Estado Democrático de Direito agoniza
O Ministério Público de São Paulo e o pedido de prisão de Lula: a morte do Direito ou da Filosofia?
“Quando a filosofia chega, com sua luz crepuscular, a um mundo que declina, é porque alguma manifestação de vida está prestes a desaparecer. Não vem a filosofia para renová-la, mas apenas para reconhecê-la”.
Georg Hegel
A citação de filósofos costuma ser uma forma de demonstrar conhecimento intelectual. Em tempos de comunicação “fast food” os portais de pesquisa na internet substituíram – não sem muitos prejuízos para o conhecimento – livros e textos. Basta dar um “google” e acessar a interpretação já feita por terceiros ao conteúdo que deveria ser estudado. Afinal, por que preciso eu formar minha própria opinião se tantos já o fizeram antes?
O problema pode ser minimizado se a opção de “pesquisa” for sobre textos acadêmicos. A propósito, academicamente se estudam perspectivas variadas sobre obras ditas clássicas, inclusive. Por outro lado, quando isso é feito de forma leviana, no estilo “copia e cola”, de algum modo a ausência de domínio sobre o que se expõe não passa despercebida a um olhar mais atento. No limite, as menções ou transcrições – fora o debate sobre plágio e agressão a direitos autorais relacionados a obras não alcançadas pelo domínio público – podem gerar distorções acerca do pensamento teórico que não se vincula a interpretações.
A peça segundo a qual os promotores do Estado de São Paulo José Carlos Blat, Cássio Roberto Conserino e Fernando Henrique Araújo pediram a prisão preventiva do ex-presidente Lula virou motivo de piada nas redes sociais tão logo foi divulgada, sobremaneira por trazer uma referência equivocada ao pensador Georg Hegel no lugar de Friedrich Engels, considerado o fundador do socialismo científico junto com Karl Marx.
A petição faz ainda referência ao igualmente filósofo alemão Friedrich Nietzsche, imputando-lhe a fundamentação da igualdade entre os homens que dá sustentáculo à isonomia.
Urge pontuar que Nietzsche, para quem a antagonista da verdade é a convicção, não a mentira, é a maior vítima da “tese” esposada pelos promotores de São Paulo. Paradoxalmente, é um teórico com base no qual se pode contestar todo o arcabouço pretensamente jurídico exposto por aquelas autoridades, tomadas de certezas prévias sobre culpa e responsabilidade, expondo argumentos vazios sobre perturbação da paz social, críticas à atuação da Justiça e de colocação acima da lei.
Ao não apontar um só fato concreto a justificar um pedido de restrição da liberdade de um cidadão, os três membros do Ministério Público de São Paulo demonstraram que possuem poucas chances de se aproximar da verdade, justamente por já terem abraçado a convicção sobre os crimes e sua autoria.
Tivessem de fato os promotores lido Nietzsche e não apenas tomado emprestado dele uma frase de uma famosa obra; quisessem lhe seguir o mandamento, buscariam a redução de visões distorcidas a partir de suas premissas e se poriam a cismar sobre suas convicções, em saudável exercício de busca. Fizeram justo o oposto. Caíram na armadilha mais comum de tomar a decisão primeiro e ir buscar razões que as justifiquem depois, no processo conhecido na pesquisa científica como confirmação do preconceito (confirmation bias).
Não há uma investigação, porque tudo já está decidido. Os promotores só verão o que querem ver.
O Ministério Público é uma instituição muito importante na democracia brasileira. Fatos como os que vêm norteando a ação de alguns de seus membros, não apenas em São Paulo, bom que se diga, joga contra sua seriedade e credibilidade. Temos assistido – e toda a argumentação constante na peça jurídica o revela – a movimentos tomados com base em ideologia política. Não há qualquer contenção, mas ao oposto. Convocam coletivas de imprensa para preparar o terreno para as ações. Revelam a jornalistas a crença da culpa de investigados e atuam em superexposição. Episódios patéticos quando contrastados com o profissionalismo e a seriedade com que deveriam exercer a profissão.
A propósito dessa parte me convém recordar outra filósofa alemã, esta do recente século XX.
Em uma passagem na parte inicial de sua obra “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal“, ao criticar o ruidoso comportamento do procurador-geral de Israel, Gideon Hausner, durante o julgamento do ex-oficial nazista Adolf Eichmann, Hannah Arendt nos deu uma lição que se encaixa perfeitamente neste debate:“Justiça não admite coisas desse tipo; ela exige isolamento, admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores”.
Decerto não há tristeza alguma nas manifestações dos promotores, nenhuma cautela. Ao oposto, não disfarçam o prazer dos anúncios das informações produzidas com alto grau de alarido, algumas frutos de depoimentos de outros investigados, delações ditas premiadas, cujo conteúdo deveria estar em segredo de justiça ou, no mínimo, reservado. Tornam impossível não questionar a autenticidade e licitude dos conteúdos e dos ritos, esses em que o inquérito é transformado em pirotecnia e o investigado exposto ao justiçamento e à execração pública.
Vivemos tempos em que a presunção de inocência e o devido processo legal são relativizados no cotidiano das atuações das operações da Policia Federal e nas decisões de juízes e tribunais. Tempos em que direitos são tidos como obstáculos inoportunos à mais contemporânea faceta do direito penal, chamada de combate à corrupção.
Nesses tempos o Estado Democrático de Direito agoniza. E a filosofia talvez precise da coruja de Minerva de que trata Hegel – o filósofo citado equivocadamente no pedido de prisão de Lula – no seu “Introdução à Filosofia do Direito”. Porque para ver amplamente é necessário alçar voo, estar acima das miudezas postas. Somente através da filosofia é possível enxergar além dos fatos isolados, buscar o contexto geral que ofereça sentido e mostre que há caminho a seguir.
Notas e Referências:
Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à Filosofia do Direito. Trad. Paulo Meneses e outros. São Paulo: UNISINOS/ UNICAP/LOYOLA, 2010.
Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Trad. Carlos Duarte e Anna Duarte. São Paulo. Martin Claret, 2010.
Tânia M. S. Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado.
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