O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, 72
anos, criou uma fundação nas Bermudas para gerir sua herança. Chama-se
Sabedoria Foundation. No mundo dos paraísos fiscais, trata-se do que
tecnicamente se conhece como trust.
Documentos obtidos pela investigação Paradise Papers, conduzida no Brasil pelo Poder360,
demonstram que o contrato desse trust foi registrado no final de 2002 a
partir de uma doação de US$ 10.000 feita por Meirelles.
O trust é 1 tipo de empreendimento no qual alguém deposita bens ou valores. Esses recursos ficam nas mãos do chamado trustee (administrador do trust) para que coordene o destino do bem que está sendo entregue.
Uma vez que o criador do trust entrega 1
determinado patrimônio para o empreendimento, a regra para uso do bem no
futuro será apenas a que estiver determinada na estrutura societária
inicial –não é possível mais alterar. O trusteecumprirá a ordem de maneira irrevogável quando o contrato assim o determinar.
Meirelles informou ao Poder360 que
o seu trust, a Sabedoria Foundation, ainda não recebeu bens. O
empreendimento será depositário de parte de sua herança apenas após sua
morte. O ministro não informa qual percentual irá para a fundação.
Para a abertura do trust foi necessário depositar a quantia de US$ 10.000, o que foi feito em 23 de dezembro de 2002.
Indagado pelo Poder360 sobre se
havia declarado à Receita Federal o depósito de US$ 10.000, Meirelles
respondeu afirmativamente. Enviou uma imagem do trecho de sua declaração
de bens ao Fisco demonstrando o que afirmou:
A legislação brasileira é omissa a respeito de
trusts. A transferência de bens para uma estrutura no exterior,
entretanto, precisa ser declarada à Receita Federal. No caso de
Meirelles, foram os US$ 10.000 depositados após o registro da estrutura
nas Bermudas.
Em nota enviada por sua assessoria, Meirelles
declara que o trust foi aberto para que, em caso de morte, parte de seus
bens possa ser destinada a entidades beneficentes no setor de educação.
O ministro afirma ainda que o trust foi registrado no exterior porque,
naquela época, ele mantinha residência nos Estados Unidos –o que é
verdade.
Leia a íntegra da nota enviada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.
Os documentos relacionados à Sabedoria
Foundation atestam que o trust foi aberto em 23 de dezembro de 2002.
Isso foi dias antes de Meirelles retornar definitivamente ao Brasil e
passar a ocupar a presidência do Banco Central em janeiro de 2003,
indicado pelo então presidente Lula. Antes dessa sua participação no
governo, ele havia feito carreira no exterior como alto executivo do
BankBoston.
Um dos documentos obtidos pelo Poder360 detalha várias informações sobre a Sabedoria Foundation e confirma o vínculo do trust com Meirelles.
O QUE DIZ A LEI
A legislação brasileira não tem regras específicas para o trust. Consultado pelo Poder360,
o advogado e ex-vice-presidente da IFA (International Fiscal
Association) Heleno Taveira Torres explica que não há no Brasil
instrumentos similares ao trust. Com isso, cada contrato firmado pode
incluir infinitas especificidades –de acordo com a jurisdição onde foi
registrado.
Quando parte da herança de Meirelles for
transferida para a Sabedoria Foundation, o dinheiro terá de sair do
Brasil para as Bermudas –ou para o país no qual o trust mantiver uma
conta bancária. Pode ser apenas uma transferência patrimonial, mas nesse
caso também haverá a doação de 1 espólio.
Não há documento público recente disponível
sobre o patrimônio de Meirelles. Em 2002, quando disputou uma vaga de
deputado federal pelo PSDB de Goiás, sua declaração de bens (leia aqui)
indicava haver posses no exterior, como 1 apartamento em Nova York
declarado por US$ 5,5 milhões e 1 carro Porsche Boxter ano 1997.
O advogado tributarista especializado em
Estruturas Extraterritoriais, jargão usado pelos operadores do direito
para offshores, Cláudio Di Pasqualle explica que a lei brasileira sobre
herança determina o pagamento de uma alíquota de até 8% quando o bem é
transferido. Essa taxa varia de Estado para Estado e é fixada de maneira
independente pelas 27 unidades da Federação.
A transferência de bens e valores para o
exterior também precisa ser registrada no Banco Central e há uma
alíquota de 0,38% de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) a ser
paga sobre esse patrimônio que sai do país.
O tributarista fala que, quando os valores forem
repassados do exterior para uma entidade beneficente brasileira (como
pretende o ministro), mais uma vez a alíquota de 0,38% do IOF será
cobrada.
Ou seja, o total de imposto sobre a herança de
Meirelles que irá para a Sabedoria Foundation é de até 8,76%. Além
disso, a movimentação pode ser prejudicada pela variação cambial.
Como se não bastasse, se o dinheiro no futuro
sair da Sabedoria Foundation para alguma instituição de ensino no Brasil
que atue na iniciativa privada, haverá nova incidência de imposto
–mesmo que essa entidade não tenha fins lucrativos.
Em teoria, portanto, seria muito mais prático
que Meirelles —se a intenção é favorecer instituições de ensino no
Brasil— já escolhesse algumas entidades que poderiam receber
diretamente, no futuro, parte de sua herança.
O ministro da Fazenda foi confrontado com essa situação. Por meio de sua assessoria, respondeu: “Na
época em que a fundação foi concebida, o sr. Henrique Meirelles morava
fora do Brasil e constituiu a fundação no exterior porque era mais
prático. Os advogados de Meirelles eram americanos e estavam acostumados
a trabalhar naquelas jurisdições. Não houve preocupação em evitar
tributação. Esta análise fiscal foi feita apenas agora, em resposta ao
questionamento feito pelo Poder360”.
VANTAGENS
O advogado Heleno Torres avalia que uma das
vantagens de manter o trust no exterior é a segurança. No caso de
testamentos e heranças, o trust permite que o cidadão decida em que
condições o dinheiro será mantido ou transferido.
Pode, por exemplo, definir que seus filhos só
poderão acessar o dinheiro quando se graduarem. Ou que valores sejam
liberados pouco a pouco. Além de permitir que o verdadeiro dono dos
ativos transfira para outra pessoa (no caso o trustee) a responsabilidade legal sobre aqueles bens.
O CASO DO TRUST DE EDUARDO CUNHA
Preso há mais de 1 ano, o ex-presidente da
Câmara dos Deputados Eduardo Cunha já foi condenado na Lava Jato. Foram
apontadas irregularidades ligadas a 3 trusts que Cunha mantinha na
Suíça.
Quando depôs espontaneamente na CPI da Petrobras
em março de 2015, Cunha disse que não tinha contas na Suíça. Mas
tampouco disse que era o usufrutuário de 3 trusts naquele país.
A omissão rendeu ao político a cassação do
mandato. Ele também já foi condenado a 15 anos e 4 meses de prisão pelos
crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. As contas
suíças abrigavam recursos e nunca ficou clara a origem do dinheiro.
Cunha alegou vários negócios que teria mantido
no exterior para justificar os recursos dos trusts. Nunca admitiu ter
cometido irregularidades e disse ser mentira que os valores seriam
propina recebida em negociações relacionadas a contratos da Petrobras.
CORRUPÇÃO SOFISTICADA
O advogado e ex-vice-presidente da IFA
(International Fiscal Association) Heleno Taveira Torres explica que não
é desejável que estruturas com o grau de sofisticação do trust, por
exemplo, sejam usadas para finalidades ilícitas.
“No caso do Cunha, por exemplo, é o
seguinte: o que você tem que buscar é qual é a origem do dinheiro que
chegou ao trust. O ‘settlor’ [o responsável pela preparação do contrato do trust] tinha prova da origem do dinheiro?”, questiona.
Torres afirma que, principalmente no fim da
década de 1990, empresas administradoras de trusts em paraísos fiscais
passaram a percorrer o mundo todo promovendo o que seria uma “blindagem patrimonial”. E fizeram sucesso.
O tributarista diz que hoje várias instituições estão em “pé de guerra”
para impedir que instrumentos como os trusts sejam usados para fins
ilícitos. Torres chega a chamar os vendedores de trusts de “vendedores de ilusões”.
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