Agostinho Santos, 62 anos, aponta o microfone para a multidão, à porta da antiga FIL, em Lisboa. "Mais alguém quer falar?". As histórias e as indignações começam a sair para fora, amplificadas. As manifestações dos clientes do papel comercial do BES são impróprias para cardíacos. Há choros, gritos, raivas e um desespero sem fim. Nem todos os lesados podem ir. É a própria Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial (AIEPC), promotora destas ações de luta, quem proíbe alguns dos seus membros de participar.
"Há pessoas proibidas de vir por razões médicas. E depois há pessoas tão desesperadas que estão prontas para tudo. Há gente que tenta vir armada. Ainda há dias me telefonou um associado a dizer que ia matar o gestor de conta. Outros queriam incendiar agências bancárias. Tem sido extremamente difícil dissuadir atitudes imponderadas ", descreve Ricardo Ângelo, 34 anos, médico dentista, residente em Viseu, presidente da AIEPC.
Do total de 2 500 clientes do papel comercial, mais de 700 estão nesta associação, criada há apenas dois meses. Cerca de 70% dos seus associados tem mais de 65 anos. "É gente que trabalhou toda uma vida para juntar 50 ou 100 mil euros e agora, sem o dinheiro, vivem com pensões muito baixas", continua o dirigente. Sem mais nada para perder.
Agostinho Santos foi-se abaixo numa das concentrações, sentiu-se mal, mas nesta de Lisboa, no passado sábado, era o homem da música, que saía de uma aparelhagem transportada amarrada a uma cadeira com rodinhas. Sócio de uma empresa de mobiliário, de Leiria, vendeu a sua quota para ter uma reforma melhor. Mas o dinheiro ficou no BES, ainda aparece no estrato bancário, mas está inalcançável.
Uma das grandes preocupações da AIEPC é separar o trigo do joio. Mostrar que a grande maioria dos clientes do papel comercial está longe de ser um tubarão da alta finança. As suas histórias são quase todas iguais. Pessoas inscritas no BES como tendo um perfil conservador, ou seja, que apenas colocavam o dinheiro em depósitos a prazo, recusando os produtos de risco, e que confiaram cegamente no que os seus gestores de conta recomendavam. O papel comercial das empresas do Grupo Espírito Santo (a Rioforte, a ESI - Espírito Santo International ou a Espírito Santo Property) era vendido como sendo um produto do banco, uma espécie de depósito a prazo que pagava juros melhores.
No entanto, o governador do Banco de Portugal tem outra visão. "Quando as pessoas assumem riscos têm de perceber que o risco é inerente à aplicação financeira", disse na terça-feira, na comissão de inquérito, no Parlamento.
O homem da luta
Se muitos dos lesados, sem literacia financeira, assinaram os papéis sem entender que o produto era de risco, Luís Filipe Ferreira, 75 anos, antigo responsável pelo setor de vendas de uma fábrica, de Braga, percebeu, ao ler a documentação, que "nem o capital estava garantido". Foi falar com o diretor da sua agência. "'Alguma vez o BES lhe ficou a dever um cêntimo?', perguntou-me o diretor. E eu, cliente há mais de 40 anos, já me sentindo também quase parte da família, assinei", conta.
Depois da hecatombe do BES e da separação entre o banco bom e o banco mau, os clientes do papel comercial continuaram descansados, pois tanto o Banco de Portugal como o Novo Banco asseguraram que o dinheiro seria devolvido aos clientes não institucionais. Mas o reembolso foi sendo adiado e, a 15 de janeiro, desapareceu do site do Novo Banco a informação sobre a devolução do papel comercial.
O Banco de Portugal teme que, devolvendo o dinheiro aos clientes não institucionais do papel comercial, esteja a abrir um precedente jurídico, que leve os clientes institucionais a exigir também o reembolso. E se os primeiros totalizam cerca de 500 milhões de euros investidos, os segundos têm valores bem mais altos. Só a Portugal Telecom tem quase 900 milhões de euros em papel comercial da Rioforte.
Nessa altura, Ricardo Ângelo ficou com a pulga atrás da orelha. "Ia falando com outros clientes em fóruns na internet e decidimos reunir num apartamento que tenho em Matosinhos. Mas juntou-se muita gente, já éramos mais de 60 e fomos para um hotel", conta. Criada aí a associação, ao fim de um mês já tinha perto de 400 associados e agora já ultrapassa os 700, com um total de 170 milhões de euros investidos no papel comercial.
A AIEPC cobra 50 euros no ato da inscrição, que serve para pagar as despesas das manifestações, como o aluguer de autocarros. De resto, funciona à base do voluntariado, como a linha de apoio psicológico que disponibiliza aos seus membros. A sede é a casa de Ricardo, que também paga do seu bolso o ordenado da secretária que lhe atende os telefonemas.
Ricardo é ainda muito novo para ter "poupanças de uma vida", garante não ter depositado no BES um "montante grande". Mas... "Grande ou pequeno é o meu dinheiro. Nem que fosse apenas um cêntimo! Incomodam-me estes profissionais da vigarice". Na sua vida pessoal, nunca tinha estado envolvido neste tipo de associativismo, nem na associação de estudantes da universidade. "Mas sempre fui ativo e gosto de participar em ações de solidariedade", acrescenta.
Ricardo e o seu "núcleo duro" (a associação entretanto criou coordenações regionais e tem um vice-presidente) distinguem-se bem no meio da multidão - são os jovens num mar de cabelos brancos.
A proposta do governador
A estratégia da AIEPC é clara: fazer barulho. Querem evitar chegar ao último recurso, os processos em tribunal, por serem demasiado dispendiosos e morosos. Assim, enquanto tentam a via do diálogo, pedindo sempre reuniões ao governador do Banco de Portugal, à administração no Novo Banco (NB) ou aos partidos na Assembleia da República, vão ocupando as ruas fazendo manifestações e invadindo agências bancárias do Novo Banco um pouco por todo o País.
A luta nas ruas é essencial à sua estratégia. "Este tipo de ações não ajuda em nada ao processo de venda do Novo Banco". Aliás, todos os sete candidatos à compra vão receber cartinhas dos lesados a informar que não vão largar o NB só porque tem novos donos. A luta só acaba quando o dinheiro for devolvido a 100 por cento. Além disso, Ricardo Ângelo promete animar a campanha eleitoral para as eleições legislativas que se avizinha. "Vamos protestar nos comícios", avisa.
Até à hora de fecho desta edição, o Banco de Portugal ainda não tinha apresentado uma proposta oficial para solucionar o problema do papel comercial. No Parlamento, Carlos Costa insistiu na ideia de que se trata de um produto de risco e, como tal, não pode ser garantido como um depósito a prazo. O caminho para os lesados, apontou, passa por reclamar créditos no Luxemburgo, enquanto credores das sociedades do Grupo Espírito Santo que estão em insolvência. Depois, "em função do valor esperado de recuperação desses créditos, o Novo Banco pode desenvolver iniciativas comerciais junto dos clientes", apenas se "forem geradoras de valor para o banco, nomeadamente se não colocarem em causa os rácios de capital e permitirem preservar a relação comercial do banco com os seus clientes", sublinhou.
O exemplo do BPP
À frente das negociações, dando a cara pela AIEPC está Luís Miguel Henrique, 46 anos, advogado. Experiência não lhe falta nestes processos. Em 2008, era o advogado do treinador Jorge Jesus, que estava em vias de perder o dinheiro que tinha depositado no BPP - Banco Privado Português. Luís Miguel Henrique acabou a defender um grupo de lesados do BPP, que acabaram por recuperar o seu dinheiro.
Há alguns paralelismos entre os dois processos, embora o BPP fosse considerado o banco dos ricos e o BES tanto acolheu ricos como pobres. No entanto, ambos começam por ter dificuldades de financiamento e viram-se para os clientes como forma de arranjar dinheiro. Resta saber se, no fim, ambos os processos têm um resultado igual. No BPP, os clientes que tinham até 250 mil euros receberam o seu capital na totalidade. Os outros recuperaram cerca de 80 por cento. Foi criado um fundo especial, que albergou os ativos onde estava o dinheiro dos clientes do BPP com promessa de retorno absoluto, e o rendimento desse fundo serviria para reembolsar os lesados. O processo demorou, no total, seis anos.
José Pires Gonçalves, 71 anos, de S. Domingos de Rana, reformado por invalidez, antigo comerciante, não vê a hora de recuperar o seu dinheiro. Com a mulher, Maria Laurinda, também reformada por invalidez, juntou uma pequena poupança, um montante que não chegaria para comprar um apartamento T1, usado, em Lisboa. Tinham guardado esse dinheiro para passar o resto da velhice num lar. Vivem com 650 euros mensais (€257 da pensão dela e €393 da pensão dele). Maria Laurinda foi empregada de limpeza justamente no BES. "Entrei muitas vezes na caixa forte, em 1974 e 1975. Vi lá muito", conta. Um muito que se desfez num nada.