Conheça a trajetória de Ravena Carmo, que foi parar na unidade de internação aos 15 anos, conseguiu dar a volta por cima e hoje estuda na universidade
“Revolucionário é todo aquele que quer mudar o mundo e tem a coragem de começar por si mesmo.” A frase de Sergio Vaz, poeta favorito de Ravena Carmo, ajusta-se perfeitamente à história de vida da jovem de 26 anos. Criada em Planaltina, logo cedo teve contato com o tráfico de drogas e, após passar por todas as fases de medidas socioeducativas, acabou privada de sua liberdade aos 14 anos.
Ela garante que foi por meio da educação e do comprometimento de um de seus professores no antigo Centro de Apoio Juvenil Especializado — o Caje –, que conseguiu dar a volta por cima. Após sair da internação, Ravena dedicou-se aos estudos e conseguiu passar em primeiro lugar no vestibular para ciências naturais da Universidade de Brasília (UnB).
Hoje, ela é mãe de um menino de 5 anos e voltou para a unidade de internação. Dessa vez, para trazer cultura e educação para os jovens internos.
GIOVANNA BEMBOM/METRÓPOLES
É no segundo bloco do campus da UnB de Planaltina que Ravena passa as tardes, estudando para seus últimos semestres do curso de ciências naturais. Ao circularmos pelo local, alunos e professores a cumprimentam numa atmosfera amigável e tranquila que é quase paradoxal, quando comparada ao seu passado.
Criada pela mãe, Ravena não tem lembranças nem o contato de seu pai, que foi embora quando ela tinha apenas 2 anos. Ela não atribui à falta de uma figura paterna nenhum fator de sua infância conturbada e muito menos imputa culpabilidade às circunstâncias do bairro onde nasceu.Para ela, embarcar no mundo das drogas aos 12 anos foi uma decisão própria. “Rolou. Simplesmente aconteceu. Era tão natural ter aquilo perto de mim. Até porque o crime é algo fascinante”, sintetiza.
A naturalidade com que Ravena refere-se a esse assunto tem a ver com o cenário em que ela morou durante toda a sua vida. Planaltina, apesar do clima aconchegante de cidade pequena, constantemente aparece nos jornais por sua onda de crimes violentos, a maioria deles com ligação direta com o tráfico de drogas.
Ravena também fazia parte dessa realidade. “Roubei uma vez só na minha vida, mas como eu entrei de verdade no mundo do crime, acabei tendo que passar por todas as medidas socioeducativas que existem. Levei desde advertência até a parte pior de todas, que foi a internação.”
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As medidas socioeducativas previstas no Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são aplicáveis a adolescentes que cometem atos infracionais. Assim como ocorre com os crimes comuns, as penas são baseadas no princípio da proporcionalidade e possuem um nível de gradação, podendo chegar à fase de reclusão.
Ravena foi encaminhada à antiga Unidade de Internação do Plano Piloto (Uipp), conhecida como Centro de Apoio Juvenil Especializado (ou CAJE) mais de uma vez. A última, bem traumática, foi depois de responder por uma tentativa de assassinato quando foi cobrar dívidas de drogas de uma mulher.
Lá era máquina de fazer bandido mesmo. O cheiro é algo que está cravado na minha memória. Um cheiro de cadeia mesmo. Um ambiente muito hostil e sem esperança."
Apesar disso, a estudante conta que o período fez com que ela mantivesse contato com psicólogos e professores. Um deles, de quem ela lembra com carinho, é Clayton Meiji Ito. Além de desenvolver um projeto de teatro, o professor dava aula de matemática dentro da unidade. “Ele era do caralho. Muito bom. Um dia chegou a dizer para mim que veria meu nome na UnB. Só que eu começava a rir porque não acreditava mesmo que eu poderia estar onde estou. Eu nem sabia o que era escola, direito.”
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Para Ravena, Meiji cumpriu o papel de um professor, que não é simplesmente passar conhecimento, mas plantar uma semente de esperança dentro do coração dos alunos. Enquanto estava dentro do Caje, a jovem, além de estudar, participava de campeonatos de poesia (os quais sempre ganhava) e fazia aulas de grafite.
“O que resolveu para mim não foi a medida socioeducativa, foi a educação. E quando eu falo isso, falo em educação e cultura porque elas não se separam de forma alguma.” Ravena permaneceu reclusa por dois anos e onze meses e saiu quando estava prestes a completar 18 anos.
A estudante conseguiu trabalhar em uma loja, por indicação de um amigo. No entanto, ela afirma que é mais do que necessário um acompanhamento verdadeiramente socioeducativo no qual haja um direcionamento pós-medida para os adolescentes que acabam de sair da internação.
O sistema socioeducativo aqui de Brasília é muito falho. Não há suporte quando o adolescente sai da internação. Ok, ele cumpriu a medida, mas muitos ao saírem não têm casa para morar e vão fazer o quê? Aí saem, não têm onde dormir, não têm o que vestir e acabam voltando para o crime"
Mesmo sem o acompanhamento, Ravena pediu as contas do emprego na loja e com o dinheiro entrou em um cursinho pré-vestibular. Não passou na prova de primeira. Apesar do desânimo, decidiu que permaneceria estudando. Ravena, que agora era mãe do pequeno Miguel, passou a estudar vendo aulas avulsas no YouTube e conquistou o primeiro lugar no curso de ciências naturais da UnB.
GIOVANNA BEMBOM/METRÓPOLES
Mas apesar da celebração, logo no primeiro semestre ela encontrou novas dificuldades. “Tive outro choque quando entrei aqui porque escola regular eu só estudei até o quarto ano. Universidade era algo muito novo para mim. Chorava todos os dias no banheiro porque o professor começava a falar de tabela periódica e eu não entendia nada do que ele estava falando.”
Além de aprender as matérias, Ravena confessa que teve de aprender a estudar. As imposições do curso, em vez de intimidá-la, deram força para que se adequasse ao ritmo e, com o tempo, a jovem foi se adaptando, fazendo amizades e buscando saber qual era seu papel na universidade.
Ao ver uma placa que questionava o sistema socioeducativo, Ravena não pensou duas vezes e, logo no primeiro semestre, já estava ministrando oficinas para jovens em unidades de internação.“Foi uma experiência inesquecível entrar pela porta da frente sem ser revistada. Tanto que vou desenvolver meu TCC sobre essa experiência. Quero virar doutora em socioeducação porque eu acredito na juventude. O que eu puder fazer dentro de educação e arte para ajudar pessoas, eu vou dar o meu melhor.”
Ravena atualmente é militante do movimento Hip Hop e participa ativamente do projeto “Educação e Psicologia – Mediações possíveis em tempo de inclusão” coordenado pela professora e psicóloga Juliana Caixeta.
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O projeto compreende a inclusão como fator primordial para a construção de um mundo mais justo e solidário. Além de englobar a pluralidade humana, tem como objetivo possibilitar a todas as pessoas a participação nos mais diversos contextos, sejam eles sociais ou culturais.
Dentro do projeto, ela conseguiu fundar outro subprojeto chamado “Poesia nas Quebradas” onde jovens, por meio da poesia, expressam suas realidades para diferentes locais e públicos. Para Ravena, a estratégia funciona porque a arte é livre, muda o sentido do caminho e dá voz e liberdade para as pessoas expressarem seus sentimentos. E ela não planeja parar por aí.
O que mais aprendi foi que a gente só precisa de um empurrão. Alguém que te diga: “Você dá conta”. Ter alguém que acredita em você não é utopia, é algo verdadeiro porque aconteceu comigo. A força está nos jovens."
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