Um álbum de fotos reveladas em 6 de maio de 2004 guarda registros de um Bento Rodrigues bem diferente do que existe nesta quinta-feira (5), dia que o rompimento da barragem de Fundão, emMariana, completa seis meses. Bento Rodrigues foi o distrito mais atingido pela lama naquele 5 de novembro de 2015. O 'tsunami' de terra, rejeitos de minérios e água devastou quase a totalidade da comunidade.
(O G1 publica, durante esta quinta-feira (5), três reportagens sobre passado, presente e futuro de Mariana e do distrito de Bento Rodrigues nos seis meses da tragédia do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco. O distrito foi a localidade mais afetada pela lama. A reportagem sobre o presente será publicada às 11h e a sobre o futuro, às 15h).
Francisco de Paula Felipe, operador de motosserra, de 47 anos, e morador por mais de 30 anos de Bento Rodrigues, revê com nostalgia o álbum, uma das poucas lembranças que ele conseguiu manter após a tragédia. Entre as fotografias, estão registros do campo de futebol, um dos primeiros lugares a ser varrido pela lama. “Essas fotos são lembrança, um pedacinho da minha infância. Hoje, isso aqui é uma saudade que ficou e isso pode ficar de lembrança para futuras gerações minhas. Isso vai ser uma saudade que nada vai apagar. Enquanto eu viver, eu vou viver essa saudade e essa lembrança”, disse.
O rompimento da barragem de Fundão, que pertence à mineradora Samarco, cujas donas são aVale e a BHP Billiton, afetou outras localidades de Mariana, além do leito do Rio Doce. Os rejeitos também atingiram mais de 40 cidades de Minas Gerais e no Espírito Santo e chegou ao mar. Dezenove pessoas morreram. Um corpo ainda está desaparecido. O desastre ambiental é considerado o maior e sem precedentes no Brasil.
Francisco contou que estava assistindo à novela pouco antes do rompimento de Fundão. Ele diz que a primeira lembrança que sempre vem à cabeça quando pensa no dia da tragédia é o aperto no peito que sentiu quando a sogra, Maria das Graças, chamou a mulher dele, Marli, para acompanhá-la até em casa. “Acho que foi um sinal de Deus, deve ser”, afirmou. Naquela tarde, Marli recusou o convite da mãe, e ficou em casa. Maria das Graças Celestino Silva é uma das vítimas da tragédia.
Diferentemente da idosa, ele morava na parte mais alta de Bento Rodrigues, área em que as construções ficaram intactas. Como a lama não chegou até a casa de Francisco, ele conseguiu preservar recordações de Bento Rodrigues, além da memória. Uma delas é um sofá, o único móvel que não teve que vender ou doar por causa das três mudanças: primeiro para um hotel, depois para um apartamento, onde a família não se adaptou, e, por último, uma casa de três quartos e sala grande.
Seis meses não foi tempo suficiente para deixar a memória de Francisco e de outros moradores de Bento Rodrigues menos viva em relação àquele 5 de novembro.
Sônia Xisto dos Santos de Souza, de 37 anos, é uma das integrantes da Associação de Hortigranjeiros de Bento Rodrigues, responsável pela produção de pimenta biquinho, produto de destaque na comunidade. Ela se lembra com detalhes do seu último dia em Bento Rodrigues.
“Dava 16h, meu menino ia tomar banho porque ele estudava em Santa Rita [distrito de Mariana]. Nesse dia, ele foi tomar banho, eu estava no meu quarto vendo novela e meu sobrinho estava no quarto do meu filho vendo desenho. E eu estava escutando aquela zoeira, mas eu achei que fosse o cano. Daí a pouco, ouvi uma ‘gritaiada’, mas continuei quieta”, relembrou.
Sônia somente percebeu o que estava acontecendo ao ouvir outra colega da associação gritar que a barragem havia se rompido. “Quando eu saí na porta da cozinha e a gente já ia embora, a lama já estava entrando na garagem da minha casa. Aí já não deu tempo”, disse. Ela chegou a ser arrastada pela enxurrada de lama.
Mesmo meio ano após o rompimento da barragem, ela não mais voltou a Bento Rodrigues, local de onde nunca queria ter saído. “Eu queria voltar para morar, mas não tem jeito mais. Se tivesse jeito de construir as casas de novo para voltar para lá, eu queria. Se não tivesse risco, eu queria, mas já que não tem...”.
O que sobrou
Além de ruínas e entulhos das casas totalmente encobertas pela lama, Bento Rodrigues tem ainda algums imóveis na parte mais alta que não ficaram no caminho do "tsunami". Mas essas construções têm sofrido outro problema: saques constantes desde o último novembro.
Além de ruínas e entulhos das casas totalmente encobertas pela lama, Bento Rodrigues tem ainda algums imóveis na parte mais alta que não ficaram no caminho do "tsunami". Mas essas construções têm sofrido outro problema: saques constantes desde o último novembro.
Uma das casas que haviam ficado intactas é a de Francisco. Apesar disso, atualmente, ele não está preservado. A pia e o encanamento foram furtados. Até a cerca da varanda, estrutura que o operador de motoserra pretendia reutilizar da casa que deve ser construída no novo Bento Rodrigues, foi levada.
Da mesma forma, a sede da Associação de Hortigranjeiros de Bento Rodrigues não foi poupada. A construção, que serviu de abrigo para o Corpo de Bombeiros durante a busca por desaparecidos, hoje está exposta à chuva e ao sol. A presidente da associação, Keila Vardeli Fialho dos Santos, conta que, entre os itens furtados, está todo o telhado do imóvel.
Antes do início da ação dos ladrões, entretanto, as integrantes da associação conseguiram buscar equipamentos, potes de vidro e o estoque de pimenta biquinho, usados na fabricação da geleia que ganhou ainda mais fama depois da tragédia. Elas dizem que, mesmo com fornecimento de energia cortado, o fato de sempre dizerem que o local era vigiado por câmeras deve ter inibido, ao menos por alguns dias, os furtos.
A sede da associação foi transferida temporariamente para o bairro Colina, em Mariana. A cada cerca de 15 dias, as sete mulheres que integram a associação se reúnem para produzir a geleia. O estoque da principal matéria-prima, que era cultivada por elas em um terreno que agora está debaixo de lama em Bento Rodrigues, ainda é suficiente para quatro meses, de acordo com Keila. Depois disso, a pimenta biquinho terá que ser comprada de outros produtores porque, segundo as mulheres, o cultivo é inviável enquanto elas viverem espalhadas, cada uma em uma parte de Mariana.
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