Há 20 anos, um grupo de acadêmicos começava a organizar no Brasil o que viria a se tornar um modelo mundialmente reconhecido de governança na internet. Hoje no hall da fama da rede mundial de computadores, o diretor presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, Demi Getschko, humildemente desdenha da efeméride, mas celebra o fato de países como Líbano e Itália se basearem na experiência brasileira do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) para elaborar suas próprias regras para o mundo virtual. Fazer outra coisa qualquer", diz Getschko.
Na entrevista abaixo, o renomado pioneiro brasileiro da webrelembra os passos que levaram à aprovação pioneira do Marco Civil da Internet no Brasil, no ano passado, opina sobre a intenção do Facebook de oferecer acesso à internet no Brasil e fala sobre o desafio de tentar preservar a privacidade e os direitos humanos na era da "internet das coisas: "Seu médico pode acompanhar o estado da sua glicose diariamente. Ele e outros três bilhões de internautas".
Pergunta. Como o senhor enxerga a chegada do internet.org do Facebook ao Brasil?
Resposta. Ninguém sabe qual é o texto de qual acordo, o que está sendo proposto. Posso falar do Internet.org do ponto de vista do que o decálogo [os princípios para a governança da internet no Brasil]diz, mas não sei dizer o que está sendo negociado. A discussão está sendo feita a partir de especulações. Acho que temos de defender a neutralidade do acesso à internet. Isto é, acesso a um conjunto de serviços aberto, introduzido por qualquer um. Não quer dizer que todo o acesso feito via internet acessa a rede como um todo. Todas as filiais dos bancos no Brasil falam entre si via internet. Isso não quer dizer que eu possa acessar coisas lá. Existem serviços privados na rede.
P. O Internet.org não permitira acesso a toda a rede?
R. Se você vende acesso à internet da forma que teoricamente o Internet.org venderia, isso não é acesso à internet, mas a um walled garden, um jardim murado, que tem tais e tais serviços. Se você diz que isso é acesso a um jardim murado, é outra história. Se você vende feijoada, tem de ter arroz, lombo, etc. Se só tiver feijão, não é feijoada. Não posso dizer que qualquer serviço entregue na internet tem de ser neutro, porque o que tem de ser neutro é o acesso. O mal desse negócio é que não devia se chamar Internet.org, mas "Facebook.org". Já é uma certa arrogância, porque está dizendo que é internet.
P. O Brasil comemora neste mês seus 20 anos de internet comercial com um modelo respeitado mundialmente. A que o senhor atribui esse reconhecimento?
R. O Brasil teve a vantagem de decolar na internet na mesma época que todo mundo. Não estamos atrasados. Pegamos a mesma inflexão que a internet mundial, e sem atrasos, porque não tínhamos burocracia específica, os provedores puderam lançar seus negócios. Além disso, a infraestrutura, como fibra óptica de superfície, veio rapidamente, pelo menos nas grandes cidades. Em terceiro lugar, a legislação brasileira, ao separar internet de telecomunicações, e a criação do comitê gestor do jeito que ele é, ajudaram a manter a internet não corrompida ou atacada pelos mecanismos que não interessavam.
P. Como funciona o CGI.br?
R. Hoje o conselho conta com 21 membros, com representantes do Governo e outros 11 vindos da sociedade civil, eleitos por um colégio eleitoral montado dentro de segmentos específicos: os acadêmicos elegem acadêmicos, as ONGs elegem representantes do terceiro setor, as empresas elegem representantes do setor empresarial. Isso deu mais representatividade ao CGI. As resoluções demoram para sair, mas são muito bem discutidas entre todos setores os interessados.
P. Qual é a grande função do CGI.br hoje?
R. Não queremos criar um órgão regulador da internet, mas queremos dar palpites para resistir a um processo de deterioração que esperamos que não aconteça. Por exemplo, no âmbito do Marco Civil, nós seremos ouvidos junto com a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] no caso de exceções à neutralidade. Porque há exceções. O texto diz que não posso filtrar nenhum endereço de origem ou destino e tenho de tratar todo mundo igual na rede. É um princípio que a gente defende, mas, quando há um ataque de negação de serviço por robôs, você é obrigado a filtrar o endereço. Se todo mundo atacar a receita.gov.br no último dia do imposto de renda, um monte de brasileiro pode ficar sem conseguir fazer.
P. Foi a partir desse objetivo que vocês elaboraram o decálogo...
R. É difícil criar uma legislação que todo mundo siga, porque internet varia de lugar para lugar. Por isso é melhor criar princípios, de abertura, de liberdade, de neutralidade, de responsabilidade, e cada um adapta isso à própria legislação. O Brasil marcou um ponto importante com essa história do decálogo na área de orientação e de conceito e política. O Marco Civil é a transformação em lei do núcleo central do decálogo. É uma lei interessante e precursora de outras iniciativas, já que a Itália e Líbano querem seguir.
P. O que diferencia a internet brasileira, por exemplo, da norte-americana?
R. Em 1995, o Governo norte-americano decide que não vai dar mais domínios de graça. Nos Estados Unidos, dentro da NSF [Nacional Science Foundation], ia ser incubada uma iniciativa que assumiria aquilo e tinha que se tornar sustentável de alguma forma. Assim, o .com, o .net e o .org passaram a ser controlados pela Network Solutions. que começou a cobrar 50 dólares do registro e 50 dólares por ano por domínio. No Brasil, o registro de domínios estava dentro da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], então decidimos seguir o mesmo caminho: como o dólar estava um para um com o real, começamos a cobrar 50 reais por registro e 50 reais por ano. Ao fazer isso, também decidimos não ter uma empresa, íamos manter uma organização sem fins de lucro que, caso viesse a dar excedentes, eles seriam revertidos à internet brasileira em serviços. Em pouco tempo passou a dar excedente e fomos diminuindo o preço dos registros, de 50 reais para 40 reais e hoje para 30 reais, mantido desde 2003.
P. Esse modelo existe em outros lugares?
R. No Chile é assim, na Itália é assim, na Alemanha é um consórcio de provedores. Mas criamos uma regra que só dá acesso para os brasileiros. O Chile permite registro de não-chilenos. Tentamos trabalhar com um ponto de equilíbrio, não selvagem, como os .coms, e não duro como o dos espanhóis, que exigia uma marca para fazer o registro no .es. Isso fez que o .com crescesse muito na Espanha. A gente não tem os intermediários oficiais que a Icann [Internet Corporation for Assigned Names and Numbers] criou com os “registrars” [nos Estados Unidos]. Não damos nenhuma vantagem para ninguém. É 30 reais para cada um. Não precisamos de uma política de resolução de conflitos internacional, como a Icann exigiu dos genéricos, porque não temos um chinês brigando com um sueco por um domínio na Alemanha. Todo mundo aqui é brasileiro, pode usar a Justiça brasileira.
P. O CGi não se envolve na resolução de conflitos judiciais?
R. Recentemente criamos um processo administrativo de questionamentos, que se chama Saci. Se alguém quiser questionar um domínio que acha que é dele pode fazer por lá. Não entramos no mérito. Uma câmara de arbitragem diz quem tem razão, mas, se o cara não gostou, vai para a Justiça.
P. A única fonte de recursos do CGI é o registro de domínios? Como vocês administram esses valores?
R. Sim, são a única fonte. Quando começou a sobrar recurso, tínhamos que sair da Fapesp, que tinha 200 funcionários à época, o mesmo número que tem só o CGI hoje. Alugamos o primeiro andar deste prédio [na Avenida das Nações Unidas, em São Paulo] , depois compramos este e o de baixo. E fomos alocando os recursos para fazer pontos de troca de tráfego, cartilhas, manuais, cursos com tudo com o que sobra das vendas do registro brasileiro e da venda de IP. Um recurso que não é público. Ninguém é obrigado a usar o .br no Brasil. Você pode usar o .com. Evidente que a gente tem uma prestação de contas, mas o fato de esse dinheiro não ser público nos dá uma vantagem: ele não pode ser recolhido por alguém e guardado para fazer outra coisa qualquer.
P. O que o mundo pode atender com a internet brasileira?
R. Não queremos ser arrogantes, mas na área de governança o CGI é uma boa referência. O decálogo foi um grande marco na internet do mundo, o NetMundial foi feito aqui em parte por causa disso. Temos alguns boas dicas a dar, nosso caminho tem dado certo.
P. Quais são os maiores desafios que a internet nos impõe hoje?
R. O grande desafio é como preservar privacidade e direitos humanos numa história em que a tecnologia abre tantas novas estradas e possibilidade para o bem ou o mal. Existe eletrônica a bordo de todos os equipamentos que se possa imaginar. É óbvio que eles possam falar entre si, a chamada “internet das coisas”, e isso é bom e ruim. Seu médico pode acompanhar o estado da sua glicose diariamente. Ele e outros três bilhões de internautas, porque isso pode vazar. É uma grande vantagem, porque os carros vão poder andar sozinhos, mas um hacker pode jogar seu carro contra a parede. Já tem gente hackeando marca-passo. São coisas complicadas, mas não tem como evitar que esses avanços aconteçam.
P. Qual a melhor forma de lidar com esses riscos?
R. Um ponto importante do Marco Civil é a lei de proteção de dados individuais. Cada vez mais tempos tudo exposto. Mas as coisas que a tecnologia traz de ruim também podem ser resolvidas pela própria tecnologia. A mesma técnica que gera vírus gera o anti-vírus. Também é preciso educar os usuários, que caem em armadilhas frequentemente. Numa das nossas pesquisas de educação, fizemos as mesmas perguntas para pais e crianças. Uma delas era: você acha que existem riscos na internet para o usuário? Estranhamente os filhos deram um maior percentual de que há riscos. quer dizer, os filhos enxergam melhor os riscos. É um fator positivo. Ainda há uma leva de vítimas potenciais [na internet], mas quando todo mundo estiver usando isso dia e noite, as vítimas diminuem.
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