. De lá para cá, lançou mais cinco livros, entre eles Ministério do Silêncio – a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005), de 2005, e Olho por Olho - os livros secretos da ditadura, de 2009.
Os anos de pesquisa sobre repressão política no Brasil lhe trouxeram a convicção de que todos os presidentes civis desde 1985 promoveram "silêncio complacente" em relação aos arquivos da ditadura. Nenhum escapa das críticas do jornalista.
"O pai da criança é o Tancredo (Neves), que fala abertamente que não vai investigar. (José) Sarney entrou vendido porque era muito fraco, ele se escorava nos militares. Depois Collor e Itamar fazem vistas grossas. FHC e Lula colocam a União para combater a abertura dos arquivos na Justiça, que é uma postura mais grave. E você tem a Dilma que é de uma passividade absoluta, porque as Forças Armadas mentiram descaradamente para ela durante a CNV e ela não fez nada", resume.
Figueiredo relata no livro como a CNV pediu audiência com Dilma assim que terminou a pesquisa com os microfilmes do Cenimar, por considerar as informações graves. Descreve como os comissários pediram à presidente que fossem esclarecidas as divergências entre 1972 e 1993 e que todos documentos da ditadura ainda em poder do Exército fossem enviados ao Arquivo Nacional.
Em quatro dias úteis, conta o autor, a demanda passou pela Casa Civil (então comandada por Gleisi Hoffmann), Ministério da Defesa (sob Celso Amorim) e chegou aos comandos militares, onde veio com a resposta conhecida: não há arquivos, e os que existiam foram destruídos legalmente em época incerta.
"E assim terminava, no governo Dilma Rousseff, a busca pelos arquivos secretos da ditadura. Tudo muito rápido e com explicações incompletas e contraditórias por parte dos militares. E, por parte das autoridades civis, também com bastante pressa. E grande passividade", conclui o jornalista na obra.
Tempo x justiça
Uma das novidades do relatório final da CNV foi uma lista com nome de 377 militares, policiais e ex-agentes que atuaram de forma direta ou indireta na repressão política. Desse total, 158 (42%) estavam mortos na época da divulgação do relatório.
Para Figueiredo, isso mostra que o tempo da chamada "luta por justiça" em relação a crimes do período está "acabando" - ele cita como exemplo a morte, no último dia 15, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado por familiares de mortos, presos políticos e Procuradoria de ter praticado torturas e mortes no período.
"Há pouco (no último dia 15) o (coronel Carlos Alberto Brilhante) Ustra morreu. As pessoas estão morrendo, é uma questão geracional. Daqui a pouco não vai ter ninguém para se sentar no banco dos réus", afirma.
Sobre o papel dos militares no Brasil de hoje, e em tempos de crise política, Figueiredo disse considerar "despropositada" a declaração recente do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em videoconferência neste mês para oficiais da reserva. Na ocasião, conforme informou a Folha de S.Paulo, Villas Bôas disse ver risco de a turbulência política se transformar em "crise social", e sugeriu que isso seja um assunto caro às Forças Armadas.
"A crise é política e econômica e deve ser tratada apenas pelos civis", afirma Figueiredo. "Não vejo hoje risco de golpe, mas a questão não é essa. Os militares precisam se subordinar 100% ao poder civil. E não o fazem. Isso limita nossa democracia. E passa a informação ao pessoal da área de segurança que o agente público pode, sim, sequestrar, torturar, matar e ocultar cadáveres; que seu gesto, quando mira um inimigo 'justo', não é só aceitável como tem apoio da corporação. É o que vemos hoje com as polícias militares e civis nas favelas."
A BBC Brasil solicitou à Casa Civil da Presidência da República um posicionamento sobre as declarações de Figueiredo e o conteúdo do livro Lugar Nenhum, mas não houve resposta. Também encaminhou uma síntese das afirmações do escritor à assessoria do Ministério da Defesa, que informou que transmitiria o conteúdo aos comandos militares para eventuais manifestações - que não haviam ocorrido até a publicação desta reportagem.
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