O constante toque do celular de Abdullah Kurdi interrompe o silêncio no cemitério civil da cidade de Kobane, na Síria. Enquanto conta sua história, o sírio de 39 anos limpa a superfície dos três túmulos enfileirados onde estão enterrados sua mulher e seus dois filhos.
Os pedidos de entrevista não param de chegar. Abdullah ficou mundialmente conhecido por uma tragédia pessoal: sua família morreu no naufrágio de um bote que levava refugiados da Turquia para a Grécia no dia 2 de setembro deste ano.
A imagem do filho caçula, Alan (inicialmente identificado pela imprensa mundial como Aylan), chocou o planeta quando foi divulgada.
Caído de bruços na areia da praia de Bodrum, o corpo do menininho de três anos vestindo blusa vermelha e bermuda azul tornou-se um símbolo da crise migratória que já matou milhares de refugiados na travessia da Turquiapara a Grécia.
Agora, dois meses depois da tragédia, Abdullah aceitou falar com Gabriel Chaim, fotógrafo brasileiro que viajou à Síria pela quinta vez para cobrir a guerra civil que já dura mais de quatro anos. O relato da entrevista foi passado por ele ao G1.
Na conversa, ele agradeceu as mensagens de solidariedade enviadas por brasileiros, reclamou de aproveitadores que usaram o nome do seu filho para arrecadar dinheiro em benefício próprio e contou como tenta reconstruir a vida depois da perda.
No início, Abdullah falava à imprensa mundial sobre o episódio. Mas, em seguida, ele se fechou. Às cicatrizes da perda traumática se somaram outras. Após a repercussão do caso, o sírio foi acusado de ser o capitão do barco que fazia a travessia ilegal – ele nega e diz que só assumiu o controle depois que o piloto pulou no mar, quando a embarcação foi atingida por uma forte onda.
O fato de Chaim ser brasileiro ajudou a convencê-lo a dar a entrevista. “Ele disse que recebeu muitas, muitas mensagens de solidariedade de brasileiros. Agradeceu por todas elas. E também me contou que os filhos dele eram fãs do futebol do nosso país”, relata o fotógrafo.
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Depois de enterrar a mulher e os filhos na Síria, Abdullah se mudou para a cidade de Erbil, no Curdistão iraquiano. Hoje, sobrevive graças a uma ajuda de custo que recebe do governo local e da administração de Kobane – no dia da entrevista, em 21 de outubro, ele estava no município sírio para resolver questões pessoais.
Ursos de pelúcia e roupas infantis
A conversa aconteceu na casa dos sogros de Abdullah, pais de Rihan, sua mulher, que morreu no mar junto com Alan e o outro filho do casal, Galib, de 5 anos.
Ursos de pelúcia, roupas das crianças e um porta-retratos com a foto dos três são alguns objetos que lembram a época em que eles ainda moravam juntos por lá. Ao falar sobre os filhos e relembrar o que aconteceu, Abdullah esteve a ponto de chorar em vários momentos.
A jornada que levou a família Kurdi até o barco com destino à Grécia é longa e remete ao começo da guerra na Síria, em 2011. Abdullah tinha uma barbearia em Damasco, mas, com o início dos confrontos, decidiu se mudar com a mulher para Kobane, onde tinham familiares.
Abriu outra barbearia lá, mas a economia local estava fraca. Com um filho para criar (o mais novo ainda não tinha nascido), ele decidiu, então, ir para a Turquia tentar algo melhor.
No país vizinho, o barbeiro trabalhou em lava-jatos e em uma fábrica de roupas. A cada dois ou três meses, viajava ilegalmente a Kobane para visitar a família.
Até que a guerra chegou até eles. A cidade foi conquistada pelo Estado Islâmico e ficou destruída após quatro meses de violentos combates com soldados curdos, que conseguiram expulsar os terroristas de lá.
Para deixar a família a salvo, Abdullah levou todo mundo para a Turquia. "Eu não tinha dinheiro para alugar uma casa, então pedi para o dono da fábrica para minha família dormir comigo lá. Toda manhã eu mandava os três para um parque, para que deixassem o tempo passar e voltassem só à noite. Mas depois de uma semana tivemos que sair de lá", lembra Abdullah.
Os quatro foram, então, morar em um bairro pobre de Istambul. Mas o custo de ficar no país era alto demais, então decidiram tentar chegar ao Canadá, onde mora a irmã de Abdullah.
Segundo Abdullah, o Canadá negou o visto a eles -- na época da repercussão do caso, o governo canadense negou que isso tivesse acontecido. Foi então que ele decidiu ir para a Europa.
Relato de um naufrágio
Os parentes do casal foram contrários à travessia de barco. Acharam que seria perigoso. "Mas eles não me culpam [pelo que aconteceu]", afirma Abdullah.
O sírio diz que pagou a um traficante de pessoas 1.600 euros (R$ 6,7 mil) por adulto e 700 euros (R$ 2,9 mil) por criança para embarcar em um bote até a Grécia. Mas, seis minutos depois da partida, o motor do bote parou de funcionar e eles foram resgatados, voltando a terra. O dinheiro foi devolvido.
“Comecei então a procurar outro 'coiote' melhor”, relatou ele, que diz ter pagado mais 2 mil euros (R$ 8,4 mil) por adulto e 1.000 (R$ 4,2 mil) por criança para subir nesse segundo barco. “Éramos 13 pessoas, falei que era gente demais, mas ele disse que não, porque a Grécia era muito perto. Só que depois de cinco minutos vieram ondas fortes, e, na segunda onda, o piloto fugiu nadando”, afirma.
Abdullah diz que, sem ver outra opção, assumiu o comando do barco. Ele demonstra raiva ao falar sobre as insinuações que recebeu de que ele seria o capitão do barco. “Fiquei triste e com muita raiva. Isso é uma mentira”, disse a Gabriel Chaim.
Na época, ele rebateu as acusações em uma entrevista a um jornal britânico. “Por que um traficante de pessoas levaria sua família no mesmo barco? Por que eu estaria morando em uma casa tão pobre em Istambul se estivesse ganhando dinheiro como traficante?”, questionou.
Ele também se queixa de pessoas que se aproveitaram da situação para ganhar dinheiro, como uma canadense que abriu uma fundação em nome de Alan Kurdi e, segundo ele, embolsou as doações recebidas. “Ela nunca mandou nada para Kobane. Está apenas usando o nome do meu filho”, diz.
A última coisa que Abdullah conta do dia do naufrágio é que, quando o barco começou a balançar, Galib se abraçou a ele e Alan, à mãe. “Foi a primeira vez que eu os vi com cara de pavor”, lembra.
O relato para por aí. A emoção não o deixa continuar.
“Eu queria ter morrido com eles”, diz, em outro momento.
Apesar disso, Abdullah tenta reconstruir a vida da forma que dá. E diz que ao menos a história de sua família serviu para chamar a atenção do mundo para o drama dos sírios que fogem da guerra. "Isso tudo pelo menos contribuiu para que o mundo olhe diferente para a situação dos refugiados", afirma. "Porque todo dia tem vários Alans que morrem na praia tentando chegar à Europa."
Apesar disso, Abdullah tenta reconstruir a vida da forma que dá. E diz que ao menos a história de sua família serviu para chamar a atenção do mundo para o drama dos sírios que fogem da guerra. "Isso tudo pelo menos contribuiu para que o mundo olhe diferente para a situação dos refugiados", afirma. "Porque todo dia tem vários Alans que morrem na praia tentando chegar à Europa."
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