Esperar a chegada de um filho é imaginar como serão o seu rosto, a cor dos cabelos, o primeiro sorriso, o ato de amamentar. São milhares de expectativas. Nada no mundo poderia preparar a mulher para a frustração da perda do bebê durante a gestação ou logo após o parto. O sonho interrompido se mistura a sentimentos de culpa e impotência, dando origem a um luto persistente e muito pouco debatido. Sequer os profissionais de saúde estão preparados para abordar o assunto. O consolo se limita, muitas vezes, a frases desajeitadas, como "vocês ainda são jovens, podem tentar de novo".
O berço vazio nunca será preenchido, mas cada um busca o conforto que o coração pedir — em grupos de apoio, na fé, nos livros... "Desde então, estou tentando viver novamente. Um dia de cada vez. Às vezes, nem conseguimos levantar da cama", desabafa a professora Fernanda Lopes Peixoto Balster, 34 anos. Ela se preparou durante cerca de dois anos para celebrar a vinda do segundo filho, Rafael. No nascimento, em julho deste ano, reuniu a família. Amamentou. Tirou fotos. Mas, 24 horas depois, precisou encarar a morte do bebê.
Rafael sofreu de eritroblastose fetal, doença hemolítica causada pela incompatibilidade entre o sangue materno e o fetal. Como nada foi identificado durante a gestação, o bebê nasceu com anemia grave e, durante a transfusão de hemácias, não resistiu. "Quando informaram o óbito, eu e meu esposo fomos até a UTI. Chegando lá, haviam tirado todos os aparelhos do Rafael e o enrolado em um cobertor azul. Colocaram duas cadeiras ao lado da estufa onde ele estava e me entregaram ele nos braços. Fiquei ali por algum tempo abraçada com meu bebê, chorando. Depois, entreguei para o meu marido. Peguei mais uma vez e o entreguei às pediatras, que estavam todas chorando com a gente", relembra. Por mais doloroso que tenha sido, Fernanda reconhece hoje a importância daquele breve encontro. "Pegar o Rafael nos braços, assim que nasceu, concretizou nosso amor por ele."
Tão logo recebeu alta, a professora foi velar o pequeno Rafael, sempre na companhia do marido, o servidor público Adriano Silva Balster, 42 anos, e do filho, João Gabriel, 12. "Nenhuma mãe merece ver o filho em um caixão. Achei que ia morrer. Não consegui acompanhar o enterro. Meu marido acompanhou e disse ter vivido o pior momento de sua vida, pois carregou o caixão do nosso bebê até a cova", conta. "O João Gabriel sempre pediu um irmãozinho e sofreu muito porque recebeu seu irmão, mas o perdeu", acrescenta.
Constelação materna
Na busca por preenchimento e para dar voz a um luto escondido, algumas mulheres que perderam seus filhos se unem. Para as Mães de Estrelas, olhar para o céu e contemplar o brilho estelar traz um eco profundo. Em cada astro que resplandece no cosmo, elas enxergam seus filhos. Crianças que se apagaram na Terra, mas que continuam brilhando e existindo no coração materno.
O grupo surgiu da busca pessoal de Mary Baleeiro, 33 anos. Funcionária da Fundação Nacional de Artes (Funarte), ela perdeu a filha em agosto de 2014, quase no fim da gestação. Apesar do suporte da família, do marido e da terapeuta, ela se sentia só (leia depoimento na página 27). Mary tinha um blog, no qual compartilhava a experiência do luto e da recuperação, e recebia comentários e depoimentos de mulheres que sentiam as mesmas dores. Para uma troca mais ativa, surgiu a ideia de criar um grupo no WhatsApp e outro no Facebook.
A repercussão foi grande e a adesão, maior ainda. Foi necessário dividir e multiplicar. Cada estado passou a ter seu próprio grupo no aplicativo. A possibilidade de um encontro presencial entrou em pauta. Sem perder tempo, Mary acionou uma amiga que havia passado recentemente por um aborto espontâneo, a psicóloga Andreia Crispim, 34. Uma outra amiga conectou Andreia e Mary à terapeuta Kamilla Barbosa, 29, que, além de oferecer sua sala de trabalho para uma primeira reunião, conhecia o peso de perder um filho.
Sonhos suspensos
O cuidado dispensado a Fernanda Balster, de ter um contato íntimo com o filho que morreu, não é a regra. Seja na rede pública, seja na privada. Nem todas as famílias recebem a atenção necessária. "Uma gravidez é esperança. E, de repente, aquele sonho de ter a criança nos braços se esvazia. Nesse momento, a recomendação é acolher", comenta Daphne Rattner, professora da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna). Humanizar não é apenas pensar no momento em que o bebê nasce saudável e o desejo de família se concretiza, mas é reavaliar como lidar com situações de perda. "O próprio Ministério da Saúde reconhece a importância de haver certa delicadeza", complementa.
Para a professora, a formação em medicina e em enfermagem não contempla suficientemente o trato com o luto. "Esses profissionais se colocam como alguém que vai salvar vidas, não como quem que vai perdê-las", comenta. A especialista explica que a abordagem humanizada não faz parte da educação médica, por mais que alguns professores trabalhem a temática em sala de aula. "O problema é que os profissionais aprendem a se distanciar e se envolvem na rotina burocrática. Não criam vínculos com os pacientes e quase não os enxergam como seres humanos. As pessoas não se sentem acolhidas nos momentos bons e, muito menos, nos ruins", analisa.
Reencontro com a palavra
A psicóloga Julia Chamusca, 33 anos, e o técnico da informação Daniel Costa Braga, 36, estão juntos desde a adolescência. Após 16 anos de união, ela engravidou pela primeira vez. O momento foi esperado ansiosamente e planejado com carinho, mas o primogênito Lino se despediu dos pais prematuramente. Na sexta semana de gestação, em outubro de 2012, ele se tornou uma estrela.
O sofrimento foi intenso e o amor e a compreensão entre os dois foram essenciais para a recuperação e para a coragem de tentar de novo. Quase um ano depois, foi a vez de Artur. Ele chegou trazendo sentimentos de medo, mas, ao mesmo tempo, esperança. Dessa vez, a gravidez durou até a 15ª semana.
No hospital, Julia ouviu frases como: "Você não perdeu nada. Era apenas um embrião". Por muito tempo, ela demorou a se reconhecer como mãe. Ao encontrar um espaço de partilha e escuta, sentiu-se à vontade e permitiu que sua experiência fizesse parte do processo de cura de outras mulheres. Leia, a seguir, o depoimento de Julia.
"A minha história são duas: foram duas perdas em um espaço de 2 anos. A primeira foi uma gravidez planejada, desejada e de uma união longa e de muito amor. Quando chegou, foi uma felicidade imensa e, uma semana depois, um susto. Tive um sangramento com cinco ou seis semanas de gravidez. Fui para o hospital de manhã, fiz um ultrassom malfeito e o médico disse apenas que meu útero não tinha sinal de gravidez. De tarde, eu sentia muita dor e o sangramento aumentou. Por volta das 16h, voltei ao hospital. A médica demorava para me dar informações e, quando finalmente veio, disse que meu útero tinha muito sangue e ela não conseguia ver nem os meus ovários. Ela nos deixou com essa notícia e foi conversar com minha ginecologista, que fazia um parto no mesmo hospital. Cinco minutos depois, ela voltou dizendo que minha gestação era ectópica e pronunciou aquelas palavras ‘lindas’ que nunca esqueci: ‘Seu embrião não é viável’. Na mesma hora, ela afirmou que eu iria para a sala de cirurgia imediatamente. Era tanta coisa para assimilar ao mesmo tempo. Nunca tinha feito cirurgia, quanto mais de emergência. Estava com meu marido e só tive tempo de pegar o telefone e ligar para minha mãe. Lembro de tirar minhas alianças e minha correntinha e dar para ele, pensando que precisava dizer o quanto o amava, pois esse era um daqueles momentos em que você pode não voltar.
A anestesista estava tão nervosa que derrubou a anestesia no chão. Foi um momento estranho: em um segundo, estava grávida do meu filho e, no outro, estava em uma mesa de cirurgia sem saber se ia sobreviver. Como processar um negócio desses? Depois da cirurgia, vieram as ‘boas notícias’. Todos repetiam que eu não tinha perdido nada, porque, na gravidez ectópica, existe o risco de perder uma das trompas ou os ovários. É uma gravidez fora do útero e, no meu caso, foi na trompa. Mas, para mim, perdi o meu filho e a segurança na minha existência, pois foi minha primeira experiência de quase morte. Passei três meses catatônica, não conseguia processar. Depois que fiquei boa, meu marido adoeceu. As coisas foram acontecendo, eu fazia terapia há muitos anos e continuei. Foi essencial, mas, ao mesmo tempo, insuficiente. O meu marido é incrível, uma pessoa iluminada, e ele me disse algo que foi marcante. Disse que no segundo no qual decidimos engravidar, a gente se abriu para a vida e para tudo que podia acontecer, saímos da nossa zona de conforto.
Quase um ano depois, começamos a querer outro filho. Por mais que eu tivesse chance de ter outra gravidez ectópica e que isso trouxesse riscos para minha vida, um filho vale tudo isso. Tive medo e um esgotamento por conta da tristeza, mas tentava manejar. Comecei uma busca intensa por coisas que me ajudassem a lidar com a situação. Busquei a meditação e ouvia mantras que eram a única coisa que me fazia dormir. A gravidez começou com um descolamento de placenta, mas não era sério. Fiquei um pouco em repouso, fiz os exames e estava tudo bem. Com 10 ou 11 semanas, no entanto, tive um sangramento violento. Não sabia que alguém podia sangrar aquilo tudo e continuar vivo, muito menos carregar uma vida. Achei que tinha perdido, me despedi, pensei em como ia viver depois disso, me refazer dessa segunda perda. No dia seguinte, fiz um exame e estava tudo perfeito. Ao cruzar a barreira das doze semanas, foi o maior alívio. A gravidez ficou pública. Quando estava com 15 semanas, comecei a entrar em trabalho de parto, apesar de eles chamarem de trabalho expulsivo, porque não reconhecem que já existia um filho para ser parido. Tive dois dias de muita dor. Tentava manter a fé e a confiança de que ia ficar tudo bem, mas, ao mesmo tempo, entendia o que estava acontecendo.
Quando ficou insuportável, fui para o hospital. Apesar da medicação que me deram para controlar a dor, em uma hora comecei a urrar de dor. Estava na frente da estação das enfermeiras e ninguém fazia nada, todos ignoravam que eu estava ali e isso era impossível, porque eu gritava com muita dor. Em um momento, senti um sangramento diferente, senti que algo arrebentou e comecei a gritar ‘está saindo’ e, depois de uns minutos, as enfermeiras vieram até mim. Quando a enfermeira me virou, eu senti que saiu e ela olhou e falou: ‘Ixi, vou chamar a médica’. A médica chegou, não falou comigo e pediu para a enfermeira pegar um saco. Ela enfiava a mão dentro do meu útero para limpar e tirar os restos placentários e, toda vez que fazia isso, eu urrava de dor. Quando ela terminou, virou-se e foi embora. Ninguém conversou comigo.
Viver a experiência de morte de alguém tão querido e ter essa morte negada pela sociedade é muito difícil. Dizem que era um embrião que não era viável. Como você vai sofrer por isso? Mas eu e meu marido sentimos que perdemos um filho. É difícil dar equilíbrio a isso, dar sentido."
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