quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Caso Collor abriu brecha à manobra Quinta-feira, 01/09/2016, às 07:59, por Helio Gurovitz

31/08 - O senador Fernando Collor fala durante o quinto dia do julgamento final do impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff no plenário do Senado Federal, em Brasília




















Preservar os direitos políticos é uma das preocupações de todo réu num processo de impeachment. A manobra – urdida pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, executada pelo do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski – que dividiu em dois a votação que cassou o mandato da ex-presidente DIlma Rousseff deve muito à polêmica que cercou o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Hoje senador, o próprio Collor lembrou a questão em plenário antes da votação de ontem.

As manobras de Collor e Dilma para tentar escapar da punição tiveram resultados diferentes e se baseiam em interpretações opostas do artigo 52 da Constituição, que determina a pena em caso de impeachment. Depois de elencar os casos em que pode haver o processo, ele estabelece, em parágrafo único, que o processo de impeachment será conduzido no Senado pelo presidente do STF, “limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

“Perda do cargo” e “inabilitação para o exercício de função pública” são duas penas que podem ser separadas ou devem obrigatoriamente ser aplicadas em conjunto? Para Collor, eram uma pena só e, como ele renunciara antes do final do processo de impeachment em 1992, o Senado não poderia lhe apllicar nenhuma das duas. Com a renúncia, ele procurou esvaziar ambas. Mas o Senado, por 71 votos a 8, manteve o andamento do processo por considerá-las penas separadas. Ele foi condenado ao que era possível, a “inabilitação”.

Renan se aproveitou da brecha aberta no caso Collor para manobrar ontem pelo fatiamento das penas. Como Dilma não renunciou, a manobra resultou na condenação a apenas uma delas. A renúncia de Collor criou um caso em que o presidente não pode ser condenado à primeira pena, apenas à segunda. A não-renúncia de Dilma, um outro em que ela foi condenada à primeira, mas não à segunda. Mas permitirá a Constituição ambas situações, quando o texto estabelece, por meio da preposição “com”, a vinculação de ambas? O caso de Collor pode servir mesmo de pretexto para Dilma, como Lewandowski deu ontem a crer?

A resposta parece estar numa disputa jurídica que remonta ao impeachment de Collor. Ela foi travada no STF, nas discussões em torno do Mandado de Segurança 21.289, decidido apenas em dezembro de 1993. Trata-se de uma das votações mais importantes para o impeachment de Collor e uma das mais tortuosas na história do STF. Os ministros foram instados a responder a duas perguntas: a) poderia o processo prosseguir depois da renúncia de Collor?; b) a pena de “inabilitação” tem natureza acessória ou está ligada intrinsecamente à perda do cargo?

A primeira votação acabou empatada em quatro a quatro – dois dos ministros se declararam suspeitos, e um terceiro, impedido. Para desempatá-la, foi necessário convocar três ministros do Superior Tribunal de Justiça. O mandado foi negado a Collor, que pretendia resgatar seus direitos políticos. Muitos argumentos usados nos votos confundiram as questões a) e b) e acabaram, mais de vinte anos depois, abrindo a brecha que permtiu a Lewandowski acatar o fatiamento das penas aplicadas a Dilma.

Ao longo da história, as Constituições brasileiras disseram coisas diferentes sobre as penas em caso de impeachment. Até a lei de 1950 que estabeleceu as regras atuais, elas eram mesmo separadas, e a segunda era apenas um agravamento da primeira – como sucedeu na votação do impeachment de Dilma. O próprio Rui Barbosa, numa tentativa de impeachment contra o presidente Deodoro da Fonseca, explicara por que pensar o contrário seria um absurdo: “Por um processo de raciocínio inacessível à nossa razão, depreendem que se poderia intentar um processo de responsabilidade a um presidente deposto, para lhe aplicar a pena de inabilitação a respeito de cargos futuros. Santo Deus, que pecado mortal contra a lógica!”. 

Mas tal entendimento mudou a partir da Constituição de 1946 e da Lei 1079, de 1950, que até hoje rege os processos de impeachment, como tão bem analisou em seu voto o relator no caso do Mandado de Segurança impetrado por Collor, ministro Carlos Velloso: “No regime da Constituição vigente, como na de 1946, em que foi editada a Lei no 1.079, de 1950, a pena da inabilitação, para o exercício de qualquer função pública deve ser entendida como de aplicação necessária, em caso de condenação no processo de impeachment”. Não poderia, portanto, haver uma pena sem a outra.

Mesmo assim, Velloso defendeu que, embora as penas tivessem aplicação conjunta, tal argumento não servia para invalidar a votação do Senado contra Collor. “Não estava o Senado impedido de continuar no julgamento do impetrante”, escreveu. “A renúncia foi apresentada na sessão de julgamento, quando o Presidente começava a tomar o depoimento de uma testemunha. (…) A admissão do ato, com a finalidade (…) de impedir a conclusão de um julgamento já iniciado, seria ofensiva ao princípio da moralidade administrativa, pressuposto de validade de qualquer ato de agente público.”

Para manter a condenação de Collor, os ministros do STF tinham então de explicar em seus votos como, se as penas eram conjuntas, elas puderam então ser aplicadas em separado. As respostas tiveram teor diferente e criaram uma situação jurídica algo pantanosa, da qual Lewandowski ontem tirou proveito para fatiar o julgamento de Dilma.

Por uma dessas coincidências históricas, um dos juristas mais citados na decisão foi o atual presidente Michel Temer, autor de um livro de Direito Constitucional em 1982. Temer ensinava que a Constituição de 1946 acabara com a natureza “acessória” da segunda pena, defendida por Rui Barbosa. Eis o que ele escreveu sobre o assunto: “A inabilitação para o exercício de função pública não decorre da perda do cargo, como à primeira leitura pode parecer. Decorre da própria responsabilização. Não é pena acessória. É, ao lado da perda do cargo, pena principal. (…) A renúncia, quando já iniciado o processo de responsabilização política, tornaria inócuo o dispositivo constitucional se fosse obstáculo ao prosseguimento da ação”. Tal foi a interpretação de Velloso.

Ela foi contestada por diferentes motivos. Autor de uma monografia clássica sobre impeachment, o jurista Paulo Brossard estava presente no julgamento do mandado de segurança de Collor. Ele se recusou a analisar a questão, alegando que o STF não tinha competência para tratar de qualquer decisão do Senado. “As decisões do Senado são incontrastáveis, irrecorríveis, irrevisíveis, irrevogáveis, definitivas”, escreveu em sua obra O impeachment. No dia do julgamento do Mandado de Segurança, afirmou: “Esta é a quarta vez que o STF é chamado a intervir em área que a Constituição lhe não conferiu, mas ao Senado reservou, e só ao Senado, numa quebra do monopólio do Poder Judiciário”. Obrigado a dar um voto a respeito, Brossard negou o mandado a Collor e concordou com o Velloso, que mantivera a condenação.

Para o ministro Ilmar Galvão, a “inabilitação” continuava a ser uma pena acessória, mesmo depois da Constituição de 1946. “O simples fato de passarem as penas, nos diversos textos, a serem ligadas entre si por meio de preposição, em lugar da conjunção coordenativa aditiva ‘e’, contrariamente ao que se argumentou, constituiu dado suficiente para induzir vínculo de acessoriedade entre as duas penas, levando à conclusão inevitável de que à principal — perda do cargo, no caso, do exercício da mais eminente magistratura, em nosso País — se ligou, acompanhando-a, em sua existência, a de inabilitação”, disse. Apesar disso, Ilmar acatou o mandado de Collor.

A mesma decisão tomou o ministro Celso de Mello, embora tivesse visão distinta sobras penas, que considerava uma sanção conjunta, que não poderia ser separada no caso do impeachment. “Não vislumbro a existência de sanções político-jurídicas de caráter autônomo”, afirmou. “Entendo que, ao contrário, há uma única sanção constitucionalmente estabelecida: a de desqualificação funcional, que compreende, na abrangência do seu conteúdo, a destituição do cargo com a inabilitação temporária. A unidade constitucional da sanção prevista torna-a indecomponível, incindível.” Por isso, Celso considerou a decisão do Senado contra Collor inconstitucional.

Para o ministro Sepúlveda Pertence, as penas também só podiam ser aplicadas em conjunto. “A cominação de ambas as penas incide, sem que a uma se possa qualificar de principal e à outra, de acessória (…). Na frase, a preposição ‘com’ não tem o inusitado sentido subordinante, que se lhe pretende impor, mas sim, e somente, o de estatuir que as penas se aplicarão conjuntamente ao condenado por crime de responsabilidade.” Mesmo assim, ele acabou votando com Velloso pela manutenção da condenação de Collor.

O ministro Néri da Silveira foi mais explícito no argumento que deu para manter a condenação de Collor. Disse que, apesar de as penas formarem um conjunto único, a impossibilidade de aplicar uma por causa da renúncia não esvaziava a aplicação da outra. “Se o fim do legislador constituinte fosse somente a destituição, a pena única estabelecida seria a da perda do cargo, mas desde que ele consignou uma outra pena — a incapacidade para exercer qualquer emprego — e esta evidentemente não se satisfaz com a simples exoneração, claro é que a ação do Tribunal político não deve parar diante daquele fato”, escreveu. “Se a primeira não mais podia o órgão julgador impor, diante da renúncia, certo é que se procedente a denúncia, da condenação restaria, ainda, impor a segunda pena — a de inabilitação para o exercício de funções públicas.”

O ministro Moreira Alves usou um raciocínio parecido (as penas não podem ser autônomas) para dizer justamente o contrário: que a reclamação de Collor fazia sentido e o julgamento do STF deveria ser invalidado. “Quer se considere a perda do cargo com inabilitação para o exercício da função pública como pena única a que se atrela um efeito da sentença condenatória, ou como duas penas, em que a primeira é a principal e a segunda é a acessória, o que me parece manifesto é que elas não podem ser autônomas”. A separação geraria um problema ao permitir aplicar uma sem a outra, não da forma como ocorreu com Dilma, mas, ao contrário, “poder-se-ia manter o Presidente no cargo, inabilitando-o, por oito anos, para o exercício de qualquer função pública, o que, evidentemente, seria um dispautério”.

O presidente do tribunal, ministro Octavio Gallotti concordou com a argumentação de Celso de Mello ao votar pela invalidação do julgamento de Collor no Senado. “A Constituição diz ‘com’, e, quando usa essa preposição, quer estabelecer, ou a cominação das duas penas, ou a de nenhuma. Não uma pena sem a outra (…). Em outras palavras, a Constituição estabelece a unidade e a incindibilidade da apenação (…). A inabilitação é, sem dúvida, a conseqüência de uma prévia condenação à perda do cargo, que, no caso, não chegou a ser proferida pelo Senado Federal, por ser inconciliável com o ato do Congresso, que aceitara a renúncia do acusado e investira, no cargo, o sucessor. (…) O Senado Federal proferiu um julgamento quando já se extinguira a sua especialíssima jurisdição, pelo simples fato de a renúncia do impetrante haver sido apresentada e aceita pelo Congresso Nacional.” 

Os três ministros do STJ convocados para desempatar o julgamento concordaram com o relator e mantiveram a condenação contra Collor. Sobre a vinculação das penas, o ministro William Patterson afirmou: “Não penso que as penas de perda de cargo e inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, conquanto autônomas, sejam desvinculadas (…) Bastaria o raciocínio de que não seria aceitável que alguém tido como inabilitado, por oito anos para o exercício de função pública, pudesse continuar no cargo e não poder exercer apenas outro, para se notar a vinculação existente entre as penas”. Os ministros Antônio Torreão e José Dantas driblaram a questão.

A multiplicidade de interpretações no caso Collor gerou indefinição jurídica a respeito de um texto constitucional aparentemente claro. Considerar as penas uma só equivaleria logicamente a invalidar o julgamento do Senado, como queriam Galotti e Celso de Mello – uma decisão politicamente custosa na ocasião. A solução de compromisso adotada por Velloso, Sepúlveda e Néri da Silveira – era uma pena só na condenação, mas podia separada na aplicação – contribuiu para abrir uma brecha. Ilmar tomou uma decisão aparentemente contraditória, ao manter a separação das penas, mas votar pela anulação do julgamento.

Quem sempre manteve a coerência foi o ministro Paulo Brossard. Ele julgava que o STF simplesmente não deveria se meter nas decisões do Senado. O impeachment era um processo de natureza predominantemente política. Deveria, portanto, ser da alçada exclusiva dos políticos. “Falece ao Poder Judiciário jurisdição para ingressar nesses territórios, que o demônio dos interesses insiste em levá-lo a percorrer”, disse. É um território que, para revolta do espírito de Brossard, voltará provavelmente a ser percorrido, depois que a decisão tomada ontem por Lewandowski abriu mais uma vez a porta para contestações no Supremo.

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