Sérgio Moro sem dúvida fez história ontem. Não bastasse a assepsia moral que a Operação Lava Jato tem imprimido há dois anos às relações espúrias entre as empresas e o Estado brasileiro, ele não titubeou ao investigar e ao mandar interrogar, à força se necessário, ninguém menos que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, suspeito de receber favores ilícitos de empreiteiras. O fato terá desdobramentos jurídicos e políticos ainda insondáveis. É preciso analisá-los em separado para vislumbrar as consequências.
Comecemos pela parte jurídica. Tecnicamente, Moro acreditou que era justificado submeter Lula a um mandado de “condução coercitiva”, para evitar “tumultos como o havido recentemente perante o Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo, quando houve confronto entre manifestantes políticos favoráveis e desfavoráreis ao ex-presidente”.
“Colhendo o depoimento mediante condução coercitiva, são menores as probabilidades de que algo semelhante ocorra, já que essas manifestações não aparentam ser totalmente espontâneas”, escreveu Moro. Ele ainda foi cauteloso, ao determinar que não fosse usada algema, nem permitida filmagem do deslocamento de Lula. Por fim, estabeleceu que o mandado só deveria “ser utilizado e cumprido, caso o ex-presidente, convidado a acompanhar a autoridade policial para depoimento, se recusasse a fazê-lo”.
Os confrontos entre manifestantes petistas e antipetistas ontem, diante do edifício de Lula em São Bernardo e no aeroporto de Congonhas onde ele depôs, mostraram que a avaliação de Moro foi um equívoco. Sua intenção não se cumpriu. Ao contrário. O conflito registrou uma intensidade ainda maior que por ocasião do depoimento abortado no Fórum da Barra Funda. Embora tenha reconhecido a cordialidade dos policiais, aparentemente insuficiente para evitar o uso do mandado, Lula soube aproveitar politicamente a coerção a que foi submetido para criar um clima de conflagração. Politicamente, portanto, Moro errou.
Juridicamente, no entanto, a decisão de submeter Lula a interrogatório é incontestável. Basta ler o pedido do Ministério Público Federal para entender como são fortes, sobejas e documentadas as evidências contra Lula. “Diversos fatos vinculados ao esquema que fraudou as licitações da Petrobras apontam que o ex- Presidente da República Lula tinha ciência do estratagema criminoso e dele se beneficiou”, escreveram os procuradores.
De acordo com eles, Lula sabia que empresas faziam doações eleitorais “por fora” e que havia um “ávido loteamento de cargos públicos”. “Não é crível que Lula desconhecesse a motivação dos pagamentos de ‘caixa 2’ nas campanhas eleitorais, o porquê da voracidade em assumir elevados postos na administração pública federal, e a existência de vinculação entre um fato e outro”, dizem. “Há elementos de prova de que Lula tinha ciência do esquema criminoso engendrado em desfavor da Petrobras e também de que recebeu, direta e indiretamente, vantagens indevidas decorrentes dessa estrutura delituosa.” Eis os principais:
1) Lula era próximo dos investigados e condenados nos esquemas do petrolão e do mensalão, como o ex-ministro José Dirceu, o empreiteiro Léo Pinheiro ou o pecuarista José Carlos Bumlai. O esquema na Petrobras funcionou durante o período de seu governo.
2) Entre 2011 e 2014, os maiores doadores do Instituto Lula e de sua empresa de palestras, a Lils, foram as empreiteiras investigadas na Lava Jato. De 35 milhões recebidos no período pelo instituto, R$ 20,7 milhões (60%) vieram das empreiteiras Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS e Andrade Gutierrez. De R$ 21 milhões recebidos pela Lils, quase R$ 10 milhões (47%) vieram dessas empreiteiras, acrescidas da UTC. Ao todo, as duas estruturas ligadas a Lula receberam R$ 31 milhões de um total de R$ 56 milhões (55%) das empreiteiras da Lava Jato. Os maiores pagadores da Lils e maiores doadores do Instituto Lula são as empreiteiras do petrolão. O quadro abaixo mostra esses pagamentos e revela, de modo eloquente, a relação da dependência financeira que as vincula a Lula:
3) A OAS arcou com cerca de R$ 1 milhão em despesas para reformar o apartamento 164-A do condomínio Solaris, no Guarujá. Depoimentos corroboram que Lula e a família visitaram o imóvel. Documentos comprovam que seus familiares trataram da reforma. “As notas públicas de Lula sobre a propriedade não guardam pertinência lógica com a estrutura negocial construída pela OAS no condomínio Solaris”, diz o MPF.
4) Depoimentos comprovam o envolvimento de Lula e de sua família nas obras do sítio de dois amigos de seu filho em Atibaia. Isso sugere, para os procuradores, ocultação patrimonial. “A compra do sítio envolve situações nebulosas”, dizem. Há indícios de envolvimento da Odebrecht, da OAS e de um funcionário da empresa de Bumlai nas obras de Atibaia. Foi para lá que Lula enviou sua gigantesca mudança depois que deixou o Palácio da Alvorada. Sua mulher, Marisa Letícia, comprou e enviou para o sítio um pequeno barco e pedalinhos gravados com o nome dos netos.
“A priori, não há algo de ilícito em realizar palestras e receber por elas, assim como doações oficiais a entidades com fins sociais são perfeitamente legais e, da mesma forma, contratos de consultoria são lícitos”, afirmam os procuradores. “O problema surge quando há indicativos ou provas de que as doações, os contratos e os serviços foram usados para esconder a natureza real de pagamentos de propina. A suspeita, fundada, agora, é que as supostas palestras e doações possam ter sido usadas como justificativas formais para pagamentos de vantagens indevidas.”
Plenamente justificável do ponto de vista jurídico, a decisão de submeter Lula a coerção só fez acirrar o clima já exaltado na política brasileira – e isso não traz necessariamente boas notícias para o país. O cenário mudou ontem. Lula aproveitou a situação para desempenhar um papel que já se tornou sua especialidade: vítima das “elites”. E para inflamar os militantes petistas e criar um clima de conflagração.
No pronunciamento que fez após o interrogatório – chamado, talvez por ironia, de “entrevista coletiva” –, Lula deu vazão a sua ira. “Já prestei três depoimentos este ano. Jamais me recusaria a prestar depoimento”, disse. “Moro não precisaria ter mandado uma coerção da Polícia Federal na minha casa de manhã. Era só ter comunicado que iríamos lá. Me senti prisioneiro hoje de manhã. Nosso país não pode continuar amedrontado.”
Pela primeira vez desde que as denúncias vieram à tona, ele se manifestou sobre o assunto:
– Me transformei no conferencista mais caro do mundo com o Bill Clinton
– Sabem o que é alguém sair da presidência com 11 contêineres de acervo sem ter onde pôr? Desde Floriano Peixoto, fui o presidente que mais ganhou presentes. Tem até trono da África. O que faço com isso?
– Não me faz nenhuma importância a quantidade de relógios de ouro que eu tenho. Uso meu Citizen aqui, não vou fazer merchandising, que custa uns 500, 600 reais. Não quero valorizar meu pulso, quero valorizar a hora, quero saber se funciona ou não.
– Vocês não imaginam hoje a preocupação com vinho. Não sei diferenciar um Miolo gaúcho de um Romanée-Conti. Um dia um amigo meu, Marco Aurélio Garcia, me deu aquela coisa onde bota vinho como chama mesmo...? Isso! Decant’. Eu achava maravilhoso falar decant’. Cheguei no Palácio e tinham colocado flores, acharam que era um porta-flores.
– Esse companheiro comprou uma chácara na perspectiva de que eu usasse. Não posso usar porque é crime, estou usando a chácara. Um apartamento que não é meu e dizem que é meu. Quero saber quem vai me dar o apartamento quando este processo terminar. Se eu não paguei e não comprei, não é meu. Alguém vai ter que me dar o apartamento. E alguém vai ter que me dar a chácara. Quando eu pagar e tiver uma escritura no meu nome, vou dizer: “É meu”. E terei orgulho de ter.
– Não é possível ver o país sendo vítima de um espetáculo midiático que coloca como corrupção um barco de R$ 4 mil da Marisa ou pedalinho de R$ 2 mil que ela comprou pros netos. Uso o sítio dos amigos porque os inimigos não me oferecem. Quem tem casa em Paris e Nova York, se me oferecesse, eu ia (sic)
– Se a PF ou o MP encontrarem R$ 1 de desvio na minha conduta, eu não mereço ser deste partido, não mereço
Tais explicações são, evidentemente, pura conversa mole. Como justificar a proximidade com os empreiteiros e o dinheiro das empreiteiras nas contas do Instituto Lula e da Lils? Talvez ele tenha respondido isso aos delegados da PF, talvez pudesse responder em uma entrevista coletiva sem aspas. Até agora, porém, não respondeu. Segue repetindo os sempiternos ataques à imprensa profissional – que, ao publicar as denúncias contra ele e os petistas, faz apenas seu trabalho.
A lógica de Lula continua a mesma: é dividir o país ao meio, acirrar a polarização política para aproveitar-se dela e manter seu partido no poder. Como já escrevi na minha série de postssobre a polarização na política, o PT é o artífice e o principal beneficiário do clima de conflito instaurado no Brasil, repetido nas manifestações de apoio e repúdio a Lula. Seu objetivo, agora, é inflamar ainda mais os ânimos ao convocar a militância para protestar.
Para isso, ele recorre aos mesmos chavões de sempre, que divem o país em “povo” e “elite”; “pobres” e “ricos”; “nós” e “eles”, “bem” e “mal”. “Provamos que os pobres que eram a desculpa deles para não fazerem nada neste país não eram o problema, mas eram a solução”, disse. “Fizemos os pobres terem acesso à universidade, emprego, o mínimo para comer, Bolsa Família, Pronatec. (…) Provei que o povo humilde deste país pode andar de cabeça erguida, pode comer carne de primeira, pode ter dente pra comer um pedaço de amendoim. (…) Isso incomodou muita gente e (acham que) é preciso destruir o avanço dos de baixo (…) É puro preconceito. Todo mundo pode, menos esta m.. deste metalúrgico que um dia resolveu desafiá-los e virar presidente da República? Eles partem do pressuposto de que pobre nasceu para comer em coxo, e eu aprendi que não. Quero comer comida boa.”
Apesar desse discurso cheio de rancor, Lula afirmou: “Não tenho complexo de vira-lata. Sei o que fiz neste país (…) Aprendi a andar de cabeça erguida não por favor. E não vou abaixar a cabeça (…) Só tem um jeito de a gente levantar a cabeça. É a gente não ter medo. É fazer com que eles sejam tratados igual todos nós somos tratados”.
Por fim, Lula conclamou a militância: “Estou indignado pelo que fizeram com minha família, com meus companheiros do instituto e do PT. Embora esteja intimamente magoado – acho que eu merecia um pouco mais de respeito –, (…) o que aconteceu hoje era o que precisava acontecer para o PT levantar a cabeça. Há muito tempo que o PT está de cabeça baixa. Há muito tempo, todo santo dia, alguém faz o PT sangrar. (…) A partir da semana que vem, quero dizer à CUT, ao PT aos sem-terra, ao PCdoB, que me convidem que eu estarei disposto a andar este país. Quem quiser um discursinho do Lula, é só acertar passagem de avião – não vai de ônibus que demora muito –, que estou disposto a andar este país”.
Lula disse que não sabe se será candidato em 2018. “A natureza às vezes é implacável quando a gente ultrapassa os 70.” Mas sua preocupação política é mais urgente. Ele precisa antes salvar sua pele e tentar manter no cargo seu partido e a presidente Dilma Rousseff. Para isso, não encontrou outra saída. Voltou a ser o Lula inflamado de outros tempos, voltou a querer amedrontar e ameaçar pôr fogo no país. “ É preciso recomeçar”, disse. “Estou disposto a fazer a mesma coisa.”
Se queria mesmo evitar conflitos, Moro deveria ter elementos para manter Lula preso, ou então interrogá-lo sem coerção. Sua decisão só contribuiu para irritá-lo. “Embora tenham me ofendido e me magoado, embora eu me sinta ultrajado, como se fosse prisioneiro, apesar do tratamento cortês dos delegados da PF, quero dizer que, se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo. E a jararaca está viva, como sempre esteve.” Sua reação, agora, é imprevisível.
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