terça-feira, 2 de maio de 2017

Lava Jato: Fichas dobradas na mesa de Moro




Política

Lava Jato



por Rodrigo Martins — publicado 29/04/2017 00h10, última modificação 28/04/2017 17h46
Enquanto Palocci ameaça a banca e Léo Pinheiro cede à ilegalidade, o Senado aprova a Lei de Abuso de Autoridade

Roberto Requião
Agora as "pitonisas gregas" terão de seguir a lei, alerta Requião, relator da nova legislação


O cassino, a banca sempre ganha, alerta o velho adágio. Na mesa gerenciada pelo juiz Sergio Moro, responsável pela Operação Lava Jato na primeira instância, alguns jogadores parecem convencidos de que o melhor caminho é não desafiar a casa. Outros parecem dispostos a dobrar as fichas em aposta. Uma mudança nas regras promete, porém, tornar o jogo mais equilibrado, ao fixar limites para as manobras do croupier.

Aprovado pelo Senado, um projeto amplia o leque de situações em que um servidor público pode ser responsabilizado por abuso de autoridade, além de estabelecer penas mais rígidas. Quem realizar interceptações ou escutas sem autorização judicial pode ser condenado a até quatro anos de reclusão e multa. A divulgação de trechos de gravações sem relação com a prova que se pretende produzir rende punição semelhante. A condução coercitiva de uma testemunha ou pessoa investigada, sem prévia intimação judicial, também configura crime, caso a proposta seja aprovada pela Câmara e sancionada pela Presidência.
Essas são apenas algumas das mudanças previstas no projeto de lei relatado pelo senador Roberto Requião, do PMDB. Tais condutas viraram corriqueiras desde o início da Lava Jato, razão pela qual o parlamentar tornou-se, nos últimos tempos, persona non grata na República de Curitiba. Na prática, se a lei já vigorasse, talvez o próprio Moro estaria no banco dos réus pela sucessão de arbitrariedades chanceladas contra investigados, notadamente o ex-presidente Lula, seu alvo preferencial.
Em um único mês, março de 2016, às vésperas da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, o magistrado pediu a condução coercitiva do líder petista antes de convocá-lo a depor, divulgou conversas interceptadas entre Lula e a então presidenta fora do prazo autorizado judicialmente, revelou diálogos domésticos e estranhos à investigação da ex-primeira dama Marisa Letícia. Repreendido por difundir os grampos pelo falecido ministro Teori Zavascki, antigo relator da Lava Jato, Moro não sofreu qualquer sanção. Bastaram as escusas.
Após os procuradores da força-tarefa da Lava Jato convocarem a população a lutar contra a Lei de Abuso de Autoridade em vídeo nas redes sociais, Moro usou as páginas do jornal O Globo para fazer lobby contra o projeto, apresentado como uma ameaça à “independência judicial”. Requião fez questão de rebater o juiz na sessão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado que aprovou o texto por unanimidade: “A magistratura deve ter toda a liberdade na sua ação, exceto a de violar direitos da cidadania por abuso de autoridade”.
Derrotado no jogo legislativo, Moro passou a elogiar a redação final e as mudanças feitas no projeto na quarta-feira 26, “uma vitória dos parlamentares moderados”. Para garantir consenso na CCJ, Requião alterou o trecho que trata do chamado crime de hermenêutica. O texto original dizia que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade”. O senador acatou a sugestão do tucano Antonio Anastasia e retirou os termos “razoável” e “fundamentada”.
A CartaCapital Requião minimizou a mudança. “Botei um bode na sala e depois tirei. A razoabilidade é princípio constitucional na interpretação do Direito e a fundamentação é uma obrigação legal em todas as instâncias processuais. Não mudei rigorosamente nada”, afirma o senador. “Agora, os juízes e procuradores deverão seguir a lei, não poderão mais se portar como o Oráculo de Delfos ou como as pitonisas gregas.”
Prolongar prisões temporárias e preventivas, deixando de soltar o preso quando expirado o prazo legal, também pode ser punido. No início de 2016, uma centena de advogados subscreveram um manifesto contra as práticas da Lava Jato, em particular o uso de prisões cautelares “para forçar a celebração de acordos de delação premiada”. Requião assente: “É inconcebível manter investigados presos indefinidamente até que eles deem uma versão que corrobore as narrativas de procuradores e juízes”.
Nesse sentido, é emblemática a conversão de Léo Pinheiro, sócio da OAS, contra Lula. Desde que foi preso, em novembro de 2014, o executivo preservou a imagem do ex-presidente em seus depoimentos. Condenado a 16 anos de prisão, ele negociou uma colaboração com a força-tarefa da Lava Jato em junho de 2016, mas a delação foi rejeitada por não incriminar o líder petista. À época, uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou os detalhes da trama. Pinheiro disse que as reformas no apartamento do Guarujá e no sítio de Atibaia foram feitas pela empreiteira para agradar a Lula, mas negou a existência de qualquer contrapartida. O triplex à beira-mar teria custado à OAS 1 milhão de reais, mas a família do ex-presidente não se interessou pelo imóvel.
Sítio em Atibaia
Novamente, fala-se do sítio em Atibaia, propriedade de outrem, e do tríplex no Guarujá, que a família de Lula não quis comprar (Foto: Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo)
Com base na reportagem, os advogados de Lula pediram ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, uma apuração sobre o episódio, que poderia, em tese, configurar abuso de autoridade. Não deu em nada. Em setembro, o empreiteiro foi preso novamente, para “garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e segurança da aplicação da lei penal”. Dois meses depois, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região aumentou a pena de Léo Pinheiro para 26 anos de reclusão.
Agora envolvido em novo acordo de delação premiada, o empresário mudou a versão inicial. Aponta Lula como dono do imóvel do Guarujá e indica um desvio de 3,7 milhões de reais de contratos da OAS com a Petrobras para custear a reforma do tríplex e manter o acervo presidencial armazenado por uma empresa por certo tempo. As provas? Destruídas por “ordem de Lula”...
Em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, veiculada na quarta 26 pelo SBT, o ex-presidente decidiu sair da defensiva. “A condição sine qua non para que os procuradores aceitem a delação é citar o meu nome. E a gente lê todo dia nos blogs: ‘O Léo foi chamado para prestar depoimento, mas estão exigindo que ele fale o nome do Lula’, ‘o Ministério Público não aceitou o depoimento porque ele não falou o nome do Lula’”, afirmou. “Ele viu esses dias na televisão uma grande matéria sobre as pessoas que fizeram delação premiada, vivendo uma vida de nababo. O cara está condenado a 26 anos de cadeia e fala: ‘Bem, se tudo que eu fizer para sair daqui é fazer alguma futrica contra o Lula, eu vou delatar até a mãe, se for o caso’.”
Para lastrear as acusações, os procuradores esmeram-se na produção de fumaça. Entre 2012 e 2014, dois carros registrados em nome do Instituto Lula fizeram, pasmem!, ao menos seis viagens para o Guarujá, informam os inquisidores de Curitiba. As “convicções” são reforçadas pelos registros de pedágios de rodovias na Baixada Santista. O empresário também teria oferecido aos investigadores registros de ligações telefônicas entre Pinheiro e pessoas ligadas a Lula, como Clara Ant, Paulo Okamotto e José de Filippi Jr., a partir de 2012.
As listas trazem data e duração das conversas, mas não o seu conteúdo, observa Cristiano Zanin Martins, advogado de Lula. “Léo Pinheiro não tem nenhuma prova contra Lula, porque ele não cometeu qualquer ato ilícito. Ele tem uma versão negociada para agradar aos procuradores, para ter a sua delação premiada finalmente aceita, para que possa deixar a prisão.”
Acusado de gerenciar uma conta de propina reservada pela Odebrecht ao PT, Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma, é outro personagem que tenta cacifar a própria delação. Astuto, ameaça enredar graúdos do mercado financeiro, do Judiciário, da mídia, em aparente procura pela melhor oferta por sua fala ou por seu silêncio. Preso desde setembro de 2016, o petista prestou um depoimento a Moro de duas horas, no qual ofereceu um aperitivo. “Nunca pedi ou operei caixa 2, mas ouvi dizer que isso existiu em todas as campanhas, isso é um fato. Fico à sua disposição porque todos os nomes e situações que optei por não falar aqui por sensibilidade da informação estão à sua disposição.”
O advogado José Roberto Batochio, um dos principais criminalistas do País, abandonou a defesa do ex-ministro ao tomar conhecimento de sua intenção de delatar. Sempre foi um crítico ferrenho do instituto da colaboração premiada. Palocci já contratou um novo time especializado em firmar esse tipo de acordo, e não perdeu a chance de tentar seduzir Moro. Cordato do início ao fim, elogiou diversas vezes a atuação do juiz. “Acredito que posso dar um caminho, que talvez vá dar um ano de trabalho, mas é um trabalho que faz bem ao Brasil”, acenou.
Lula diz não estar preocupado com as revelações do antigo chefe de sua equipe econômica. Integrantes da cúpula petista ouvidos por CartaCapital parecem confusos diante dos sinais emitidos pelo ex-ministro. Alguns acreditam que o longo período encarcerado, distante da família, possa pesar na decisão de entregar segredos dos governos petistas. Outros dizem confiar em uma delação ampla, capaz de arrastar pelas águas turvas da Lava Jato personagens ainda desconhecidos do esquema.
Após dizer que a Odebrecht ofereceu uma “provisão” de 200 milhões de reais à campanha de Dilma em 2010, por meio de caixa 2, Palocci afirma ter sido procurado por “um banqueiro, uma grande personalidade do meio financeiro”, que desejava discutir essa “provisão”. Questionado por Moro sobre a identidade do interlocutor, disse que não era assunto para uma audiência pública. “Falo em sigilo na hora que o senhor quiser.”
Pré-candidato à Presidência da República pelo PDT, o ex-ministro Ciro Gomes estranhou o silêncio da mídia diante da revelação: “Não tem uma linha que estabeleça a natural curiosidade de dizer: quem é este banqueiro?”, indagou, durante uma palestra, na qual observou que não deve ser difícil conjecturar os prováveis nomes. “No Brasil, o sistema financeiro tem cinco (banqueiros). E, se for grande, tem dois”. Requião une-se ao coro: “Fala, Palocci. Fala! Fará um bem enorme ao Brasil”.
Escorregadio, negou as principais acusações que pesam contra ele no encontro com Moro, como a suposta intermediação de créditos do BNDES em favor da Odebrecht. Admitiu, porém, ter negociado o socorro a empresas de grande porte em situação pré-falimentar. “Confesso ao senhor que fiz reuniões para salvar a Varig, inclusive na sala da presidência do Supremo Tribunal Federal”, disse, antes de ser interrompido por Moro: “Não precisa entrar em detalhamento”. O ex-ministro não perdeu a chance de valorizar a carta que carrega: “Foi o caso da Varig, mas também de empresas de comunicação, que tiveram um problema sério nesse período, inclusive algumas declararam default (calote)”.
Apenas o que Palocci promete nessa passagem seria capaz de gerar um novo vendaval político, por expor juízes da Suprema Corte e grandes veículos de mídia em negociatas feitas às sombras. A Varig encerrou as suas atividades em julho de 2006. À época, o STF era presidido por Ellen Gracie, mas a suposta negociação de socorro pode ter ocorrido antes, quando Nelson Jobim presidia a Corte. A nuvem de suspeitas também recai sobre o maior conglomerado de mídia do País, as Organizações Globo, que declararam moratória em 28 de outubro de 2002, um dia após Lula vencer a eleição presidencial.
Nos anos 1990, a Globo decidiu entrar de cabeça no mercado de tevê por assinatura, por meio da Globopar. Conforme o próprio grupo relata, foram feitos investimentos da ordem de 1,7 bilhão de dólares em infraestrutura. Para tanto, a empresa endividou-se com credores estrangeiros e negociou títulos no mercado de capitais. Nesse movimento, a TV Globo passou a garantir os débitos da Globopar.
As assinaturas de tevê paga não cresceram no ritmo esperado e o grupo sofreu os impactos da abrupta desvalorização do real no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em quem a empresa da família Marinho confiava a ponto de acreditar na estabilidade cambial prometida na campanha à reeleição. Em janeiro de 1999, a moeda nacional perdeu metade do valor ante o dólar, o que motivou a quebra de muitas empresas com dívidas em moeda estrangeira.
Em fevereiro de 2016, a jornalista Mirian Dutra, ex-amante de FHC, afirmou ao site Diário do Centro do Mundo que a Globo a teria “exilado” com contratos na Europa para evitar que o seu retorno ao Brasil prejudicasse a imagem do então presidente. Em troca, a emissora teria recebido financiamentos do BNDES a juros baixos. “E não foram poucos”, enfatizou. As Organizações Globo apresentam outra versão sobre as relações com o banco.
Em seu site, diz que o BNDES jamais abriu uma linha de crédito. A instituição financeira era sócia da Globo Cabo desde 1999, e acompanhou o aumento de capital realizado por todos os sócios da empresa em 2002. “O banco injetou mais 156 milhões de reais, e a operação, que em outras circunstâncias seria considerada corriqueira, acabou gerando polêmica”, diz a nota. Teria Palocci novidades a contar sobre a era petista? Mais: estaria disposto a lançar essa carta na mesa ou faria o jogo da casa?
Enquanto isso, Lula prepara-se para o primeiro duelo com Moro. Recusou-se a abrir mão de qualquer uma das 87 testemunhas de defesa que arrolou no processo, mesmo diante da ameaça do magistrado de obrigá-lo a estar presente em todas as audiências. “Se for preciso, me mudo para Curitiba.” O ex-presidente também pretende solicitar transmissão ao vivo de seu primeiro depoimento, previsto para 10 de maio.
O petista diz querer evitar o vazamento seletivo de trechos da audiência, que deveria ocorrer na quarta-feira 3, mas foi adiado por solicitação da Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Motivo: organizar os órgãos de segurança para evitar que as manifestações contra e a favor saiam do controle, ainda mais no rescaldo da greve geral convocada pelas centrais para 28 de abril. 

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