- 19 agosto 2015
O goiano Welton Trindade nunca doou sangue. Mas não foi por falta de vontade. Gay assumido, ele vaticina quando questionado sobre por que nunca pisou em um centro de doação: "Vou ser discriminado com hora marcada? Meu sangue não vale menos".
Trindade é um dos milhares de brasileiros que, por manter relação sexual frequente com outros homens, é impedido de doar sangue por uma regra da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), órgão ligado ao Ministério da Saúde.
"Nunca doei e não vou doar porque não quero passar por esse constrangimento", admite ele à BBC Brasil.
O polêmico veto faz parte do conjunto de normas sobre a doação de sangue no Brasil das quais grande parte se espelha nas diretrizes estabelecidas pelos Estados Unidos.
Segundo o Ministério da Saúde, são atualmente proibidos de doar sangue "homens que se relacionaram sexualmente com outros homens nos últimos 12 meses".
O órgão, que diz reavaliar as regras periodicamente, admitiu à BBC Brasil que vai manter a proibição na próxima revisão. O documento está sendo finalizado e deve ser publicado em breve.
O Ministério da Saúde alega que a decisão se baseia em evidências científicas. Segundo o último Boletim Epidemiológico HIV/Aids, publicado em 2014, a taxa de prevalência de HIV entre homens que fazem sexo com homens é de 10,5%; entre usuários de drogas, de 5,9%; e entre mulheres profissionais do sexo, de 4,9%. Na população brasileira em geral, a proporção é bem mais baixa, de apenas 0,4%.
"Enquanto não houver evidências científicas que nos permitam encurtar esse período de tempo (12 meses), temos de trabalhar pela segurança de quem doa e de quem recebe sangue", disse à BBC Brasil João Paulo Baccara, coordenador da área de sangue e hemoderivados do órgão.
Mas Trindade discorda. Para ele, a proibição é "risível e ilógica".
"Se um heterossexual sai do motel e se dirige a um centro de doação, ele doa sangue, enquanto o homossexual não pode manter relações sexuais por 12 meses antes da coleta", critica.
Jornalista de formação e coordenador de mídia do Estruturação, grupo sediado em Brasília que defende os direitos LGBT, ele criou, em 2010, a campanha "Mesmo sangue, mesmo direito", para pôr fim à proibição.
'Batalha semântica'
A queda de braço entre ativistas LGBT e o Ministério da Saúde sobre a polêmica norma também se desenrola no campo semântico.
O órgão diz que a proibição envolve "homens que mantiveram relações sexuais com outros homens" no período de 12 meses anteriores à coleta e não faz distinção de doador por "orientação sexual", conforme esclarece uma portaria publicada em junho de 2011. Segundo o documento, técnicos de unidades de saúde devem evitar manifestar preconceito "por orientação sexual, identidade de gênero ou hábitos de vida".
Já ativistas LGBT, como Trindade, argumentam que a ausência de uma proibição expressa a "gays" de doarem sangue não a torna menos "discriminatória".
"Identidade sexual não faz parte do debate epidemiológico. Por essa razão, o termo 'gay' não vai aparecer em nenhuma normativa", defende Trindade.
"Para a epidemiologia, por exemplo, o travesti, que não tem identidade sexual masculina, é "homem que faz sexo com homem"", exemplifica.
Visão dos especialistas
Especialistas ouvidos pela reportagem da BBC Brasil defendem a proibição, que, segundo eles, se baseia em "fundamentos científicos".
"O que analisamos é a prática sexual e não a orientação sexual. Estudos mostram que a população de homossexuais masculinos, sobretudo os mais jovens, são os que apresentam a maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis, como Aids e hepatite", afirma Dimas Tadeu Covas, diretor-presidente da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto. O veto não se aplica a lésbicas.
Para Naura Faria, do HemoRio, a proibição leva em conta riscos para quem doa e para quem vai receber a doação.
"Ninguém está sendo julgado como ser humano, mas sim se aquele sangue é seguro para ele e para quem vai recebê-lo", defende.
No centro da discussão sobre o veto, está a chamada "janela imunológica", intervalo de tempo entre a infecção e a produção de anticorpos no sangue. Especialistas defendem que, apesar do avanço da medicina (sendo o principal deles o teste de ácido nucleico, ou NAT, obrigatório em todo o país desde 2013), existe o risco de que o exame não detecte o vírus.
"O NAT reduziu de 15 para 10 dias a janela imunológica. Mas ainda assim há um risco e por isso optamos por manter a proibição", afirma Baccara, do Ministério da Saúde.
"Mas nada impede que no futuro, caso haja evidência científica de que não existam janelas tão longas, a gente modifique a regra. Não existe nenhuma vontade da coordenação de sangue ou da hemorede de manter a restrição. Trabalhamos no sentido de oferecer a maior segurança a quem doa e recebe sangue", complementa.
Polêmica mundial
A polêmica sobre doação de sangue por "homens que se relacionam como homens" não é exclusiva do Brasil.
Nos Estados Unidos, onde até hoje vigora uma proibição vitalícia ao grupo, fruto da epidemia da Aids na década de 80, cresce a pressão do movimento LGBT para a suspensão do veto.
Em maio deste ano, o governo do presidente Barack Obama recomendou o fim do impedimento, que se limitaria aos 12 meses anteriores à coleta, exatamente como existe no Brasil.
Mas ativistas LBGT encaram a eventual mudança, que ainda está sob fase de consulta popular, como uma "vitória parcial".
"A mudança é um passo inicial imenso e uma vitória parcial para homens gays e bissexuais, assim como os receptores de doação de sangue. Apesar disso, a revisão não é menos discriminatória do que a anterior e, por isso, ainda temos muito trabalho a fazer", afirmou à BBC Brasil Ryan James Yazek, um dos principais ativistas sobre o tema nos Estados Unidos.
Yazek criou a "National Gay Blood Drive", iniciativa que acontece todos os anos por meio da qual homens gays e bissexuais se reúnem em pontos de encontro com amigos e familiares que doam sangue em seus lugares. O sangue coletado ─ junto com mensagens críticas à proibição ─ são encaminhados à FDA (Food and Drug Administration, a Anvisa americana).
"O veto proíbe na prática uma grande maioria de homens gays e bissexuais de doar sangue e perpetua estereótipos e estigmas negativos", conclui.
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