quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.

Sou Charlie, sou Ahmed, sou Yohan, sou... humana

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Faz uma semana que sou Charlie, como mais de dois milhões de franceses e incontáveis milhões de pessoas mundo afora.  Levo tarja preta na alma escrita em francês “Je suis Charlie” e acompanho as manifestações, as procissões, as lágrimas e o luto de Marianne, a República construída pela Revolução que cunhou as três gloriosas palavras “liberdade, igualdade, fraternidade”.
Sou Charlie porque creio na liberdade e no direito de todos de vivê-la e praticá-la.  No bojo deste direito estão as caricaturas e os desenhos – nem todos me agradavam - dos cartunistas assassinados.  Especialmente, é claro, os que criticavam cáustica e desrespeitosamente mistérios que para mim são sagrados, como católica que sou.  Confesso que não apreciava ver crenças que constroem minha identidade – como a Santíssima Trindade e a Virgem Maria – sendo objeto de caricaturas fortemente críticas e irreverentes. 
Porém, apesar de não apreciar estas e outras caricaturas, entre as quais as que criticam fortemente o Islã e o Profeta Maomé, não posso não ser Charlie. Quando 12 pessoas são brutalmente assassinadas em nome de Deus, não posso não colocar-me na pele dos mesmos que me ferem e ofendem com suas charges.  Não posso... porque eles são vítimas de um assassinato brutal e cruel.  Não posso, porque o direito deles à vida é mais sagrado do que o meu a ver minha fé respeitada.
Quando a violência de qualquer tipo faz vítimas, não há outro lugar para se estar senão onde estão elas.  Por isso, sou Charlie.  Sou também Ahmed, o policial muçulmano que morreu para defender os caricaturistas que criticavam sua religião.  Executado brutal e impiedosamente na rua em frente à redação do Charlie Hebdo, Ahmed Merabet era jovem e honesto.  Trabalhador, deixou mulher e filhos. Morreu um muçulmano, um homem de bem, um francês, um policial honesto. A violência cega da arma o metralhou em segundos. E desde aí...sou Ahmed.
Sou igualmente qualquer um dos reféns mortos no mercado kosher de Vincennes: Yohan, Yohav, Philippe e François. Sou todos eles e todas elas, vivendo seu susto e seu medo, seu desespero diante do ataque, e finalmente sua morte impiedosa perpetrada pelo atirador de Montrouge. E sou toda a comunidade francesa e judaica que nestes dias começa a sentir mais medo do que até então e teme por suas vidas e pelas de seus filhos. E por isso sou Yohan, Yohav... por isso choro e vivo com eles seu luto, enquanto seus corpos são transportados para Jerusalém.
Sou qualquer muçulmano que hoje se sente triste e constrangido porque o massacre do Charlie Hebdo mostrou uma face de sua religião que não é a verdadeira.  Sou qualquer dos devotos de Alá, que neste momento desejam que o mundo não os considere a todos fanáticos, assassinos e pessoas temíveis. Sou membro de qualquer povo que hoje possa ser desprezado, discriminado e vitimado por sua crença ou falta de crença, por sua identidade ou sua prática, por suas vestes ou gestos rituais.
Sou qualquer um e qualquer uma, qualquer passante, qualquer cidadão que hoje perdeu algo da espontaneidade do sorriso e da alegria de viver.  Sou iraquiana, sou síria, sou egípcia, sou nigeriana, sou de Boko-Haram.  Sou de qualquer lugar onde, hoje, viver é um peso e um terror, e não plena alegria.
Sou todos porque sou uma, porque sou humana, porque sou criada para a vida e não para a morte.  E, por isso, a morte violenta de qualquer irmão ou irmã em humanidade me atinge e mata algo em mim.  Não posso não sentir e com-padecer com eles e elas, porque eles e elas são eu, são parte de mim.
Não é a civilizada França que está lacerada.  Ou o combalido Iraque.  Ou a flagelada Síria.  É a humanidade que sangra e tem que voltar a crer na liberdade e exercer o inviolável direito de praticá-la.  Podem ofender-me, criticar-me, insultar-me.  Não tenho o direito de matar quem exerce sua liberdade expressando posições com as quais não concordo.  Não me cabe exterminar os que se voltam contra mim e me ofendem.
A condição humana é maior que as nações, que as pátrias, que as ideologias, que as religiões, que os laicismos de todas as formas.  Por isso, quando há vítimas em algum embate, o lugar de um ser humano é com elas.  O fundamento derradeiro e teológico para isso é o fato de que Deus mesmo está aí.  Não se há de encontrá-lo nas armas dos agressores e dos que os vingam com as mesmas armas.  Ele mora onde as vítimas sofrem, sangram, choram.  E onde os justos padecem e se compadecem.
Por isso sou Charlie, sou Ahmed, sou Yohan... Sou assim porque sou humana... Sou filha de Deus, como todos eles e elas.  Tudo está perdoado, como mostra a capa da nova edição do Charlie Hebdo, após a tragédia.  Mas o resgate da inocência, além de passar pelo perdão, não pode eludir nem descurar a identificação com as vítimas. Se todos hoje não formos Charlie, amanhã não haverá ninguém para ser nem Charlie nem ninguém.  A violência não para e cava o vazio, o abismo onde a humanidade não pode cair.
* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

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