sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Supremo se impõe, mais uma vez, em meio ao caos total em Brasília STF repete arbitragem exercida durante o processo de impeachment de Fernando Collor Petista que barrou impeachment: “Câmara era casa da mãe Joana”

Ministro do STF em sessão de agosto de 2015. / NELSON JR.  (SCO/STF)
Uma Câmara dos Deputados sem freios conduzida por Eduardo Cunha estava prestes a se chocar com um Palácio do Planalto desgovernado quando o Supremo Tribunal Federal (STF) apareceu para colocar o rito do impeachment nos trilhos. As liminares dos ministros Rosa Weber e Teori Zavascki que frearam a condução dos pedidos de impedimento da presidenta Dilma Rousseff há três semanas desmontaram a estratégia do impeachment idealizada por Cunha e os opositores do Goveno. Nos bastidores, sabia-se que o peemedebista diria não ao pedido de impedimento pra que a oposição entrasse com recurso contra a sua decisão e, assim, demandasse um número menor de parlamentares para aprovar a abertura do processo de afastamento da presidenta.
No caso do impeachment do hoje senador Fernando Collor de Melo, em 1992, o Supremo não apenas adequou a lei sobre o assunto, de 1950, aos moldes determinados pela Constituição de 1988 (foi a partir de então que a Câmara passou a ser responsável apenas por aceitar o pedido de impeachment, enquanto o Senado se encarrega de julgar o presidente), como seus ministros atuaram durante o processo, a exemplo do que fizeram Weber e Zavascki, para manter os procedimentos dentro da lei. Aliás, foi na sessão que votou o primeiro mandado de segurança de Collor na tentativa de se defender da abertura do processo de impedimento que o STF transmitiu pela primeira vez uma sessão integralmente pela televisão.O presidente da Câmara acabou desistindo do pedido de rito na semana passada, e nesta, quarta-feira, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a extinção das ações que questionavam o procedimento, e que foram avalizadas pela decisão de Weber e Zavascki. O movimento do STF foi interpretado como vitória pelos governistas, mas analistas ouvidos pelo EL PAÍS explicam que os juízes da Corte Suprema não fizeram mais do que evitar o descontrole total em Brasília, ao estabelecer uma ordem mínima enquanto as forças políticas tentam contornar as crises política e econômica por que passa o país. E essa não é a primeira vez que, ao ser provocado, o Supremo impõe a ordem da lei em um processo de impeachment.
A história é contada em detalhes pelo ex-ministro do Supremo Sydney Sanches, que presidia o tribunal durante o impeachment de Collor, em relato ao projeto História Oral do Supremo, organizado pela FGV Direito Rio. Sanches conta que decidiu transmitir a sessão que inaugurava formalmente a questão do impeachment por conta da expectativa de que milhares de pessoas iriam comparecer ao STF para pressionar os ministros. "A gente sabia que uma multidão ia comparecer ali na Praça dos Três Poderes e ia pressionar o Supremo. E eu imaginei, se viesse uma multidão, se a polícia fosse tentar conter, se houvesse algum incidente, ia ter morte. Como seria? Seria pavoroso, né? Então eu autorizei, pela primeira vez, ser transmitida uma sessão inteira pela TV, a sessão inteira do julgamento do mandado de segurança, o primeiro", conta Sanches, lembrando que aquela sessão ainda foi perturbada por uma ameaça de bomba.
Depois de aceito o processo de impeachment de Collor na Câmara, a defesa do ex-presidente conseguiu vitórias no Supremo, como a extensão de prazos para a defesa, lembra o professor da FGV Direito Rio, Joaquim Falcão. "Temos precedentes de que, se o rito processual não for de acordo com o que eles acham que está definido na Constituição, o Supremo vai interferir. Mas ele não vai interferir na decisão [sobre a deposição]. Ele vai apenas ser o garantidor de que o rito deve ser respeitado", analisa. Segundo Falcão, no caso das decisões de Rosa Weber e Teori Zavascki, os ministros não interferiram nem a favor nem contra o processo, apenas o organizaram.

Arbitragem

A análise de Falcão é corroborada pelo professor de Direito da USP e da FGV-SP José Eduardo Faria, que colaborou na redação da petição do impeachment de Collor. "Nenhum país com o mínimo de complexidade consegue enfrentar simultaneamente duas crises, uma econômica e outra política, porque uma crise começa a alimentar a outra. Isso vai levando a uma crise de segundo grau, da racionalidade do processo decisório. É o que esta acontecendo", diz Faria. "No passado, para desatar o nó político de 1964, houve uma arbitragem militar, que levou ao golpe e a uma ditadura. Num segundo momento, o nó gerado pela Constituição social-democrata de 1988, à qual se seguiu um período de baixa arrecadação, com hiperinflação e convulsão social, quem fez a arbitragem foi o Supremo, com a consequente queda do Collor", completa.
A julgar pelo histórico recente do país, portanto, a incapacidade dos entes políticos e econômicos de solucionar as crises que lhes dizem respeito exigirá a mediação de instituições periféricas ao poder central. Isso, aliás, tem ocorrido mesmo em causas fora da política de Brasília, mas de forte impacto popular, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as ações afirmativas, julgados nos últimos anos pelo STF. E, embora o receio de uma nova intervenção militar por conta da atual crise se justifique pelo passado, Faria destaca que o Brasil passa por um período de regime democrático sem paralelo nos últimos 80 anos, o que deve relegar ao Supremo a arbitragem para destravar as crises. É daí que surge outro receio: o de que o tribunal teria sido montado nos últimos anos para proteger os Governos do PT.

Confiança

Apesar de o julgamento do mensalão ter sido conduzido com mão de ferro por um ministro indicado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para muitos brasileiros ainda paira sobre alguns ministros do STF suspeitas de partidarização. A desconfiança se justifica por episódios como aquele em que o ex-ministro José Dirceu, condenado pelo mensalão e investigado pela Operação Lava Jato, acusou o ministro do STF Luiz Fux de procurá-lo, em 2010, em busca de uma indicação para a Corte apresentando como contrapartida o compromisso de que o absolveria no processo — esse tipo de suspeita alimenta questionamentos sobre a melhor forma de indicação para o STF.
O desempenho de Fux durante o julgamento do mensalão, contudo, serviu para amenizar essas dúvidas em relação à conduta dos ministros. Fux foi um dos ministros que votou mais alinhado ao relator Joaquim Barbosa, encarado pelos petistas como carrasco até hoje. Muitos dos atuais ministros, aliás, têm feito questão de dizer em entrevistas que, depois de empossados, os ministros do STF não têm nada a dever a quem quer que seja.
“As pessoas vivem para a sua própria biografia. Ninguém vive para a biografia dos outros”, disse o ministro Luis Roberto Barroso em entrevista recente ao jornal Correio Braziliense. Durante participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, o ministro Marco Aurélio de Mello destacou que a cadeira dos ministros do STF é vitalícia exatamente para que ele não precise prestar contas a ninguém. Já o atual presidente do tribunal, Ricardo Lewandowski, destacou em seminário recente promovido em Washington que "o Poder Judiciário está cuidando dos escândalos" no Brasil.
Para o professor José Eduardo Faria, os ministros do Supremo "talvez tivessem mais envergadura" no passado, mas aqueles que compõem a Corte hoje, com destaque para Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, "podem exercer papel surpreendentemente bom para destravar a crise", o que o professor compara a dar uma tapa em um aparelho de televisão que não está transmitindo bem.
Já o professor Joaquim Falcão ressalta que o Supremo está em "diálogo constante com a sociedade", e que não tem um cheque em branco para tomar as atitudes que seus ministros desejarem. "Na democracia, esse diálogo é inevitável. A ministra Carmen Lúcia diz que o fundamento da autoridade do Supremo é a confiança que a sociedade tem nele. Essa confiança muda de acordo com as atitudes do tribunal. Hoje, a confiança é forte", diz Falcão. Esse diálogo obviamente foi amplificado após as transmissões televisionadas dos julgamentos se tornarem corriqueiras, e chamarem a atenção dos brasileiros principalmente durante os intensos debates do julgamento do mensalão — não por acaso, há quem tenha aprendido de cor a escalação do STF, do um ao onze, como se diz no futebol. A condução de um futuro processo de impeachment pode ser o próximo grande teste dessa relação entre o Supremo e a sociedade brasileira.

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