Na ONU, Geoffrey Robertson se disse "estarrecido" porque no Brasil "não há presunção de inocência". Ele criticou juízes e chamou o sistema de "primitivo". Segundo ele, a acusação não iria adiante na Europa
Vitor Nuzzi, RBA
Por diversos fatores, o processo envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva relativo ao apartamento tríplex em Guarujá “é muito constrangedor para o Brasil“, na avaliação do advogado australiano-britânico Geoffrey Robertson, que integra a defesa de Lula perante o Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Autorizado a presenciar o julgamento no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), na semana passada, Robertson questionou o comportamento de magistrados e o sistema judicial brasileiro. “Peço desculpas por usar essa expressão, mas o sistema ainda é primitivo“, disse quase ao final da exposição.
“O que me deixa estarrecido é que, no Brasil, não há presunção de inocência“, afirmou o advogado durante seminário realizado na noite de segunda-feira (29), em São Paulo, em que diversos juristas analisaram – e condenaram – o processo de Lula. O princípio da presunção de inocência “está presente em todos os tratados de direitos humanos do mundo“, acrescentou Robertson, 71 anos, referência mundial no tema. “Se Lula é inocente ou culpado, o fato é que seus direitos foram violados.”
Ele fez menção ao fato, por exemplo, de o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, ter considerado “irrepreensível” a sentença do juiz federal Sérgio Moro, de primeira instância, meses antes do julgamento. “O sr. Thompson Flores é uma vergonha para qualquer sistema judiciário“, afirmou, lembrando ainda que a chefe de gabinete do presidente, Daniela Kreling Lau, manifestou-se publicamente a favor da prisão de Lula, sem ser advertida.
“Todos nós queremos acabar com a corrupção“, disse Robertson. “Mas não se pode eliminar a corrupção de forma eficaz se não agirmos de forma justa“, acrescentou. Segundo o advogado, o fato de ter sido presidente não garante imunidade a Lula, mas ele tem direito a um julgamento justo.
Votos já prontos
No início do julgamento de quarta-feira passada, em Porto Alegre, Robertson disse ter pensado que eram quatro e não três juízes, dada a proximidade do promotor federal. “Estava comendo com eles, cochichando com eles. Isso é incrível para mim. E tudo foi piorando. Estávamos em um julgamento de recurso, mas ninguém ouviu ninguém. Os juízes entraram no tribunal com os votos já prontos, digitados.”
Ele observou que, em um julgamento assim, os magistrados precisam ouvir os argumentos das partes antes de tomar uma decisão – e não já ter seus votos prontos antecipadamente. “Não foi uma oitiva, uma audiência justa. Isso não poderia acontecer na Europa“, afirmou Robertson, desde 1988 um QC (Queens Counsel, conselheiro da rainha) na Inglaterra.
O advogado também criticou o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato. “Parece que nada pode deter o sr. Dallagnol. Na Grã-Bretanha, ele seria preso. Ele escreveu um livro e difamou Lula no meio do julgamento“, disse Robertson.
Outra crítica refere-se ao método usado para obter delações: “Aprisionar os acusados sem julgamento até que eles decidam dizer aquilo que os promotores querem ouvir. Essa foi uma característica do caso Lula. É errado prender pessoas para forçá-las a fazer acusações, porque essas acusações podem ser falsas“. O advogado afirmou que Lula “nunca foi dono do triplex” e que “não houve contrapartida à OAS“, em episódio que, além disso, ocorreu anos depois de sua saída da Presidência da República. “Nenhum juiz em nenhum país da Europa aceitaria essa acusação.”
Investigação e julgamento?
Um problema que ele afirmou considerar “essencial” para o Estado brasileiro é a definição dos papéis do juiz no processo. “O juiz não pode ser responsável pela instrução, pela investigação e depois pelo julgamento. Essa separação é necessária. É fundamental separar a etapa de instrução do julgamento“, enfatizou. Moro, por exemplo, jamais poderia acumular essas funções.
Em entrevista recente à RBA, o sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos fez a mesma crítica: “Continuo sem entender como é que um juiz que faz uma investigação criminal e faz determinada acusação é quem julga. A primeira instância é uma confusão entre o juiz que investiga e acusa e o juiz que julga“.
Robertson citou ainda grampos telefônicos ilegais envolvendo Lula e sua família, além de advogados. “O escritório da defesa teve muitas conversas grampeadas, e os promotores tinham acesso a essas conversas“, disse, lembrando que em muitos se discutiam estratégias de defesa, às quais a acusação acabou tendo acesso. O advogado chamou ainda de “quebra espantosa de privacidade” a divulgação de diálogos entre o ex-presidente e a então presidenta Dilma Rousseff. “Na Europa, Moro não poderia continuar. Ele pediu desculpas ao falecido juiz Teori Zavascki (do Supremo Tribunal Federal, morto em acidente há pouco mais de um ano) e ficou por isso mesmo.”
Advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins afirmou que o processo contém “todas as violações possíveis e imagináveis, que poderão ser usadas por muito tempo pela academia no mundo jurídico, inclusive internacionais“. Lembrou que há hoje nove processos contra o ex-presidente, alguns com investigações secretas, mas ponderou que “não se pode fazer uma crítica a todo o sistema de Justiça“.
O caso de Lula, segundo o advogado, traz uma “acusação em andamento“, que vai na medida em que é desconstruída introduz mais elementos, adicionados para chegar à condenação – que não tem relação com a acusação inicial. Quanto ao recurso à Organização das Nações Unidas, que aguardará exame de admissibilidade para se saber se irá a julgamento, a ONU pode, de acordo com Zanin, reconhecer que o sistema judicial brasileiro cometeu grosseiras violações, negando um julgamento justo ao ex-presidente.
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