Já aqui escrevi, há uns meses, sobre a posse da arte. Nesse texto, concluí que, por sorte, a música e a literatura se democratizaram, sendo relativamente fácil aceder a elas, enquanto a pintura se manteve propriedade dos ricos. Imaginei, na altura, a possibilidade de se venderem imitações perfeitas dos grandes quadros a preços muito acessíveis, através de uma produção industrial sofisticada.
No Expresso desta semana (11/4), mais concretamente na bela revista que entretanto criaram, vejo uma notícia com o seguinte título: "A música não é para se ter. É para se ouvir". Nessa notícia se fala do Spotify, explicando-se que podemos deitar os nossos discos fora, os nossos Ipods também, e pagarmos 7 euros por mês para ouvirmos a música que quisermos. Ainda há algo de sonho nisto, mas estamos, claramente, a falar do futuro. E imaginei logo a possibilidade, para resolver o problema da pintura de que falava atrás, de termos um outro sistema ligado a televisões de altíssima definição espalhadas pela casa e pagarmos outra ridicularia para termos uma casa "Rembrandt" durante esta semana, com auto-retratos de maravilha, e, na próxima, uma casa "Rothko".
Mas não é para falar das minhas fantasias que escrevo esta crónica. Voltemos ao trabalho...
Nesta mesma semana, leio declarações de homens condenados por violência doméstica. Um deles diz que o problema está no facto de os homens acharem que as mulheres são sua propriedade. Ora, ainda que a ligação entre o belo e o horrendo seja talvez atrevida, acho que podemos juntar estes dois exemplos.
Contrariamente ao que muitos acham, não penso que seja o dinheiro o principal culpado da injustiça social da sociedade em que vivemos. Nem o elemento que marca a divisão social. Até porque não sabemos o dinheiro que cada um tem. Assim, falaria mais acerca da propriedade. De casas, de terras, de carros, etc.. Daí que muitos se deixem arruinar, ao ponto de falir e deixar dívidas monstruosas, sem alguma vez vender os bens que possuem. Hipotecam-nos, mas não os vendem.
Muito bem, onde quero eu chegar? O que me interessa é a injustiça social. E ela é fruto, não da propriedade - não tenho nada contra a propriedade privada -, mas da sua transmissão entre gerações. Já falei aqui da meritocracia e da igualdade de oportunidades. Ora, trata-se de uma cadeia lógica, que vou tentar explicar.
Só pode haver justiça social se existir meritocracia. Se não, não são os que mais merecem que mais recebem.
Só pode haver meritocracia se existir igualdade de oportunidades à nascença ou aos 18 anos (defendo a ideia dos 18 anos, porque a outra hipótese é, à partida, inconciliável com a ideia de família - não sou só eu que o digo, o Rawls disse o mesmo - e eu não quero ser crucificado; penso que, se existir igualdade aos 18 anos durante três gerações, a igualdade à nascença tenderá a ser uma realidade).
Para haver igualdade de oportunidades aos 18 anos é necessário, para além de um programa nacional de educação completamente diverso do que temos hoje, que deixem de existir heranças e doações, entre todos e não só entre pais e filhos. Para isso, também não pode haver dinheiro vivo a circular, mas esse tema - essa matéria, como dizem agora os nossos políticos vítimas de uma epidemia de redução de vocabulário - fica para outro episódio.
E, finalmente, para que essa ausência de heranças e doações se torne algo de natural, diria mesmo de evidente, é necessário que as pessoas, de uma maneira geral, percam a ideia absurda que têm de posse, de propriedade. É triste ver a ilusão - atenção que eu não sou moralista, sou o primeiro desses iludidos - de possuirmos terras, casas, carros, mulher, filhos. Tudo engano. Não possuímos nada. Andamos a desbaratar o meio-ambiente porque pensamos que é nosso. Não percebemos que apenas usufruímos de coisas que não nos pertencem, que pertencem à Natureza, ao planeta, a elas próprias, à vida, não sei. E quando morremos, elas seguem o seu caminho, perante a absoluta irrelevância de nós.
O Expresso anunciou o embrião da boa nova: a música não é para se ter, mas para se ouvir. Pois. Como tudo na vida que é para se usufruir, gozar, ter prazer. Tudo o que possuímos, para a eternidade, é a obra que criámos. Não os bens. Não o que herdámos. Não o que comprámos. O nosso legado não fica nas conservatórias nem nos organismos de registo de propriedade. Fica apenas na memória dos que ficam para depois de nós.
(Dedico esta crónica ao meu primo António Morais Arnaud)
Ler mais: http://visao.sapo.pt/posse-e-usufruto=f816449#ixzz3XHVKwoYk
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