Não se trata de insetos e flores do campo. Falamos de secas, perdas de lavouras, fome e refugiados climáticos, cidades alagadas e empresas energéticas que debatem quando e como devem se transformar. A ciência deixou sem espaço os negacionistas da mudança climática. "Eu me enganei”, reconheceu semanas atrás o primeiro-ministro da Espanha, Mariano Rajoy, quando questionado sobre as dúvidas que manifestou no passado a respeito da importância do fenômeno. O aquecimento global esteve ausente da pauta legislativa do Governo espanhol durante toda esta legislatura.
Os principais líderes do planeta, deBarack Obama a Xi Jinping, passando pelo Papa e por Angela Merkel, há tempos alertam para a dimensão do problema. E há meses se preparam para a cúpula que começa no próximo dia 30 em Paris, na qual 195 países buscarão selar um acordo global contra a mudança climática.
Após 20 reuniões anuais desse tipo convocadas sob o guarda-chuva da ONU, há esperanças de que a cúpula da capital francesa finalmente leve a um acordo global que envolva todos os países. “É a última chance”, diz Christiana Figueres, secretária-executiva da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática. Mas essa última chance só servirá para que este problema tenha um impacto “manejável” para a humanidade.
Porque a principal batalha já foi perdida. “Não vamos evitar a mudança climática”, alerta Figueres. A enorme quantidade de gases do efeito estufa – principalmente o dióxido de carbono (CO2) – que a humanidade já expeliu na atmosfera torna o aquecimento irreversível, conforme a ciência alertou e os 195 Governos acataram. Por isso, se trata agora de mitigar o problema e se adaptar.
E sobre mitigação e adaptação – com os respectivos financiamentos – será a discussão em Paris.
A fórmula escolhida para enfrentar a mitigação é a dos compromissos voluntários que os Estados apresentam antes da cúpula. Até agora, 156 já registraram suas contribuições para reduzir as emissões nacionais de gases de efeito estufa, geradas pela queima de combustíveis fósseis na indústria e transporte e pela atividade agrícola. “Todas as grandes economias e os grandes emissores já aderiram”, ressalta Miguel Arias Cañete, comissário (ministro) europeu de Ação Climática e Energia. Cerca de 90% das emissões globais estão atreladas a esses compromissos. Só a China, os EUA e a UE acumulam 50%. “Em Kyoto [o protocolo a ser substituído em Paris] havia 35 países e as metas só cobriam 11% das emissões globais", acrescenta Arias Cañete. China e EUA ficaram de fora daqueles compromissos de redução. “Este não é um Kyoto II. Agora é mais expansivo, e todos participam”, argumenta Valvanera Ulargui, diretora do Escritório Espanhol de Mudança Climática.
O alto nível de compromissos nacionais é a boa notícia. A má é que estes “são insuficientes”, reconhecem Figueres e o comissário europeu. Para que a mudança climática seja manejável – e que seus efeitos não sejam tão devastadores –, os cientistas fixaram um teto: que até o final deste século o aumento da temperatura não supere os dois graus Celsius em relação aos níveis pré-industriais. A projeção dos compromissos nacionais apresentados faria com que até 2100 a temperatura subisse, segundo a ONU, cerca de três graus. De fato, as emissões continuarão crescendo até 2030, mas a um ritmo menor. Outras projeções falam inclusive de um incremento de até quatro graus.
Os compromissos nacionais fixam metas para 2025 e 2030. A ideia que a União Europeia defende, e que a China aceita, é que essas contribuições sejam revistas (supõe-se que para cima) a cada cinco anos. Dessa forma, seriam intensificados os esforços para cumprir a meta dos dois graus, o que implica um balanço neutro de emissões até o final deste século.
“Paris será o ponto de partida para uma revolução energética, para uma nova era energética”, sustenta Ulargui. “Mas a transição deve ser ordenada.”
Ganhadores e perdedores
“Será um processo de transformação com ganhadores e perdedores. Entre os perdedores estarão empresas e acionistas cujos investimentos estão baseados nos combustíveis fósseis. Mas abrem-se novas formas de negócios”, afirma Xavier Labandeira, catedrático de Economia da Universidade de Vigo (Espanha) e membro do IPCC, grupo de especialistas climáticos da ONU, cujo último relatório eliminava quase absolutamente as dúvidas sobre a vinculação entre o aquecimento e a ação humana.
Entre os perdedores nesse processo também haverá diferentes categorias. Um relatório do Instituto para os Recursos Sustentáveis do Reino Unido determinava que, para cumprir a meta dos dois graus, seria necessário manter sob a terra um terço das reservas mundiais já conhecidas de petróleo, a metade do gás e 80% do carvão. E essas reservas figuram nos balanços das grandes companhias energéticas. “Isso dificulta o acordo, porque há muitos interesses criados”, diz Labandeira. A Agência Internacional de Energia chegou a estimar em 300 bilhões de dólares (1,13 bilhão de reais) a desvalorização de ativos em petróleo, gás e carvão nas carteiras de empresas e investidores até 2050, contando apenas o setor energético. Labandeira, entretanto, ressalta as oportunidades que se abrem para as energias renováveis, “que estão reduzindo custos rapidamente”. A esperança que restaria para as empresas de combustíveis fósseis seria a captura e armazenamento de carbono, “mas essa tecnologia ainda está muito imatura”.
Nos rascunhos do acordo de Paris “não se fala de tecnologias concretas, nem sequer das renováveis”, observa Ulargui. Busca-se um texto suficientemente amplo para que possa ser assinado por todos. Um dos desafios está em que o acordo seja legalmente vinculante. Sanções, por outro lado, estão descartadas. A vinculação jurídica pode trazer problemas para Obama. “Os EUA têm uma situação comprometida, e o Senado poderia não ratificar um acordo muito concreto", adverte Arias Cañete. Assim aconteceu com o Protocolo de Kyoto. “Se os compromissos de redução de emissões forem vinculantes, como quer a UE, o Congresso e o Senado [dos EUA] poderiam impedir a ratificação”, acrescenta o comissário.
Esse pode ser um dos problemas em Paris. Mas a lista é ampla. Na adaptação, que depende de financiamentos para que os Estados mais afetados pela mudança climática possam se transformar, um dos pontos em discussão será a “diferenciação”. Existe o compromisso de chegar a 100 bilhões de dólares (377 bilhões de reais) anuais para um Fundo Verde a partir de 2020, com a contribuição de Estados, bancos e outras entidades privadas. Mas quais Estados devem contribuir? Teoricamente, só os chamados países desenvolvidos. Mas ficariam de fora dessa lista potências como a China. “A UE quer atualizar esse assunto, que não mudou desde os anos noventa. É preciso ver isso com espírito flexível, e que não só os países desenvolvidos financiem e façam esforços”, argumenta Arias Cañete. O outro bloco argumenta que as nações ricas do Ocidente desencadearam o problema com suas emissões nas décadas anteriores.
Sobre a mesa de negociação também estará a importância de um sistema de revisão transparente e homogêneo dos compromissos de redução das emissões, além da transferência de tecnologia reivindicada por países como a Índia, o que poderia acarretar conflitos com os direitos de propriedade intelectual, segundo o comissário europeu.
Arias Cañete acrescenta uma incerteza adicional: “Qualquer país pode bloquear o acordo”, alerta, ressalvando que isso “seria uma enorme irresponsabilidade”. “É o maior desafio da humanidade e teria um custo político tremendo.”
Se os acordos de Paris forem realmente efetivos, José Manuel Moreno, biólogo e também integrante do IPCC, acredita que “acarretarão mudanças fundamentais em nossos modos de vida”. A ideia é reconciliar “nosso uso do planeta Terra com suas capacidades”, conclui Moreno.
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