De cada três cidades do Amazonas, duas não têm acesso rodoviário, e a qualidade dos serviços de saúde é baixa. Grandes distâncias, corrupção, baixa qualificação e oferta profissional são alguns dos problemas discutidos em períodos eleitorais, mas com pouco aprofundamento e expectativas limitadas de melhorias.
Quando pensamos em saúde precária no Brasil, normalmente imaginamos filas enormes nas unidades de saúde e hospitais públicos lotados. Mas nas cidades ribeirinhas do Amazonas, sem acesso rodoviário, o desafio é muito maior.
Os próximos prefeitos terão que enfrentar problemas que vão além da infraestrutura de atenção à saúde. Combate à corrupção e investimentos em serviços essenciais, como saneamento básico e ambiental, são iniciativas urgentes.
E há a questão logística. São dias, e às vezes semanas, de viagem fluvial dessas cidades até a capital, Manaus. As secretarias de Saúde das cidades têm que atender uma população de ribeirinhos e indígenas que muitas vezes moram a dias da sede do município.
Mas como são as cidades amazônicas sem acesso por rodovias?
Apesar da pouca atenção que recebem, esses municípios somam 43 dos 62 do Estado, com população total de mais de 1 milhão de pessoas. Dessas, 641 mil estão nas cidades e 488 mil na zona rural. O transporte é essencialmente fluvial e as viagens, normalmente longas.
Cidades remotas
Ipixuna é uma das cidades mais remotas do Amazonas e do Brasil. Situada no Rio Juruá, fica a 2,8 mil km de barco da capital.
Balsas que transportam itens de consumo básicos, como gás, combustível e mesmo alimentos não perecíveis para a merenda escolar, podem levar mais de um mês entre Ipixuna e Manaus, durante o período de seca dos rios.
Ipixuna, como a maioria das cidades amazônicas sem acesso rodoviário, é extremamente pobre e desigual. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município está muito abaixo da média nacional, equiparável ao de países africanos como Uganda, que ocupa a 165ª posição no mundo.
Como agravante, esses municípios têm enfrentado, nos últimos anos, choques climáticos - variações cada vez mais frequentes e severas dos níveis dos rios. Essas mudanças têm superado a capacidade de adaptação a essas variações naturais.
Caapiranga - outro município sem acesso rodoviário, mas bem mais próximo à capital -, enfrentou sua maior cheia e sua maior seca em 2015, segundo os moradores. A enchente cobriu boa parte da área urbana em maio. Durante a seca, em outubro, já era impossível chegar ao porto da cidade.
Nesta semana o Juruá, principal rio que abastece Ipixuna, atingiu sua cota mais baixa já registrada.
Floresta de pé
Por outro lado, essas cidades têm uma enorme importância sociocultural, histórica e para o meio ambiente. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mostram que esses 43 municípios têm uma incrível quantidade da floresta em pé. São quase 1 milhão de quilômetros quadrados cobertos com floresta amazônica - mais do que a área inteira da região Sudeste do Brasil.
Ipixuna tem 98% de sua floresta conservada. O município abriga ao menos três grupos indígenas e dezenas de comunidades ribeirinhas, com amplo conhecimento e dependência dos recursos naturais.
"Eu não vou pra cidade porque lá a gente depende de dinheiro para sobreviver e aqui não, no mínimo temos a comida", conta um ribeirinho morador do Rio da Liberdade.
Apesar das riquezas naturais e culturais e da hospitalidade de sua população, a grande maioria desses municípios não explora o seu potencial turístico.
Desafios da saúde
A saúde é um direito constitucional assegurado aos brasileiros por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), que é universal e gratuito. O objetivo 3 da agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável reflete não só os desafios necessários para "Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos", mas o papel estratégico dos futuros prefeitos para reforçar a posição brasileira de melhorar boa parte dos indicadores de mortalidade e adoecimento evitável.
Dados do Ministério da Saúde colocam o Amazonas como um dos Estados com menor esperança de vida ao nascer (70 anos) em 2012.
Adicionalmente, em 2010, apresentou um dos mais baixos índices de médico por habitante do país (1,07 por mil habitantes). Tais dados evidenciam que as condições de vida e saúde nesses municípios sejam ainda piores e mais desafiadoras.
Ipixuna registrou, em 2014, taxa de mortalidade infantil de 37 óbitos por mil nascidos vivos. Mais do que o dobro da média nacional (17) no mesmo ano. As causas, em grande parte, podem estar associadas a problemas de saúde evitáveis, como diarreia, pneumonia e desnutrição.
A melhoria desses indicadores também passa por ações de saneamento básico e ambiental que costumeiramente são desvalorizadas. Apesar do saneamento ser essencial para a prevenção de doenças de veiculação hídrica, mais de 60% dos municípios do Estado não tratam a água que abastece os domicílios. Cerca de 30% sequer têm gestão dos serviços de água.
É o que acontece em Caapiranga, onde a população usa água proveniente de poços privados ou comunitários.
As péssimas condições de saneamento são agravadas durante enchentes ou fortes chuvas. As precárias fossas, quando existentes, costumam transbordar.
Em Ipixuna, como na maior parte dos municípios do Amazonas, não há coleta de esgoto e 59% dos domicílios na cidade sequer possuem vaso sanitário.
Em vários municípios é comum que uma família tenha que conviver com a péssima condição sanitária de seus vizinhos: "O vizinho construiu sua casinha (latrina no quintal) colada na minha cozinha. Quando chove muito, transborda. Tenho filhos pequenos que brincam no quintal. Já reclamei muitas vezes para a prefeitura, mas nada foi feito", diz um morador de Ipixuna.
Em Jutaí, no rio Solimões, a situação não é diferente: "O vizinho esticou o cano de seu banheiro no meu quintal. Todo o dejeto vem parar aqui. Quando chove é pior. Já chamei várias vezes a prefeitura, mas eles nunca vieram olhar".
Desafios da gestão municipal
Os desafios para melhoria da saúde nesses municípios são enormes. A precariedade está relacionada à pobreza e à desigualdade, resultados de um processo histórico de exploração, abandono e exclusão.
As sucessivas gestões não têm tido compromisso real com o problema. Nas últimas décadas, a atenção dada a esses municípios - nacional ou internacionalmente - tem sido dominada pelos debates ambientais. Enquanto houve investimentos na criação de unidades de conservação, como reservas de desenvolvimento sustentável, há uma escassez de novas ideias para resolver os problemas de quem vive nessas cidades.
A saúde esbarra em problemas de capacidade técnica e de gestão. É comum que os secretários municipais não tenham conhecimento técnico na área, cuja indicação seja consequência de interesses políticos, amizade e, não raro, nepotismo.
O sistema de contratação também limita a eficiência do sistema. A maioria dos municípios não tem um quadro de profissionais contratados via concurso público. Isso gera uma grande rotatividade de profissionais, e médicos são contratados para carga horária integral em mais de um município ao mesmo tempo.
Agentes Comunitários de Saúde mudam a cada eleição que a oposição sai vitoriosa, pois é um programa usado eleitoralmente tendo em vista a carência de emprego nos municípios. Cargos comissionados, como os de secretários de Saúde, muitas vezes sequer residem no município, assim como muitos prefeitos.
O combate à corrupção deve ser prioridade para a melhoria da saúde. Investigações recentes do Ministério Público levaram à prisão de três prefeitos e 30 municípios estão sendo investigados por suspeita de desvio de recursos.
Em Santa Isabel do Rio Negro, caso mais recente, a prefeita e familiares delas foram presos acusados de desviar R$ 10 milhões. Em Pauini, no rio Purus, a 10 dias de barco de Manaus, foram desviados R$ 15 milhões dos orçamentos da Saúde e Educação.
O procurador-geral do Estado atribui parte da razão desse cenário à percepção de impunidade que a ausência de fiscalização e dificuldade de acesso provocam.
É também necessário reforçar ações e serviços associados à atenção básica. Por exemplo, a Estratégia de Saúde da Família, que visa oferecer não apenas acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade, como também ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação e reabilitação.
Isso evita situações mais graves que levam a remoções para tratamento médico-hospitalar fora do município, muitas vezes por via aérea, com gastos altíssimos.
Os próximos prefeitos também devem estar atentos ao desafiador arranjo do perfil de saúde da população. De um lado, observa-se o aumento da incidência de doenças crônicas, como a hipertensão arterial, a diabetes e diversos tipos de câncer.
De outro, elas coexistem com doenças infecciosas e parasitárias historicamente relevantes, como a malária, as hepatites virais e a tuberculose. Além de problemas novos, como a doença causada pelo vírus Zika.
A melhoria da saúde nesses municípios não é uma tarefa fácil. Mesmo sem a corrupção, persiste o problema da carência de profissionais comprometidos e capacitados e da histórica desigualdade social.
Os próximos prefeitos devem estar cientes desses desafios e criar um ambiente político-institucional favorável à melhoria das condições de vida da população, assegurando o direito básico à saúde nesses municípios historicamente negligenciados, porém encantadores, em meio à floresta Amazônica.
*Este é o segundo de uma série de artigos que será publicada pela BBC Brasil em parceria com o Urban Transformations Network e o UK Economic and Social Research Council (UT-ESRC) sobre presente e o futuro das cidades brasileiras. Os artigos publicados não traduzem a opinião da BBC.
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