sábado, 14 de novembro de 2015

Dá para evitar os ataques terroristas?

Cartaz pedindo orações por Paris solta tinta sob a chuva durante vigília à luz de velas em solidariedade ao povo francês organizada em Sydney, na Austrália











A sucessão de ataques que matou pelo menos 128 pessoas em Paris na noite de ontem foi, no conjunto, o maior atentado terrorista na história da França. Também foi o maior na Europa desde as explosões que mataram 191 pessoas na estação de trem madrilenha de Atocha, em 11 de março de 2004. Depois dos ataques ao jornal satírico Charlie Hébdo e ao supermercado judaico Hipercacher em janeiro, é a segunda vez que o terror islâmico atinge a capital francesa neste ano.

Um comunicado atribuído ao Estado Islâmico (EI) reivindica a autoria dos ataques e afirma ter “tomado como alvo a capital das abominações e da perversão, aquela que carrega o estandarte da cruz na Europa, Paris”. “A França e aqueles que seguem sua via devem saber que continuam os principais alvos do Estado Islâmico e continuarão a sentir o odor da morte por ter assumido a liderança da cruzada (…). Este ataque é apenas o início da tempestade e um alerta para aqueles que quiserem meditar e extrair lições”, diz o texto. Teria sido possível evitar os atentados de ontem? Será possível evitar os próximos?

O horror vivido ontem por quem estava em Paris tornou real o pior cenário previsto na cartilha de todos os especialistas em terrorismo: uma série de ataques coordenados, sem alvo estabelecido, de modo a desorientar as forças da ordem. Nesse ponto, o EI tem adotado uma estratégia distinta da rede Al Qaeda, sua principal rival no universo jihadista, com que está rompido pelo menos desde o início de 2014.

Um atentado a um supermercado judaico e a um jornal que publica caricaturas do profeta Maomé é, para a liderança atual da Al Qaeda, moralmente justificável, por ter alvos considerados como “inimigos do Islã”. Mas atingir pessoas ao acaso em bares, restaurantes, espetáculos ou jogos de futebol deixou de ser – embora tivesse sido no passado, como nos atentados do 11 de Setembro. O EI tem uma visão mais extremista. Já espalhou pela internet vídeos pornográficos, em que carros passando por estradas iraquianas são metralhados ao léu, sob a justificativa de transportar infiéis. Para o EI, o fundamental é matar – não importa quem. Isso torna mais difícil a proteção dos alvos e amplia ainda mais a paranoia.

Os analistas costumam dividir as estratégias terroristas em dois tipos: o ataque ao “inimigo próximo” (governos de países árabes como Síria, Egito ou Arábia Saudita, vistos como infiéis pelos jihadistas) e o combate ao “inimigo distante” (países ocidentais como França, Estados Unidos, Espanha ou Inglaterra). Mesmo antes de Bin Laden morrer, a Al Qaeda mudara sua estratégia para dar prioridade ao “inimigo próximo”. O EI decidiu manter duas frentes. Uma para ampliar seus territórios no Oriente Médio, outra para aterrorizar o Ocidente. Essa divergência foi o principal fator que levou à ruptura entre Ayman Al Zawahiri, o sucessor de Bin Laden, e o líder do EI, Abu Bakr Al Baghdadi. No mundo jihadista, onde a propaganda fascina e atrai novos recrutas, a Al Qaeda entrou em declínio, e o EI não para de crescer.

As autoridades francesas mantinham em sua lista de suspeitos de envolvimento com o extremismo jihadista algo como 5000 nomes. Manter uma vigilância sobre todos eles é algo dificílimo. O marroquino que tentou atacar o trem que ia de Amsterdã a Paris em agosto passado e foi dominado por passageiros era um nome conhecido da polícia. Um dos oito terroristas apontados como responsáveis pelos ataques de ontem era um francês de 30 anos, outro nome conhecido. Em nenhum dos dois casos, as autoridades conseguiram prever os atentados e agir antecipadamente.

O envolvimento de cidadãos dos países-alvo é outro fator que dificulta a prevenção. A revista britânica The Economist estima em até 500 o número de jihadistas que voltaram de seus períodos de treinamento em campos mantidos pelo Estado Islâmico na Síria ou no Iraque para países ocidentais, como França, Alemanha ou Inglaterra – com a missão secreta de desencadear atentados terroristas. A capacidade do EI de atrair a juventude muçulmana dos países europeus não encontra paralelo na história recente.

Uma estimativa feita em dezembro de 2013 pelo Centro Internacional para o Estudo da Radicalização e Violência Política (ICSR), de Londres, avaliou em 11 mil os jihadistas estrangeiros que estavam no território controlado pelo EI, cerca de 2800 deles oriundos da Europa. De lá para cá, esse número só fez crescer. O país que mais os exporta para lá é a França, seguido de perto pela Inglaterra.

Para atrair novos recrutas, o EI faz um uso extremamente profissional das redes sociais. Se a Al Qaeda soube se aproveitar da descentralização propiciada pela internet, ninguém tem usado Twitter, Facebook ou Youtube com tante eficiência quanto o EI. Em estudo divulgado em abril de 2014, o ICSR fez uma análise de 190 contas de propaganda jihadista no Twitter e no Facebook. “O conflito na Síria de ser o primeiro em que combatentes ocidentais documentam sua experiência em tempo real”, diz o estudo. A atividade das autoridades religiosas identificadas pelos pesquisadores “oferece apoio, encorajamento, justificativa e legitimidade para a decisão de reunir-se ao conflito sírio como combatente”.

A sofisticação digital do EI se estende para outra área que dificulta o trabalho das autoridades ocidentais: a capacidade de comunicar-se de maneira secreta, por meio das mais moderna tecnologia digital. Em seu livro “The digital califate”, o ativista palestino Abdel Bari Atwan relata como os recrutadores do EI usam serviços anônimos para troca de mensagens, como o Kik, tentam se esconder da vigilância atrás de clones do Skype ou do Tor, o navegador anônimo que dá acesso a sites secretos conhecidos em conjunto como “internet profunda” – a província digital também de pedófilos, traficantes e contrabandistas. “Discussões secretas, via mensagens ou aplicativos de telefone, conduzidas em um laptop ou smartphone no quarto de um adolescente, são extremamente difíceis de policiar, para autoridades e pais”, escreve Atwan.

É para combater esse tipo de comunicação que, a cada novo atentado terrorista, cresce a pressão para ampliar o direito de escuta e monitoramento das comunicações. Nos Estados Unidos, os atentados de 11 de Setembro serviram de pretexto para a montagem de uma gigantesca estrutura de vigilância, comandada pela Agência Nacional de Segurança (NSA). Documentos vazados pelo ex-prestador de serviço da NSA Edward Snowden, hoje exilado na Rússia, comprovaram o abuso dessa estrutura, usada para espionar cidadãos americanos, presidentes de países como Alemanha ou Brasil e para obtenção de informações comerciais valiosas diplomaticamente, que nada tinham a ver com o combate ao terror.

Um relatório encomendado pelo governo americano para avaliar a eficácia dos programas de vigilância da NSA concluiu que eles “não tiveram impacto identificável na prevenção de atos de terrorismo”, segundo oWashington Post. Defensores desses programas costumam dizer que eles foram responsáveis por evitar 54 atos terroristas, mas investigações independetntes mostraram que, na maior parte dos casos, o crucial foram as técnicas policiais tradicionais, como a infiltração de grupos suspeitos e o uso de informantes. Um único caso cuja descoberta é atribuída à NSA foi divulgado integralmente – o envio de US$ 8.500 de um preso de San Diego para terroristas somalis, diz uma reportagem do site ProPublica.

À medida que o choque incial com os atentados arrefece, a vida em Paris tenderá a voltar ao normal. Mas será um normal diferente do anterior. Medidas de vigilância adotadas depois dos ataques de janeiro deverão ser reforçadas, como o plano conhecido como Vigipirate. O discurso que defende maior restrição às liberdades individuais em nome da segurança deverá ganhar mais adeptos. É provável que, em termos de controle de objetos e documentos, a França fique mais parecida com aquilo em que se transformaram os Estados Unidos depois do 11 de Setembro – ou com um país como Israel, onde a paranoia antiterrorista é incutida na população desde a tenra infância.

Também é inevitável que ganhe adeptos o discurso nacionalista e racista, que atribui ao Islã como um todo a responsabilidade pelo terrorismo e quer impôr barreiras intransponíveis ao influxo de refugiados sírios – aqueles mesmos que, paradoxalmente, acorrem à Europa fugindo do EI. É um discurso que encontra eco em vários partidos franceses, sobretudo na direitista Frente Nacional (FN), e em governos da Europa Oriental, como Hungria e Polônia.

“A França deve enfim determinar quem são seus aliados e quem são seus inimigos”, afirmou depois dos atentados Marine Le Pen, líder da FN e provável candidata à presidência em 2017. “Inimigos são aqueles que mantêm boas relações com o islamismo radical, aqueles que têm uma atitude ambígua com as iniciativas terroristas.” Marine também disse querer que a França se rearme e restabeleça “seus meios militares, de polícia, guardas e alfândega”.

O temor de que a civilização europeia seja corrompida pela cultura islâmica é corrente no continente. O escritor Michel Houellebecq chegou a imaginar, em seu último romance, "Submissão", uma distopia em que a França elege um presidente muçulmano – e os franceses são obrigados a adotar a sharia como lei. Mas a verdade é que a vasta maioria dos quase 6 milhões de muçulmanos que já vivem hoje na França nada têm de radical. São tão vítimas do terror quanto qualquer outro cidadão. Assim como os refugiados sírios que fogem do islamofascismo que o EI implantou nos territórios sob seu controle.

Combater o terror não significa combater o Islã, religião de mais de 1,2 bilhão de pessoas, gente de todo o tipo. Combatê-lo significa tentar usar melhores técnicas de inteligência, mesmo sabendo que nem sempre elas funcionarão. Significa, na hora em que a inteligência falhar e os atentados acontecerem, não cair no desespero, nem na tentação autoritária, militarista e proto-fascista de abandonar os valores liberais da civilização ocidental. E significa hoje, acima de tudo, enviar tropas para a Síria, destruir o califado de Al-Baghdadi e derrotar o Estado Islâmico.

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