Mônica Bergamo
Nelma Kodama deixa aparecer um objeto preto em
seu tornozelo quando tira as botas de cano alto para realizar um
eletrocardiograma. “Isso aqui é um aparelho para medir pressão. Está
conectado a uma central e, se eu tirar, vão pensar que morri”, diz ela à
enfermeira. Na verdade, o dispositivo é uma tornozeleira eletrônica que
a doleira usa desde junho de 2016, quando deixou a custódia da Polícia
Federal em Curitiba.
Ela foi a primeira pessoa presa na Operação Lava
Jato, no dia 14 de março de 2014, quando tentava embarcar para Milão,
na Itália, com 200 mil euros. A imprensa noticiou que a doleira levava o
montante na calcinha, o que ela nega. “Esse dinheiro estava dividido em
100 mil euros em cada bolso de trás da minha calça jeans. Aliás,
colocar dinheiro na calcinha é anti-higiênico”, diz.
DOLEIRA ANTIGA – Nelma era uma
das principais doleiras de SP e acabou condenada por corrupção ativa,
lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Diz que entrou no ramo, nos
anos 1990, quando começou a trabalhar para a auditora fiscal Elizabeth
Badaró, mulher do ex-juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, preso na
Operação Anaconda. “Tudo o que eu sei aprendi com a Badaró. Costumo
dizer que faço parte da linhagem dos antigos doleiros de São Paulo.”
A doleira diz que chegou a movimentar R$ 400 mil
por dia. Já escondeu R$ 20 milhões nos dutos do ar-condicionado de um
de seus escritórios e jogou US$ 20 mil pela janela por pensar que a
polícia bateria em sua porta.
Ela decidiu conceder entrevista para Bruna
Narcizo depois de ficar “muito chateada” ao saber que seria retratada no
filme “Polícia Federal: a Lei é Para Todos”, sobre a Operação Lava
Jato. “Vão dizer: Ah, mas você é pessoa pública. Não sou! Pessoa pública
é o Roberto Carlos. Aliás, eu tenho o direito de ser preservada porque
sou colaboradora da Justiça”, diz.
TODOS SÃO IGUAIS – Nelma ficou
presa com investigados como Marcelo Odebrecht, José Dirceu, João
Santana, Nestor Cerveró, Fernando Baiano e executivos da Camargo Corrêa e
da OAS.
“Ali não é o doleiro, o deputado ou o
empresário. É o ser humano. Se você não limpar sua cela, vai ficar suja.
Alguns demoravam um pouco para entender que estavam presos. Não vou
citar nomes, porque seria indelicado. Mas muitos chegaram achando que
sairiam no dia seguinte. E não é assim”, conta.
Com TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo)
diagnosticado por um psiquiatra, Nelma preferiu ficar responsável pela
faxina. “Às 11h da noite eu tava passando pano para ficar limpo. Eu
colocava cartaz: não fazer xixi no local do banho. Porque homem você
sabe como é, né? Mas porra, tomar banho com cheiro de xixi não dá!”
LAVAR AS TOALHAS – Nelma se
lembra da chegada dos presos da Odebrecht, na 14ª fase da Lava Jato.
“Eles entraram nas celas tarde da noite e fazendo muito barulho. Saíram
bem cedo no dia seguinte. Se secaram com nossas toalhas e deixaram elas
jogadas no chão.” Diz que ficou muito brava. “Chamei um dos agentes e
disse que ele deveria obrigar aqueles caras a lavarem as toalhas quando
voltassem. E foi o que aconteceu.”
Ela conta que os presos da construtora
-inclusive Marcelo Odebrecht – usavam um uniforme padrão fornecido pela
empreiteira: camiseta branca, calça de moletom azul marinho e tênis
Nike.
Certa vez, se indispôs com Marcelo Odebrecht.
“Eu estava no parlatório [local com vidro onde os presos falam com os
advogados] e o Marcelo em outro. Ele gritava tanto com seus advogados
que eu levantei e disse para o agente que só voltaria quando ele
parasse”.
SEIS BANANAS – Mas quando
Marcelo voltou para a custódia da PF, depois de 212 dias preso no CMP
(Centro Médico Penal), eles se aproximaram. Nelma diz que ele comia seis
bananas pratas das 6h30 até às 13h, enquanto praticava a primeira leva
de exercícios do dia. Ela fazia questão de deixar as frutas na bancada e
preparava as saladas que ele comia.
A doleira conta que, na cadeia, as porções de
comida levadas pelas famílias eram chamadas de ‘jumbo’, ‘Sedex’ ou
‘sacola’. Marcelo, porém, chamava suas entregas de ‘logística’ e
perguntava aos outros presos se alguém queria pedir algo, dizendo que “a
logística vai vir dia tal”. “Minha mãe levava minhas coisas de ônibus. A
diferença entre eu e ele são muitos zeros.”
“O [João] Vaccari [ex-tesoureiro do PT] e o
[José] Dirceu me chamavam de imperatriz. E nós chamávamos o Zé Dirceu de
ministro. Lá dentro, ele ainda agia como ministro. Um dia, me mandou
recolher as roupas dele do varal. ‘Peraí, eu não recolho as do meu
ex-marido, vou recolher as suas? Ô, senhor ministro! Se liga, mano!’ Ele
ficou em choque porque eu dei uma de maloqueira”, diz. Conta que Dirceu
era tranquilo, inteligente, “mas às vezes dava umas escorregadas”.
GRANDE AMOR – Nelma foi amante
do doleiro Alberto Youssef por nove anos. “Fomos muito felizes. Éramos
perfeitos, jovens, corajosos. Ele era o ying e eu, o yang. Beto foi o
meu grande amor”, afirma. Quando depôs numa CPI, em Brasília, ficou
célebre ao cantar a música “Amada Amante”, do cantor Roberto Carlos,
para os deputados. Se separaram em julho de 2009.
Ela e o doleiro ficaram 19 meses presos juntos.
Quando Nelma conseguiu ir para o regime de prisão domiciliar, em junho
de 2016, fazia dois meses que os dois não conversavam. Ela diz que
brigou com Youssef porque ele tinha ciúmes das visitas que ela recebia.
“Eu parti para cima dele e o Marcelo [Odebrecht] teve que me segurar.”
“Fui embora e nem cheguei a me despedir. Isso me dói profundamente”, diz, em um dos raros momentos em que se deixa abater.
COMPRA DE DÓLARES – Se
conheceram quando Nelma comprou US$ 1,4 milhão dele, em 2000. “O pai
dele morreu. Eu disse para ele não se preocupar em me pagar logo. Quando
finalmente entregou [os dólares], passou a me ligar todos os dias para
passar a cotação.”
“Ele mandava jato fretado para eu ir jantar em
Londrina [onde vivia] e eu sempre recusava, mas comecei a balançar,
né?”, diz ela. “Chegou uma hora em que pensei: ‘Tá no inferno, abraça o
capeta’”. Pegou um voo para se encontrar com Youssef. “Resolvi naquele
dia que seria a mulher dele.”
“Nosso sonho era ter um filho homem [Youssef era
casado e tem três filhas] que se chamaria Enzo”, diz ela. Em abril de
2001, engravidou do doleiro, mas perdeu o bebê. “Tive algumas tristezas,
não muitas, mas dá pra enumerar: essa é nível 1, essa é nível 5. Perder
o bebê foi uma tristeza nível 10”.
SEM ENGRAVIDAR – Nelma diz que,
durante os nove anos com Youssef, não usou contraceptivos. “Nunca mais
tive a honra de engravidar. Deus sabe o que faz. Meu filho teria 15 anos
e veria o pai e a mãe presos”.
“Meu sonho era passar Natal e Réveillon com ele,
que ficava com a família”, diz. “Na cadeia nós passamos. Juntos, mas já
separados.”
Ela já fez três cirurgias desde que foi presa.
Teve um problema no estômago, pedra na vesícula e um nódulo nas costas.
Hoje, seu telefone celular está configurado para ter letras em tamanho
maior do que o normal. “Fiquei quase cega por conta da luz fraca na
prisão”, diz.
ALTO ASTRAL – Nelma está sempre
sorrindo, falando e brincando. Conta piadas de si mesma. “Eu vou ter
que fazer aquele exame que precisa correr? Porque eu já corri tanto da
polícia”, disse ela para uma assistente do hospital em que fez exames há
algumas semanas. “Não me chama de ‘meu bem’, porque a Receita vem
atrás”, afirmou a outra.
“Não tenho que usar Chanel para convencer. Amei
muito. Comi tudo o que eu quis comer. Mas, quando entrei em um espaço de
dois por um [metros], me vi como só a Nelma. O Marcelo não era mais o
príncipe. Todo mundo se ajudava. E aprende a valorizar pequenas coisas.
Quando tomava banho, eu fechava o olho. E imaginava que estava na minha
casa”.
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