segunda-feira, 27 de março de 2017

“O nosso cérebro não está preparado para mentir”





Rui Mergulhão Mendes faz detecção de mentiras e fraude. Está em tribunal como assessor de advogados do caso das eleições da Associação Mutualista Montepio. A sua presença num julgamento, inédita, causa cepticismo e curiosidade no meio. Afinal, qual é a verdade da mentira?


Rui Mergulhão Mendes diz que nos primeiros instantes consegue perceber com quem é que uma testemunha está alinhada
Rui Mergulhão Mendes diz que nos primeiros instantes consegue perceber com quem é que uma testemunha está alinhada RUI GAUDÊNCIO



Numa busca pelo Google, qual a palavra que tem mais resultados: “mentira” ou “verdade”? “Verdade”, indiscutivelmente, com cento e muitos milhões de entradas, enquanto a "mentira" aparece com pouco mais de 70 milhões. Será que preferimos a verdade à mentira?
Nas horas-chave para testá-lo, como um julgamento, verdade é a palavra usada por juízes quando se dirigem às testemunhas, arguidos e ofendidos. “Jura que responderá às questões com a verdade?", "está à vontade para responder com verdade?”, pergunta a juíza Mariana Capote na sala onde decorre a audiência da acção que impugnou as eleições para os órgãos sociais da Associação Mutualista Montepio.
“Quando alguém presta depoimento, consigo descobrir os pontos quentes, onde é que a pessoa eventualmente está a mentir”Estamos numa das sessões do julgamento, no Palácio da Justiça de Lisboa, em que se está a avaliar as alegadas irregularidades e falta de transparência da lista de Tomás Correia, vencedor das eleições em Dezembro de 2015. A acção judicial, da autoria do médico António Andrade e do arquitecto Nuno Monteiro, pede a repetição das eleições.
Sentado ao lado dos dois advogados que defendem os autores da acção está Rui Mergulhão Mendes, 48 anos. Objectivo: deslindar o que poderá ser mentira nos gestos, nos olhares e nalgumas palavras de quem se senta a depor – e que seja de interesse para a sua parte – , fornecer ao seu cliente elementos em que ninguém reparou. 




Sentado ao lado dos dois advogados que defendem os autores da acção está Rui Mergulhão Mendes, 48 anos. Objectivo: deslindar o que poderá ser mentira nos gestos, nos olhares e nalgumas palavras de quem se senta a depor – e que seja de interesse para a sua parte – , fornecer ao seu cliente elementos em que ninguém reparou. 
O especialista em detecção da mentira e fraude não diz, como Jason Bull, da série Dr. Bull, que o "veredicto depende" dele. Mas afirma: “Quando alguém presta depoimento, consigo descobrir os pontos quentes, onde é que a pessoa eventualmente está a mentir.” O recurso a alguém com o seu perfil em julgamentos está estudado – na Nova Zelândia, no Reino Unido, por exemplo, lembra o perito. Agora chega aos tribunais portugueses, sendo inédito segundo os profissionais da área consultados pelo PÚBLICO.
No escritório da Emotional Business Academy, a sua empresa de consultoria e formação em áreas como a linguagem corporal, liderança ou detecção de mentira e fraude, diz: “Sabemos que não podemos controlar tudo do ponto de vista da linguística e da comunicação. Os juízes e os advogados deviam ter competências nas áreas forenses, nomeadamente na entrevista investigativa.”
Na página da Internet da sua empresa está escrito que “as palavras representam apenas 7% da comunicação” e que “mais de 90% da opinião que formamos acerca de alguém acontece nos primeiros quatro minutos”. Como é que alguém detecta algo que supostamente está escondido? 

Espelho meu

Com um bloco de notas, onde vai escrevendo, Rui Mendes está sobretudo concentrado no interrogatório feito pelo advogado que está a assessorar. Mantém-se calado. “Não intervenho, ouço, recolho informação e no fim faço um relatório”, explica. “Não existe ali manipulação”, afirma quando o questionamos sobre isso. “Atenção, não estamos a falar de ciências exactas mas de ciências do comportamento humano, que necessitam de ser testadas."
Não faz perguntas, mas adoraria fazê-las. Pela postura corporal, garante, consegue perceber com quem é que a pessoa está alinhada logo nos primeiros instantes. “É a natureza humana: aproximamo-nos do que nos interessa e afastamo-nos do que não nos atrai.” Depois tenta perceber “como se desvia em relação ao comportamento” padrão. “Todos temos uma norma e o que quero apanhar é o desvio, que é quando pode acontecer o processo da mentira.” Ajuda-o a experiência das horas que passou em tribunais “a estudar padrões de comportamentos”.
Por exemplo, todos os movimentos das mãos “são importantíssimos porque quando estamos sob nível de stress temos tendência a mexer”. Que dizer de uma pessoa que normalmente fala com as mãos e que as retrai quando lhe fazem uma pergunta? Alguma coisa lhe causou desconforto. Porque é que se vira na direcção do juiz e “presta contacto frontal”? “Porque está à vontade”, analisa. “Tudo isto é informação relevante.”
Com licenciatura em Gestão, pela Universidade Lusíada, Rui Mergulhão Mendes tem formação na área da expressão facial, linguagem corporal, micro-expressões e neurolinguística feitas no Instituto Paul Eckman, de Manchester, e no Body Language Institute, em Washington. Em Portugal fez uma pós-graduação em Ciências Forenses, Profiling e Comportamento Desviante (no Instituto CRIAP). Aprendeu formas de “inibir alguém do outro lado”, a ler os sinais que as pessoas emitem, a "aferir estratégias na condução do interrogatório que vão além” do que a pessoa do outro lado quer comunicar.
“Raramente” se senta nos tribunais “gente inocente no processo”, afirma: “As pessoas têm tendência para um lado ou para o outro, nem que seja do ponto de vista inconsciente, e vinculam-se. Se começamos a perceber que aquele testemunho não vai de encontro àquilo que esperamos, podemos abdicar dele e não fazer mais perguntas. Ou se notamos [noutra testemunha] que há desconforto quando se toca num tema podemos também dar indicação” ao advogado. “Mesmo o juiz, com o corpo, vai-nos dando indicações de quais são os seus lados preferenciais", inclinando o corpo de forma diferente consoante o interlocutor.
Nas salas de interrogatório a existência de um espelho seria de grande utilidade, preferencialmente colocado à esquerda ou à direita consoante quem está a ser interrogado tenha maior facilidade em comunicar de um lado ou do outro. "Porque ninguém gosta de se ver a mentir. O nosso cérebro não gosta de mentir, não está preparado para mentir. Por isso é que vai criar dissonâncias na parte da comunicação, porque oscilamos entre a verdade e a mentira, e essa dissonância corpo/voz torna-se evidente.”
Depois há um segundo problema, considera: “Manter a mentira não é fácil. Quando alguém mente e é confrontado não gosta.” 

Directo ao assunto

Já deu formação a forças de segurança, pessoal da área de justiça, políticos, chefias de empresas, público em geral. Analisou casos mediáticos. Para apanhar uma mentira o mais eficaz é ser directo e ir ao foco da questão. É aí que “o desconforto [de quem mente] começa a ser maior”. Depois vão-se fazendo mais perguntas. E das duas uma: “Ou a pessoa entrega a informação ou diz ‘não vou falar mais sobre o tema’”, explica. “Mas uma coisa é certa: ficou a perceber que o outro percebeu o desconforto.”
Indicadores que acendem alertas, por exemplo, são o recurso a termos como “isso”, “disso” e a “tudo o que é abstracto”. “Quando não falamos de coisas concretas é indício de que nos queremos afastar. Porque falamos no abstracto e o cérebro não tem que se relacionar com a questão, é como se não estivesse a mentir". No fundo, o corpo fala “de forma muito mais aberta” se nos referimos a uma coisa concreta, por isso “evitamos fazê-lo” quando estamos a mentir. 
Se a desconfiança estiver criada, recorrem-se a outras técnicas para validar a suspeita. Mesmo com alguém que acredita na sua própria mentira, Rui Mendes diz que é possível levá-la a expor-se, fazendo perguntas sobre detalhes em que não terá pensado e que “vão causando o desconforto”. Isso “gera incongruências e as pessoas vão-se revelando à medida que se faz o interrogatório”. 
Onde é que ficam os seus preconceitos de alguém que está no papel dele? Como é que garante que a leitura que faz não está condicionada por ideias pré-concebidas? “O que se torna mais difícil é sairmos dos nossos sapatos e pormo-nos na pele de uma pessoa completamente isenta. Quando estou a analisar o comportamento de alguém, não tenho que pensar no que eu poderia ter feito, tenho que me abstrair disso. Depois procuro sempre validar a minha percepção.” Em tribunal, por exemplo, a questão é saber qual a isenção de um juiz que já condenou “não sei quantas pessoas com um mesmo tipo de face” quando aparece alguém com esse mesmo tipo de face e não é criminoso?
E que dizer de ensinar pessoas a mentir melhor? É possível? Diz que se recusa a instruir testemunhas, por exemplo, a fazê-lo. “Até porque eu as poderia preparar para retrair comportamentos, mas aí a autenticidade ainda fica mais plástica (e o corpo denunciá-las-ia)”.

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