No Dia de Natal, o Hospital Amadora-Sintra foi autorizado a contratar dez tarefeiros pedidos em março. Tarde demais. Para os feriados mais celebrados pelos portugueses, os hospitais de gestão pública tinham indicação para pagar até 30 euros por hora, mas os de gestão privada chegavam aos 80 euros. Concorrência desleal. Fruto de medidas de vários governos, o Estado gasta dinheiro, mas sente-se mais leve - contrata à hora em vez de empregar os clínicos - e com isso levou os profissionais de saúde a sentirem-se desvinculados. Gestão criativa.
Se fosse possível explicar em poucas razões o que levou as urgências do País a abrirem os noticiários durante vários dias, estas seriam algumas delas. Mas o assunto é complexo e bule com coisas tão simples como o cansaço ou tão recentes como a emigração de especialistas - só no ano passado saíram mais de 400 médicos para trabalhar no estrangeiro, segundo dados da Ordem dos Médicos. Normalmente, a prova de fogo ao sistema vem com a gripe. Este ano chegou mais cedo, em plena quadra natalícia, e muitos perguntam como será quando o vírus do inverno atacar em força.
MÉDICOS & TAREFEIROS
Perante a possibilidade de punir o médico que não apareceu - nem deu satisfações - no Amadora-Sintra, o bastonário não disfarça a irritação: "Sanções só para os médicos, não. Quem se lixa é sempre o mexilhão. Então, e as empresas? Há alguma inspeção? Auditoria? Não me venham dizer que a culpa é dos médicos, quando essas empresas não dão contas a ninguém."
José Manuel Silva garante que nunca chegou à Ordem qualquer queixa por falta de comparência dos tarefeiros e defende a instituição de multas, ou mesmo impossibilidade de concorrer às horas a contrato, por parte das empresas que faltem aos turnos acordados. "O que se passa nestas empresas é uma selva da responsabilidade do ministério."
Embora muitos se tenham chocado com os valores cobrados pelos clínicos, no verão de 2008, os montantes pagos chegaram aos 100 euros por hora. Muito longe dos atuais €30, que, "na prática, se traduzem em €12,5", já que €5 ficam para a empresa que contrata e a outra "metade vai para impostos". Sete anos depois dos primeiros escândalos com estas contratações, são mais de 50% os hospitais que recorrem a tarefeiros. 
Mas há contas ainda mais difíceis, lembra Mário Jorge. "O ministro privilegia as empresas de aluguer de mão de obra e abriu um fosso entre médicos e direções. Quem sai invoca a desorganização, a prepotência das administrações e a hostilização dos médicos." Para o vice-presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, "a política do corta-corta na calada dos gabinetes e o completo desinvestimento nos cuidados de saúde primários" estão na origem da crise agora vivida nos serviços.
O CAOS
A VISÃO apurou que já foi concluída a autópsia ao doente que morreu no corredor do Hospital S. José, encontrado morto numa maca pelo filho. O doente terá esperado seis horas para ser atendido no dia 27 de dezembro. Mas o resultado da autópsia está ainda em segredo, já que a administração do Centro Hospitalar Lisboa Central abriu um inquérito para apurar responsabilidades. Idêntica incógnita envolve o caso de Santa Maria da Feira, onde morreu outro homem, cinco horas depois de dar entrada no Hospital de São Sebastião. Segundo a família, nunca terá chegado a ser atendido.
Estas duas vítimas são os casos extremos. Mas o último Natal ficará marcado por esperas que chegaram a ultrapassar as 20 horas no Hospital Fernando da Fonseca. Em 3 dias, o Amadora-Sintra recebeu 900 doentes. Já no Hospital
S. José, a 26 de dezembro, com mais de 100 pessoas em espera da parte da tarde, só no serviço de Medicina, terá sido o de pior memória para os profissionais de saúde.
No gabinete de comunicação do Amadora-Sintra resumem-se os dias de caos como "a tempestade perfeita". Tudo se conjugou para correr mal. O problema começou com a falta de comparência de três dos tarefeiros escalados para a noite de Natal, um dos quais sem nunca ter sequer justificado a ausência. Agudizou-se com a idade dos pacientes (67 anos, em média), juntou-se ao encerramento dos centros de saúde da zona durante quatro dias e padeceu de burocracia aguda. "No início de dezembro veio a autorização para contratar os sete médicos que tínhamos pedido em março, mas era só a do Ministério da Saúde. Depois ainda é preciso o aval das Finanças. Se tudo correr bem, teremos o problema resolvido em março", explicou fonte do hospital à VISÃO.
É verdade que o caos instalado no Natal deu pressa à outra autorização pedida, a da contratação de mais 10 tarefeiros, chegada no próprio 25 de dezembro, mas já veio tarde. 
SEM MOTIVAÇÃO
As atenções estão viradas para as urgências hospitalares, mas o problema começa antes. Quando, nos dias a seguir ao Natal, os centros de saúde da zona de Sintra voltaram à normalidade, a afluência às urgências "foi reduzida em 50% para as pulseiras verdes" (as menos urgentes).
"Os cuidados primários deviam funcionar em comunicação com os hospitais, que podiam beber mais no modo de funcionamento das Unidades de Saúde Familiares. Até porque o grande problema dos serviços neste momento não é dinheiro, mas sim falta de motivação", diz João Varandas Fernandes, ex-diretor do Serviço de Urgência do Hospital S. José, atualmente a coordenar a unidade de fraturas daquela instituição. Varandas arrisca um chumbo aos atuais modelos por impossibilitarem um dos pressupostos básicos ao bom funcionamento dos serviços de saúde: o trabalho em equipa. "A Medicina é uma atividade que se exerce em coletivo e uma equipa médica em cirurgia, por exemplo, leva anos a fazer." 
MORTES 'DESNECESSÁRIAS' 
Mário Jorge Neves admite que não é a primeira vez que se assiste à rutura das urgências, "mas nunca com esta exuberância, e antes mesmo do pico da gripe". Para o dirigente da FNAM, "é o espelho da incompetência deste ministério".
Leitura partilhada pelo bastonário da Ordem: "Houve mortes desnecessárias e devem ficar na consciência do Ministério da Saúde e do Governo. Para não pagar horas extra aos médicos, prefere contratar empresas e gastar mais", acusa José Manuel Silva, que critica o "desaparecimento" do ministro da Saúde, Paulo Macedo, durante toda esta crise. "Para a Legionela, que foi resolvida graças ao esforço das equipas hospitalares, o ministro aparecia todos os dias. Agora que tem responsabilidades, não aparece?"
A VISÃO pediu informações e esclarecimentos ao Ministério da Saúde, que as encaminhou para a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo. Sem responder às questões sobre os problemas sentidos pelos utentes nas últimas semanas, fonte da ARS garantiu que "os conselhos de administração dos hospitais, em articulação com a ARSLVT, têm vindo a definir e implementar um conjunto de medidas de resposta adequadas à procura sentida".