domingo, 23 de outubro de 2016

BANGUS E CARANDIRUS



FERNANDO GABEIRA




Não pensava mais em escrever sobre prisões. Elas escrevem por si próprias. Mas é importante combater o esquecimento. As prisões são um outro lado do mundo, muros cinzentos, uma guarita, o sentinela. Não posso reclamar da minha passagem. A Ilha Grande, com toda a sua carga de sofrimento, era um lugar bonito, com água de qualidade e um silêncio entrecortado pelos ruídos do mato. Na volta ao Brasil, resolvi seguir o conselho do escritor norte-americano Henry Thoreau. Segundo ele, todo cidadão deveria visitar as prisões do lugar onde vive, pois é um forte indicador do nosso nível de avanço social.

Visitei o máximo que pude, de Pedrinhas, no Maranhão, aos presídios do Sul, passando por Bangus e Carandirus no Sudeste. Observo, pelas sessões do STF, que o ministro Gilmar Mendes também as conheceu bem: organizou mutirões e visitou as prisões brasileiras quando presidente do Conselho Nacional de Justiça. Quando o ouço falar no tema diante de ministros que talvez não conheçam bem o estado das prisões, sinto-me representado. É mais uma pessoa lembrando a gravidade, para mim, de uma bomba-relógio que estamos empurrando para as novas gerações.

As cadeias falaram, então é preciso falar delas, neste momento de crise política e econômica. O primeiro episódio foi a morte do suspeito de ligações com os terroristas do Isis, um homem de 36 anos, Valdir Pereira da Rocha, numa cadeia de Várzea Grande (MT).

Quando os suspeitos foram presos na Operação Hashtag, antes da Olimpíada, critiquei o ministro da Justiça e o governo Temer por não cuidarem da questão do terrorismo com a seriedade e o profissionalismo que ela demanda. O ministro da Justiça isentou o governo de culpa, afirmando que o preso pediu para ser transferido para lá, para ficar perto da família, o que é razoável como política para condenados, mas não para um suspeito de terrorismo.

Nem todos os presos podem escolher em que presídio devem ficar. Se isso fosse levado ao pé da letra, haveria uma debandada em Curitiba. Não é, no entanto, o argumento principal que baseia a minha crítica ao governo Temer e sua incompreensão de certos fatos globais.

A política de manter fanáticos religiosos na prisão comum foi usada na França e com o tempo se constatou que muitos novos terroristas foram convertidos na própria cadeia onde cumpriam pena. É uma questão de segurança da sociedade. Mas também é uma questão de segurança do próprio suspeito de terrorismo. Embora não tenha lido ainda o inquérito sobre a morte de Valdir, terroristas que matam a esmo, até crianças, não têm grande popularidade entre os presos.

Mas os conflitos no presídio de Roraima, com dez mortos, e no de Franco da Rocha (SP), com fuga em massa, embora não tenham ligação entre si, mostram que o problema de segurança, que se supunha resolvido com a prisão de criminosos, explode e se expande do interior das próprias prisões.

Em outros artigos já mencionei o que me parece o erro fundamental: pensar que o problema está resolvido com a prisão dos condenados. Não há um trabalho de inteligência articulado, não há capacidade de prevenção, algo que os ingleses fazem com rigor.

Todos se esqueceram das prisões. PT, então, foi um fracasso retumbante. Simplesmente ignorou a gravidade da crise penitenciária Prometeu alguns novos presídios e pronto. Hoje o partido, com tantos dirigentes presos, já está em dívida com o sistema, que faz mais por eles do que recebeu do PT ao longo dos anos. É verdade que alguns deputados petistas se interessaram e organizaram caravanas pelos presídios e manicômios judiciários. Viajei com Marcos Rolim visitando manicômios e com Domingos Dutra, alguns presídios, incluído o de Pedrinhas. Ambos foram deputados do PT e saltaram do barco.

Surgiram relatórios basicamente centrados nos direitos humanos. Hoje, porém, acho que é uma visão incompleta. A questão da segurança pública a partir das tramas urdidas nas prisões coloca um desafio especial que passa por presídios decentes. Eles bem que poderiam ser anexados às multas dos empreiteiros. Hoje eles têm tudo para construir bons presídios.

No entanto, ela não se esgota nas condições de prisão. Em tempo de smartphones as relações dentro e fora do presídio passam a ser mais uma variável no enigma que parecia esgotado com a perda da liberdade. As pessoas poderiam dizer que é um raciocínio oco, pois existem os bloqueadores: pronto, solucionado o problema. Mas quem acredita mesmo nos bloqueadores do Brasil, se volta e meia explode um motim precisamente porque os carcereiros apreenderam os celulares nas celas? Ninguém iria amotinar-se apenas pelos games.

O governo Temer herdou uma situação calamitosa, que ele não percebeu depois de tantos anos ao lado do PT. Não tem condições de abrir novas frentes, sobrecarregado pela agenda econômica. A única saída é uma espécie de intercâmbio das pessoas que conheceram as prisões brasileiras, seja por visitas de ofício ou experiências familiares, e todas conversem sobre como desmontar essa bomba.

Ideias dispendiosas são inviáveis no momento. Será preciso pôr a cabeça para funcionar. É preciso demonstrar que a inércia custa mais caro. Já vi motins causando prejuízo de R$ 2 milhões, por uma economia de R$ 5 mil numa comida intragável.

Quanto mais esquecermos os presídios, mais falarão por si próprios. E eles não falam nada quando nos lembramos deles, inclusive de monitorá-los. Ou, então, falam como os presidiários de Linhares, em Juiz de Fora, que aprenderam a bordar a exportam seus trabalhos para a Europa e o Japão, por intermédio de uma jovem empresária.

As prisões do Brasil e da Venezuela têm algo em comum: tornaram-se um inferno maior durante os anos de populismo de esquerda. Quando Thoreau falava em visitar as cadeias para conhecer o nível da sociedade, tratava de um tema mais amplo. Conhecer as cadeias do Brasil revela muito sobre o governo que dirigiu o País por 13 anos.
 

 
Fernando Gabeira é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro.
Artigo publicado originalmente no jornal 
O Estado de S. Paulo.




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