3.09.2015 Szeged II
GPS: 46.240040, 20.142960
- Onde é que posso deitar fora esta beata? - pergunta-nos, cuidadoso, um dos refugiados, deixando-nos meio boqueabertos.
- Não sei, também não sou de cá - respondo-lhe.
- Vou deitá-la ali, naquele caixote do lixo.
- Eu acabei de deitar uma beata ao chão - constata um dos habitantes de Szeged que está ali connosco, na praça da estação de comboios onde cerca de 60 pessoas, incluindo algumas crianças, foram deixadas há pouco pela polícia e onde ficarão à espera do primeiro comboio da madrugada com destino a Budapeste, às 4 horas e 36 minutos, daqui a cerca de 7 horas. Beata no lixo, ele regressa, de fôlego cheio. E fala, fala tanto que nem sequer é preciso fazer-lhe qualquer pergunta. É quase um monólogo:
- Querem que eu vos conte a minha história? Saí de Damasco há um mês, no início de Junho. Passei várioscheckpoints e fui de carro até Beirute. Apanhei o avião para a Turquia. Depois o barco para a Grécia. Passei por Atenas, Salónica, Polikastro e Evzonoi. Atravessámos a pé a fronteira com a Macedónia. Na Macedónia andámos de bicicleta, a pé e de comboio. Na Sérvia também andámos a pé e de comboio, e ainda de carro. E depois outra vez a pé até à polícia húngara nos apanhar. Viajámos de todas as maneiras possíveis e imaginárias até aqui.
Da Turquia para a Grécia passámos de barco de uma praia perto de Izmir para a ilha de Chios. Eu paguei 900 dólares mas outros refugiados que chegaram mais tarde pagaram até 1500 dólares. Tivemos bastante medo. Levaram-nos muito tarde durante a noite. Disseram-nos para estarmos completamente calados, que as crianças não podiam chorar, que nem sequer podíamos acender um cigarro. Já na praia, vestimos todos os coletes salva-vidas e entrámos num daqueles barcos insufláveis de borracha que era, no máximo, para 30 pessoas, estava lá escrito! Éramos 46 adultos e 4 crianças. Quando estávamos todos, perguntámos aos dealers: "qual de vocês vem connosco a guiar o barco?". E eles disseram que nós é que tínhamos de conduzir o barco. Nenhum de nós sabia conduzir. Deram-nos um velho telemóvel e, do alto de uma colina de onde nos avistavam, iam-nos dizendo pelo telefone, "esquerda, direita". Mais de uma hora depois chegámos à praia em Chios. Foi um milagre, festejámos muito, estávamos na Europa! Querem ver o vídeo? Está aqui no smartphone, vejam...
(mostra-nos o final daquele diário de bordo visual, lusco-fusco da alba, o barco a chegar a uma praia da Europa. E duas fotos: um panorama do areal inundado por dezenas ou mesmo centenas de salva-vidas de outros migrantes que ali desembarcaram antes; uma selfie, ele com um enorme sorriso e o barco semidestruído em fundo - a embarcação de borracha meteu água na parte final da travessia, quase foi ao fundo nas últimas milhas. Aqui em Szeged, na praça da estação, passa uma bicicleta, depois um dos últimos eléctricos da noite. Número 2, destino: Európa liget, Parque Europa)
- Mas o pior ainda estava para vir, na Macedónia, por causa da máfia e dos dealers. Acho que eles têm um acordo com a polícia. Fomos assaltados nas montanhas. Mas houve uma história engraçada. A certa altura, o nosso grupo, cerca de 10 pessoas, teve de comprar bicicletas para continuar. Todos comprámos, a 125 euros cada. Depois, quando estávamos prontos para partir, um dos nossos colegas disse: "mas eu não sei andar de bicicleta!". Sabem o que aconteceu? Durante meia hora, nós ensinámo-lo a andar. Ele aprendeu depressa e depois continuámos todos a aventura. Ele aprendeu a andar de bicicleta em meia hora!
Até que ontem à noite, chegámos à Hungria. Pagámos 500 euros aos dealers na Sérvia para nos fazerem passar a fronteira e se chegarmos a Viena temos de pagar mais 1000 euros. É tudo muito caro, mas vale a pena. Vocês sabem quanto é que eu já gastei até aqui? Quase 3 mil euros. Mas houve um colega sírio que conseguiu comprar um passaporte falso na Grécia, um grego que era parecido com ele. Sabem quanto é que lhe custou? 9000 euros. Uma passagem de avião directa para a Alemanha! Foi caro, mas assim foi muito mais fácil. Eu teria feito o mesmo...
(o telefone toca. É um amigo, de Damasco. Ele não atende mas pede para aproveitar o momento para tentar ligar para casa, talvez haja electricidade. Só consegue falar com a família quando ele apanha uma rede wifi, aqui na Europa, e quando eles têm luz, lá em Damasco, coincidência por vezes rara. Não fala com a mãe há três dias, ela ainda não conhece a história da última fronteira; e ainda não será desta)
- Ontem à noite passámos a fronteira a pé. Depois havia um carro à nossa espera. Estávamos a andar de carro há pouco tempo quando veio um homem, vestido normalmente, e apontou uma pistola à cabeça do nosso condutor, que era sérvio. Gritou muito com ele. Tivemos todos muito medo. Depois veio a polícia e levaram-nos para a esquadra. Chegámos lá às 11 da noite e só nos deram algo para comer à 1 da manhã. Pão, uma pequena barra de chocolate e um rebuçado. A seguir, fizemos a impressão digital de todos os dedos. Na polícia eu tive realmente muito medo. Houve um polícia que bateu na cabeça de um outro refugiado sírio e que gritava para ele: "vou pôr-te na prisão!". E o meu colega sírio gritava para o polícia húngaro: "e eu vou dizer às Nações Unidas tudo o que me estás a fazer!". Nós estamos a fugir da guerra e da violência, não queremos enfrentar violência outra vez. Eles não nos trataram com humanidade. Eu sou apenas um ser humano.
(oferece-nos cigarros, antes de acender mais um. Aquele maço custou-lhe 5 euros e foi-lhe vendido por um polícia, na esquadra. Cá fora, o mesmo maço custa 3 euros. Junto aos cigarros, na bolsa que aperta à volta da cintura, guarda um charuto que prometeu a si mesmo que só iria fumar quando chegasse ao destino final da viagem. Eram dois charutos, fumou o primeiro à saída de Damasco)
- Eu não podia continuar na Síria. Um primo meu foi raptado num checkpoint da polícia. Não há futuro. Há alguns anos, quando era mais novo [agora estará na casa dos 30 anos] eu tinha uma fábrica de toalhas em Duma, nos arredores de Damasco. Apaixonei-me, casei-me, enganei-me. Veio a guerra e destruiu-me a fábrica. Mas ainda consegui fazer a universidade, a partir de 2011. Tirei gestão de empresas. Agora, eu trabalhava como gestor de um banco. Eu não queria deixar a Síria, a minhã mãe está muito triste, eu sou o único filho homem. Agora ela e o meu pai ficaram sozinhos com as minhas irmãs. Mas tem de ser. Eu não posso começar um novo negócio no meio de uma guerra, num país que está sob embargo. Quero construir um novo futuro, na Europa. Daqui a 4 ou 5 anos quero ter nacionalidade sueca.
(faz uma pausa, nova tentativa para falar com a mãe, outra vez em vão.)
- Vocês gostam de ler? Então têm de ler um dos últimos livros que li antes de sair da Síria. Li-o numa noite, de rajada. Não conseguia parar. O autor chama-se Moustafa Khalifé e o título do livro é Al-Qawqa, que significa... Como é que se diz as costas da tartaruga em inglês?
- Shell (carapaça).
- Isso. É incrível! É a história de um homem que estudou cinema em Paris e que depois, quando voltou à Síria, foi preso pela polícia política e foi mandado para uma prisão em Palmira. Esteve preso doze anos. É uma história verdadeira, esse homem agora vive no exílio. [La Coquille, editado pela Actes Sud, é o diário romanceado da experiência de Khalifé, preso entre 1982 e 1994 pelo regime de Hafez al-Assad]. Acreditem, vocês têm mesmo de ler este livro.
(volta a interromper para ir deitar mais uma beata no caixote do lixo)
- Sabem uma coisa? Eu já emagreci bastante durante todo este mês. Olhem para o meu cinto, já saltei dois buracos. Às vezes eu não como muito porque tenho receio de não ter depois uma casa de banho decente onde possa ir. Prefiro comer Snickers e beber Red Bull para ter mais energia. Eh pá, vocês querem ver como eu era mais gordo? Tenho aqui fotos no telemóvel, quando eu ainda estava em Damasco! Olhem esta aqui, no casamento de um amigo, nós todos bem vestidos, de fato e gravata. Porra, estou mesmo mais magro, não estou? Esta viagem é como fazer dieta e desporto ao mesmo tempo! [muitos risos] Temos de manter a ironia e o optimismo. I have a dream. I will make it!
- Como te chamas?
- Mohammed.
- Eu sou o Balázs.
Neste verão cortado a arame farpado, Balázs passa de certeza mais horas na estação ferroviária de Szeged do que na sua própria casa. Jornalista free lancer, 35 anos, colaborador da rádio Mi e ainda activista do Migszol, um movimento cívico húngaro de solidariedade com os migrantes que é uma das outras faces desta Hungria, Balázs Szalai não ouviu toda a história de Mohammed porque, naquela noite do fim de Junho, ele não parava quieto um minuto, multiplicando-se por todo o lado.
Era Balázs que organizava, com outros activistas locais, a recolha de comida para as cerca de 60 pessoas, incluindo uma dúzia de crianças, que ali contavam as horas à espera do próximo comboio.
Era Balázs que, sempre com um sorriso, tentava explicar o que sabia àqueles homens e mulheres, todos identificados com uma pulseira verde e a quem a polícia tinha dado uma carta, em húngaro, que dizia que eles tinham 3 dias para se apresentarem em Debrecen, o maior campo de refugiados e requerentes de asilo do país, um campo que já estava a rebentar pelas costuras naquela altura. Alguns deles tinham igualmente recebido uma folha A4, uma fotocópia a preto e branco entregue pelas autoridades, com um mapa da Hungria onde estavam marcadas Szeged, Debrecen e Budapeste. No entanto, quase ninguém respeita a indicação oficial para rumar para o referido campo de refugiados; o próximo futuro é a capital, depois Viena, Danúbio acima.
A noite avançava, o mercúrio encolhia para qualquer coisa entre os 10 e os 15 graus, e era ao Balázs que a chefe dos serviços ferroviários dizia que, apesar do estranho arrefecimento nocturno, era urgente fechar a estação e meter "aquela gente toda na rua". Ele rebatia, indagando a ferroviária, "e se isto fosse um terramoto ou outra situação de emergência?". Ao que ela respondia, seca e taxativa: "isto não é uma emergência".
E quando chegaram dois polícias para alegadamente cumprirem a ordem de encerramento, lá estava ele a levantar o seu smartphone e a filmar tudo. Aquele telefone e os olhos de Balázs formavam como que uma barreira contra mais actos desumanos, várias vezes praticados sob a forma de excesso de zelo. Era ele o único muro que defendia aquelas pessoas. E naquela noite, ao contrário de tantas outras, a estação não fechou e aquelas crianças não dormiram ao relento.
No átrio, o relógio já virou a meia-noite. Há alguns minutos que Fatma e Ahmed vão dormindo no colo dos pais, família fugida da região de Qamishli, no Curdistão sírio, tão perto de uma das tantas linhas da frente do ISIS. Durante toda a noite, Fatma, 2 anos, foi a única criança que ouvimos chorar, e por apenas alguns segundos. Há quem durma ali pelo chão, embrulhado a um cobertor ou dentro de um saco de cama com a pele suja e gasta pela viagem; há quem adormeça sentado, encostado a um dos pilares que segura o placard das partidas onde se confirma que o primeiro comboio da manhã é aquele que todos esperam, o tal das 4h36m para Budapeste; outros sentam-se nas escadas, conversam, distraem-se na net ou com um jogo no telemóvel. De vez em quando, alguém consegue uma ligação para a família, do outro lado da guerra, e subitamente ouve-se uma voz radiante, mas de volume contido, uma tímida explosão de alegria, baixinho, Fatma e Ahmed dormem mesmo ali ao lado.
Lá em cima, no primeiro andar da estação, a espera repete-se. Sem qualquer contexto, parece apenas um grupo de viajantes que perdeu o último comboio da noite e vai apanhar o primeiro da manhã. Como há contexto, intriga-nos aquela senhora sozinha com a sua bengala. Vai dormitando naquele banco, rondará os 70 anos de idade: como terá ela conseguido chegar até aqui? "Os velhos também querem viver".
Três e meia da manhã. Da mão cheia de activistas que começou a noite de solidariedade, restava um. Era Balázs: um ser humano segurando um panelão com quase dez litros de chá para outros sessenta seres humanos que a esta hora gostavam de estar a tomar chá em suas casas, se é que elas ainda existem, nesses lugares onde o chá é o sangue da casa. É quase impossível que o chá de Szeged consiga roçar a qualidade do chá de Damasco, Cabul, Sulaymanyiah ou Qamishli, mas terá concerteza um sabor prolongado na memória destes viajantes com destino ao exílio. Enchemos os copos de plástico enquanto Mohammed e alguns dos seus companheiros vão fazendo a distribuição pelo grupo. Ali ao canto, ainda há quem não queira deixar os braços de Morfeo. Mohammed dirige-se então ao carrancudo funcionário da estação que tinha sido o primeiro a tentar cumprir, no início da noite, a ordem de expulsão e encerramento, e oferece-lhe igualmente um copo de chá. Também ele é "apenas um ser humano". Recusa, no mesmo tom frio, com que minutos depois nos informaria que era preciso "metê-los todos no último vagão do comboio".
"Parte dentro de momentos da linha número 1 o comboio com destino a Budapeste".
Já servimos o último copo de chá. Sente-se a azáfama da enésima partida. As sessenta pessoas com quem passámos toda a noite acabam de se acomodar nos vários compartimentos da última carruagem [há espaço para todos, ainda não são aquelas imagens dramáticas que mais tarde chegariam da Macedónia de homens, mulheres e crianças, afunilando-se para entrar em carruagens que mais pareciam caixas onde não cabiam todos os fósforos].
Em cima da hora, chega uma jovem húngara arrastando o seu trolley pela plataforma, mala bem maior do que qualquer uma das mochilas onde aqueles refugiados carregam a vida às costas. Ela prepara-se para entrar na cauda do comboio que está de saída; o seu acompanhante está a ajudá-la a subir a mala, até que se ouve a voz autoritária do incontornável funcionário da estação: "aí não, para a próxima carruagem!". Ela caminha mais trinta metros e embarca. Na viagem das 4 horas e 36 minutos para Budapeste, parece que é o ferroviário que pode decidir, e não cada passageiro, quem vai encontrar o próximo irmão viajante - o outro. Migrantes e refugiados na última carruagem; húngaros, europeus, nas outras três, as da frente.
Mohammed acena-me do seu lugar, enquanto alguns dos seus companheiros estendem os braços pelas janelas dos compartimentos para um aperto de mão final - a mim, à Móni Bense, professora e tradutora que me tem acompanhado nesta viagem pelas margens do novo muro e, claro, ao Balázs Szalai que fumava o último cigarro da noite, o primeiro da manhã.
Ouve-se o apito de partida, a ondulação dos braços acelera-se, os sorrisos multiplicam-se. "Goodbye!", "thank you!", "as-salamu alaykum!"...
Cabiz baixo, o funcionário da estação já virou as costas ao comboio em marcha, mas na plataforma, o olhar de Balázs ainda se prolonga pela linha, seguindo aqueles braços que vão agitando o horizonte. A viagem continua, para quem vai e para quem fica. Mohammed e Balázs prometeram ficar amigos no Facebook. Não será apenas another friend in the wall, como outros com quem Balász há de tomar chá nos próximos anos deste êxodo.
PRÓXIMO EPISÓDIO DA VIAGEM "NÓS E O NOVO MURO": "Não tenho pai, não tenho mãe. Pum pum! Taliban"
"Nós e o novo muro" é um projecto desenvolvido originalmente para o Osservatorio Balcani e Caucaso, publicado em exclusivo, em Portugal, pela VISÃO.