- 19/11/2017
O juiz Marcelo Bretas chegou à 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro em abril de 2015, disposto a enfrentar a corrupção e crimes do colarinho branco, especialidade do seu tribunal. Pediu transferência para a capital fluminense depois de ficar inspirado a trabalhar contra esse tipo de crime quando assistia pela televisão ao julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal. Desde que veio ao Rio, suas decisões não foram bem recebidas por aqueles que acreditaram que a impunidade duraria para sempre e que agora acabaram presos por esse juiz empenhado em limpar as sujeiras do sistema. A vida de Bretas (Nilópolis, 1970) sofreu uma mudança radical. As ameaças de morte o obrigam a viver sob proteção policial dia e noite, e ele perdeu a liberdade do cidadão comum. Bretas, que viajou à Alemanha convidado pelo Governo de Berlim para trocar experiências de luta contra a corrupção, acredita que no Brasil nasceu “uma nova forma de se fazer justiça”, com mais imparcialidade, “doa a quem doer”. Nesta entrevista ao EL PAÍS, Bretas também revela como interpretou as declarações do ex-governador Sérgio Cabral sobre sua família em uma audiência, que motivaram a transferência de Cabral para um presídio de segurança máxima que depois foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. “Ele me olhou nos olhos, como se dissesse ‘sei onde você mora’. Entendi que estava tentando descobrir mais sobre minha família”, afirmou o magistrado.
Pergunta. As notícias que chegam do Brasil pintam um país carcomido pela corrupção, mas também falam de juízes de destaque como o senhor. Que lições elas trazem para os alemães?
Resposta. Há muita curiosidade por saber como é o trabalho judicial nesses tempos em que no Brasil temos uma situação atípica, com pessoas e autoridades do Governo que exercem o poder e que estão sendo investigadas.
P. Acha que já descobriu o grosso da trama de corrupção ou isso é só a ponta do iceberg?
R. A Lava Jato não é um conjunto de investigações, é uma nova forma de se fazer justiça e de combater a corrupção. A Lava Jato é eterna. É operada com um novo padrão, de julgamentos mais rápidos, profundos e imparciais, em que não importa quem esteja envolvido. Doa a quem doer. É uma nova era da Justiça brasileira com profissionais envolvidos 24 horas por dia.
P. Hoje existe mais corrupção ou ela vem mais a público?
R. A percepção da corrupção é maior, as pessoas estão mais descontentes com a corrupção, e os juízes e os investigadores têm maior sensibilidade às demandas da sociedade, à indignação da população. Nosso trabalho agora é mais cansativo e mais perigoso porque, quando falamos de corrupção, falamos de pessoas com autoridade, de políticos envolvidos em crimes, que têm seus contatos com autoridades, com a polícia. Nesse terreno é preciso ter um cuidado extraordinário.
P. O senhor foi ameaçado. Quem o quer morto?
R. Existem muitas pessoas prejudicadas com todas essas mudanças feitas pelas investigações, mas não posso apontar ninguém concretamente porque estaria cometendo uma injustiça. A imprensa brasileira publicou que eu estaria sendo vítima de uma investigação extraoficial.
P. Dizem que foi ordenada pelo ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, a quem o senhor enviou à prisão por corrupção e lavagem de dinheiro.
R. Não posso confirmar porque existiram várias ameaças de morte a mim e à minha família. Não posso dar mais detalhes porque existem investigações abertas, mas digo que vivo com proteção policial no Rio e também quando viajo a outras cidades. Tenho proteção também em minha casa. Nossa vida [a de sua família] mudou muito. Eu não tenho liberdade para andar pela rua.
P. Como foi possível que a trama corrupta tenha alcançado semelhante profundidade?
R. Nem todos os partidos e nem todos os políticos são corruptos, mas acho que a impunidade foi a principal causa por estarmos assim hoje. Acho que alguns dos acusados pensaram durante anos que não seriam descobertos. Por isso, se a Justiça age com firmeza agora, existirão gestores públicos melhores, porque é possível que agora um político talvez pense duas vezes antes de agir. A firmeza pode ter um efeito positivo e educacional.
P. O senhor é acusado de exercer uma justiça exemplar muito dura, de prender preventivamente pessoas que poderiam estar livres à espera de julgamento.
R. Quando se investigam organizações criminosas, não é possível ter todo o quadro pintado desde o princípio. Não sabemos quem são os cúmplices. Os esquemas criminosos que vimos são muito grandes, envolvem muitas pessoas e movimentam grandes quantidades de dinheiro. É preciso tomar cuidado, porque em muitos casos a prisão é importante para que não destruam provas nem entrem em contato com pessoas do Governo. Além disso, é importante retirar os corruptos do mundo político, não devem existir segundas oportunidades.
P. Sua decisão de enviar Cabral a uma das temidas prisões federais foi especialmente polêmica.
R. Não o fiz porque me sentisse ameaçado, como foi dito, mas porque na prisão de Benfica ele estava recebendo informação que não deveria. No julgamento falou da loja de bijuterias do meu pai, e isso era algo conhecido pela imprensa, mas depois falou mais, e disse que era informação que havia recebido. Ele me olhou nos olhos, como se dissesse “sei onde você mora”. Entendi que estava tentando descobrir mais sobre minha família. Decidi que seria transferido. Em Benfica estava aparentemente recebendo benefícios irregulares. Apareceu na cadeia, por exemplo, uma televisão de 65 polegadas de uma suposta doação. Não podemos nos esquecer que o ex-governador Sérgio Cabral agiu ativamente para que o atual governador do Rio fosse eleito. Isso talvez também justifique sua transferência a outro Estado.
P. Até que ponto a escolha do Rio como cidade-sede das Olimpíadas foi resultado de suborno?
R. Existe a suspeita de um vínculo entre a escolha da cidade e a construção do metrô, os estádios olímpicos… de que as construtoras eram escolhidas caso pagassem chantagens indevidas. Existe uma suspeita de forte ligação entre a escolha e a corrupção das construtoras.
P. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falou em uma entrevista ao EL PAÍS de que não se trata somente de mudar as instituições, mas a cultura de privilégios. Concorda?
R. Sim, por um lado está a corrupção que afeta um caso concreto, quando uma pessoa suborna um fiscal ou um policial. Mas por outro está a corrupção sistêmica e governamental, que causa danos muito maiores porque afeta um número muito maior de pessoas, ou seja, todos os que dependem do sistema público de saúde, de mobilidade urbana, de segurança. A base da pirâmide social é a mais afetada pela corrupção política. Além disso, a cultura da corrupção é disseminada em toda a sociedade, porque se um médico precisa pagar subornos para obter uma licença para seu consultório, esse médico por sua vez se sentirá legitimado a também pedir subornos. Mas, além disso, há uma dimensão muito importante que é quando a cúpula é corrupta, isso faz com que os escalões seguintes se corrompam porque o chefe corrupto não pode fiscalizar os subordinados e lhes permite que tenham sua própria rede. Para que o sistema se mantenha por tantos anos, é preciso que algumas estruturas apoiem e protejam as demais para poder se perpetuar no tempo.
P. O senhor é uma pessoa muito religiosa, que frequentemente cita passagens bíblicas em suas sentenças. Qual é o papel de Deus na justiça dos homens?
R. Eu cito princípios e provérbios que têm uma origem histórica. Posso citar o rei Salomão, mas nunca citarei o arcanjo Gabriel. Eu respeito as pessoas que não acreditam no que eu acredito. Disse a Cabral que Jesus nos ensinou a perdoar os que nos ofendem, e não vejo nenhum problema nisso.
P. Há certa percepção de que o senhor tem um inimigo no Supremo, Gilmar Mendes, inclinado a revogar suas decisões como a de enviar Cabral a um presídio federal.
R. Não tenho nenhum problema com ele. Minhas decisões não são necessariamente perfeitas. Um juiz precisa aceitar com naturalidade decisões diferentes das suas, especialmente se forem imparciais.
P. E as de Gilmar Mendes são imparciais?
R. Prefiro não responder a essa pergunta. Eu devo respeitar e obedecer. Se admiro pessoalmente a uns e outros é outra questão.
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