Vida de juiz
Nunca a justiça esteve tão no olho do furacão como hoje. Quem são, como se formam e como lidam com a pressão aqueles que têm a última palavra. VEJA AS FOTOS, CONSULTE AS INFOGRAFIAS E LEIA A REPORTAGEM DA VISÃO
Isabel Nery (reportagem publicada na VISÃO 1141, de 15 de janeiro)
13:18 Domingo, 25 de Janeiro de 2015 |
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A decisão não era fácil: se retirasse a carta ao manobrador de máquinas de 39 anos, impunha-lhe também, indiretamente, a perda do emprego; se lhe permitisse continuar a conduzir depois de ter já sido apanhado ao volante do seu carro com mais de 1,2 gramas de álcool no sangue, deixaria sem castigo um reincidente.
O dia a dia de um juiz é feito de dilemas. Dos aplicadores da lei se exige que façam justiça, mas também que não sirvam para incubar novos males. Deles depende continuar livre ou ser preso.
A pressão, das decisões e dos harmónios de papel, leva-os a admitir níveis elevados de stresse, concluiu João Paulo Dias, um dos autores do estudo Quem são os nossos juízes.
O juiz é uma ilha e as decisões profundamente solitárias, dizem. Em nome da profissão, uns trocam a exótica dança zumba pelo discreto jogging, outros percorrem quilómetros para visitar presos e alguns vão conhecer pessoalmente as instituições para onde enviam jovens delinquentes.
Casaco e calças de treino, ténis de marca, cabelo apanhado e MP3 nos ouvidos, a juíza do Tribunal de Almodôvar arranca para a corrida de 30 minutos. Para descomprimir, depois de um longo dia a decidir crimes e castigos.
Apesar da culpa assumida pela condução com álcool, a juíza Oriana Queluz escuta os argumentos do réu: "Fui ao petisco. Eram as festas. Joguei às cartas e bebi, mas não sentia o álcool em mim. Antes de sair ainda foi uma abaladiça... Estava-me sentindo bem..."
Com 28 anos de vida e três de juizado, Oriana Queluz tentará decidir com sensatez. A advogada invoca acórdãos que inibem a condução na estrada, mas não em locais fechados de laboração, como era o caso. Com isso, poderia evitar-se o despedimento. Oriana opta por ponderar e adiar a sentença para dali a uma semana. O arguido deixa o edifício, na zona habitacional de Almodôvar, senão com alívio, pelo menos com esperança.
Lá fora há uma comunidade de olhos na juíza, mesmo não ficando mais de um ano, caso das colocações iniciais, nos tribunais de primeiro acesso. A seguir à formação no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a contratação faz-se fora dos centros urbanos. Terá de ficar, no mínimo, 5 anos longe de casa.
Convicta de que "nunca se tira as vestes de juiz", Oriana sabe que nem o malão carregado com os calhamaços de Direito nem o exigente curso do CEJ - no seu ano, concorreram cerca de 2 mil à prova escrita, 300 chegaram à oral e, no final, ficaram apenas 60 - habilitam juiz nenhum para a vida que passa pelas salas de audiências. "O advogado defende um dos lados, eu aplico o Direito. Quero resolver os problemas sem parcialidades. Estudo os acórdãos, mas a lei não resolve tudo. Por isso, também não me limito a ler as sentenças. Explico a decisão."
Antes do 25 de Abril, a função era vedada às mulheres, mas hoje estão em maioria (ver infografia). De um total de 1951 juízes, apenas 200 têm menos de 35 anos. Os inquéritos concluíram que a maior parte cursa Direito na Universidade Clássica de Lisboa ou Coimbra e tem uma orientação política a caminhar para o "centrão". De acordo com o Centro de Estudos Sociais, além do emprego e salários seguros, escolhem a magistratura para "promover a justiça" e "contribuir para a transformação da sociedade".
Numa localidade que não chega a ter 4 mil habitantes, um representante da Justiça tem de estar preparado para se cruzar com os arguidos na rua ou no supermercado. Consciente disso, Oriana decidiu trocar a zumba no ginásio nos arredores de Lisboa pelo jogging à volta do Complexo Desportivo de Almodôvar. "Não me dou com ninguém aqui. Nas localidades pequenas toda a gente se conhece e eu não quero suscitar dúvidas de credibilidade. Temos de ser como a mulher de César."
Enquanto o tempo não lhe dá mais anos, Oriana prepara-se com trabalho. Para aqui chegar teve de passar por 3 provas escritas, 4 orais e um exame psicológico. Bastava reprovar num deles para ficar para trás. Embora esteja num tribunal com cerca de 600 processos, fica no gabinete até cair a noite. Nos dias em que se deixa expulsar pela senhora da limpeza, troca a beca pelo fato de treino e vê o Sol cair enquanto acelera à volta do estádio.
Além das conduções com álcool, a juíza com nome de fada (embora não devido a Sophia de Mello Breyner, mas sim às novelas de Amadis de Gaula) tem de decidir sobre difamações, injúrias e crimes de violência doméstica. "Em terras pequenas, os tribunais ainda servem para lavar a honra."
Passa a semana longe da família. No Alentejo, há vários juízes, como Oriana. Uma vez por semana, juntam-se no restaurante, com procuradores e advogados deslocados. Assim destapam a pressão. E ganham mundo para lá das salas de audiência.
O juiz procura papéis, mas a mãe das duas crianças, de 4 e 6 anos, uma delas com cancro, quer garantias. Desconhece o paradeiro do marido. Ameaça levar-lhe os filhos. E pode fazê-lo enquanto a guarda dos menores não ficar entregue à mãe. Chorará de alívio quando ouvir do juiz "a única coisa que queria".
As emoções não estão proibidas. Mas mostrá-las... Muitos tentam trocar a missão impossível por conhecimento. No terreno. No Tribunal de Família e Menores de Matosinhos, o juiz Jorge Santos aceita os convites para conhecer as instituições que acolhem crianças e jovens: "Interessa-me saber como é a realidade nesses espaços."
Nada obriga um juiz a trocar o conforto do gabinete pelo contacto com jovens delinquentes. Mas Jorge Santos vê nessa experiência parte das suas funções.
A beca fica no bengaleiro. Ouve pais e filhos em fato e gravata, sentado numa mesa, sem tribuna, nem distâncias. Postura possível por trabalhar num Tribunal de Família, onde importa envolver as partes na solução.
Atitude que, acredita o sociólogo João Paulo Dias, poderia ser menos excecional. "Os magistrados portugueses são competentes em termos jurídicos. Falta-lhes ver para além dos códigos. Há formalismo excessivo. O Conselho Superior da Magistratura prefere juízes a despachar de forma mecânica e eles também devem interpretar a lei."
Disfarçado entre o casario antigo do Porto, fechado com cerca e arame farpado, avista-se o portão que dá acesso ao Centro de Acolhimento de Santo António. Lá dentro estão internados 32 rapazes, entre os 12 e os 21 anos, a quem a vida tem sorrido pouco.
Roubaram, agrediram, esfaquearam. Foram castigados com a perda de liberdade. Mas estão ali para aprender novos caminhos. Perante o juiz, querem provar mudança. "Saber ler é fixe", disse o jovem de 15 anos ao descobrir a magia das letras, depois de entrar na instituição sem saber ler nem escrever.
Orgulhoso da segunda de mão que acabou de dar na parede do corredor, o menor detido por roubo, quase a voltar à liberdade, responde às preocupações do juiz: "Sentes-te preparado?" O diretor, António Viana, dá a resposta: "Têm 7 horas de formação por dia e estudam. Para alguns, o futuro não existe. Começaram a pensar nele aqui."
Sozinhas no mundo
Mais frequente do que a delinquência, é a regulação de poder parental. Nestes casos, de pouco servem as leis se a vontade de as aplicar não estiver do mesmo lado. "Promovem-se acordos para captar a adesão dos pais. A ideia é conciliar, o que me obriga a exposição pessoal, a conviver mais com as partes."
O incumprimento de obrigações, como a pensão de alimentos, é uma das principais razões para recorrer ao tribunal. O pai que se senta à frente do juiz admite que falha há mais de um ano. Durante todo esse tempo, a criança foi alimentada, vestida e cuidada exclusivamente pela mãe.
A mensalidade será retirada do ordenado do pai. Mas há margem para negociar. Em vez dos 100 euros propostos pelo juiz, a advogada oficiosa propõe 80. Apesar das lágrimas da mãe, todos concordam.
Pior do que decidir sobre contribuições monetárias, é resolver a falta de visitas, "uma daquelas situações em que nunca compensamos o prejuízo". Por vezes, é preciso ouvir as crianças. "E isso toca. Ficamos com a sensação de estarem sozinhas no mundo."
Os clássicos do Direito dizem que na Família e Menores, as pessoas estão em carne viva. O sentido figurado costuma revelar-se em lágrimas. Mas também há explosões. No edifício do tribunal há apenas uma secretária a separar a sala de audiências de banais escritórios e habitações. Já foi preciso pedir ajuda a juízes e funcionários para evitar que um pai estrangulasse uma filha de 12 anos.
Entre técnicos, magistrados e funcionários da cadeia, senta-se à volta da mesa de castanho uma dezena de pessoas. O preso fica de pé, no outro extremo. Junta as mãos atrás das costas, entrelaça os dedos inquietos na espera pelas interpelações do juiz. Cerra o punho quando lhe pergunta se está consciente que prejudicou outros com os seus atos. Agarra-se ao pulso ao explicar que pai e mãe eram toxicodependentes.
O portão do Estabelecimento Prisional (EP) de Leiria abre-se para o juiz José Quaresma. Puxa a mala de viagem com a dezena de processos que terá de analisar num só dia, depois de ouvir os reclusos que requereram liberdade condicional ou saídas precárias.
Estamos numa instituição total, sem relativos nem exceções - nem para juízes. Antes de ouvir os reclusos, há que despejar os bolsos - moedas, isqueiro, tabaco, carteira e telemóvel - para passar no detetor de metais e ser revistado pelo guarda prisional.
Ao juiz de Execução de Penas cabe a última decisão, depois de ouvidos os técnicos e a direção do estabelecimento prisional. Nenhum condenado deixa a cadeia sem ver o caso avaliado pelo juiz de Execução. A tarefa é desconhecida da maioria. "Até os colegas viam o Tribunal de Execução de Penas como um parente meio exotérico. E a maioria das pessoas nem faz ideia que existe."
O nome da função é a mesma - juiz -, mas sê-lo no TEP é diferente. Aqui, o dia é passado com reclusos e não há confortos laborais a registar. "Não tenho funcionário judicial. Escrevo eu os autos no meu portátil."
José Quaresma quererá ouvir da boca dos reclusos porque estão presos; se já pensaram no que fizeram e nos prejuízos causados; como será a vida em liberdade; se têm como sustentar-se. E que família os espera.
Rondam os 20 anos, mas isso não os impede de trazerem a lição estudada, ou não fosse a cadeia escola de sobrevivência. "Oportunidade" e "arrependimento" serão as palavras mais pronunciadas. Terá ouvidos para o jovem que agrediu com violência extrema para roubar 10 euros. Verá lágrimas no homem que foi sem-abrigo e já não sabe bem se gastou mais tempo de vida a refazê-la ou a desfazê-la. Mas, garante, "agora consigo ver a maldade das coisas antes de elas acontecerem."
Às vezes é preciso uma pausa. Entre um cigarro e um café, técnicos da cadeia e magistrados pensam alto sobre os limites de estar vivo - em sociedade. "Se encontrasse a minha mulher com outro, não sei..."; "Se alguém tocasse nos meus filhos..." O "se" é bom começo de histórias, e por aqui passam tantas que, entre roubados, esfaqueados e dependentes, é preciso respirar.
Quem tem nas prisões carreira profissional sabe que o ser humano é criativo no fazer sofrer. Mas nem essa experiência impede surpresas. Como a dos reclusos que rejeitam a liberdade condicional. Ou porque estão a fazer um curso na prisão, e não querem sair sem o diploma, ou porque se dizem inocentes. "A pena também é um direito do recluso. O Estado compromete-se com a ressocialização", lembra o juiz.
Para decidir sobre o futuro dos prisioneiros, Quaresma percorre a zona centro todas as terças e quintas-feiras. Acumula uma média de três mil quilómetros ao mês, no seu carro. É já noite quando deixa o EP de Leiria. Ainda o esperam 80 quilómetros até chegar a casa. O dia seguinte será passado ao computador, a registar as decisões sobre cada caso.
Quatro mil processos por ano, agenda a dois anos, 50 sentenças por semana. Grávida de 8 meses e meio, acordada às 5 da manhã a tentar acabar de escrever uma sentença antes do nascimento, decidiu: "Não aguento mais!" E trocou o Crime pelo Comércio.
Fátima Reis Silva não imaginava que quinze anos depois, o Tribunal do Comércio, onde se decidem falências, passasse a estar igualmente sufocado. "De 2008 para cá, muita coisa correu mal e a troika foi o estertor de inúmeras empresas", diz a juíza, enquanto aperta a beca. As más-línguas chamam-lhe "bibe", mas o traje tem direito a modelo oficial, publicado em Diário da República, e há 20 anos já custava mais de 300 euros.
Se em 2008 se trataram aqui 909 processos de insolvência, em 2013 o número chegou aos 2167, incluindo os Processos Especiais de Revitalização (PER). "Em 2011 decretámos mais de 40 falências por dia e entre 2010 e 2011, o volume de entradas mais do que quadruplicou", contabiliza a juíza, autora do livro Processo Especial de Revitalização.
No elevador do edifício G do Campus da Justiça, em Lisboa, a caminho da sala de audiências, Fátima Reis Silva comenta como "a crise democratizou os credores". Nos últimos anos, "os campeões têm sido as empresas de construção civil". Mas nada supera a falência do BPP, também tratada por este tribunal: 5 800 credores, que obrigaram a uma juíza em exclusivo para o caso durante 2 anos, 400 advogados, e tantos documentos que deitavam abaixo o computador. Veio uma máquina só para o processo.
O mais perto que a juíza esteve do recorde do Banco Privado Português foi com a falência de um grupo de supermercados, em que "os trabalhadores faziam fila lá fora" e a assembleia "juntou 4 500 credores". Só para chamar todos os nomes, o funcionário da capa negra precisou de 3 horas.
Há dias em que se ouvem ameaças. Outros em que se vê o carro riscado por um arguido inconformado. Mas os juízes também erram. Nos últimos dez anos, o Conselho Superior de Magistratura contabilizou 18 penas de aposentação, o castigo máximo, com abandono compulsivo da profissão. "O número de penas total é muito superior nos juízes, se comparado com outros profissionais, como os médicos. Há comportamentos corporativos, mas também há ação disciplinar efetiva", considera João Paulo Dias.
Embora este tribunal trate sobretudo questões com sociedades, Fátima Reis Silva não duvida estar perante "papéis que trazem a vida das pessoas atrás". Isso mesmo lhe provou o dia em que decidiu a falência de uma construtora e viu duzentos homens a chorar em silêncio à sua frente. Nunca mais passou a dedeira rosa pelas folhas dos processos da mesma maneira.
Toda a manhã será para analisar casos com a ajuda de administradores de insolvência. Muitos dos acusados não terão como pagar as dívidas. Mas a empresa de construção que levou representantes de quatro bancos a assistirem à assembleia terá de entregar vários edifícios para saldar dívidas.
"Nada mais havendo, declaro encerrada a Assembleia." A juíza decidiu.
Ler mais: http://visao.sapo.pt/vida-de-juiz=f807685#ixzz3Pv3VeYsW
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