Do: Estadão
Um senador foi pego solicitando dois milhões de reais a um conhecido empresário. Como provas, há gravações de áudio e vídeo, bem como a apreensão da mala com os valores solicitados. Se isso tivesse acontecido em um lugar em que os políticos têm um mínimo de vergonha, seria de se esperar que o próprio congressista pedisse para sair.
Em 2016, por um motivo menor, uma mera citação do primeiro-ministro da Islândia Sigmundur David, no Panama Pappers, foi o suficiente para acarretar a sua renúncia. Aqui, mesmo diante da enormidade do escândalo, Aécio Neves, o sujeito desse escândalo, recusou-se em renunciar ao cargo.
Diante disso, não restaria ao próprio Senado outra atitude que não fosse cassar o seu mandato por quebra de decoro parlamentar. Contudo, também não foi o que ocorreu. Pelo contrário, segundo o Conselho de Ética do Senado, os fatos não eram graves e não havia um lastro probatório mínimo que legitimasse o início do processo de cassação.
Diante desses contrassensos, coube à 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tentar colocar um pouco de ordem na questão, afastando o senador do mandato. Afinal, em qualquer empresa privada ou pública do mundo em que um empregado é pego desviando R$ 2 milhões a providência mínima seria o afastamento imediato das funções.
E a decisão do STF não parecia juridicamente controversa, pois o próprio Supremo, um ano antes, por unanimidade, havia decidido afastar o então deputado Eduardo Cunha, já desgastado politicamente por inúmeras denúncias de corrupção. Na época, a decisão do STF foi amparada pelo parecer a Advocacia Geral da União (AGU), assinado pela atual ministra Grace Mendonça, que dizia que a medida era legal. No mesmo sentido, havia pareceres da consultoria jurídica do Senado e da Câmara dos Deputados.
Contudo, alguns coronéis do Senado entenderam que era a hora de dar um basta. Como sempre estiveram acima da lei, era necessário lembrar o Supremo dos seus “limites”. Era só bater o pé e dizer “não cumpro”, como já havia ocorrido com a decisão de afastamento do então presidente do Senado, Renan Calheiros. Ou, como discursou a presidente do PT, senadora e investigada Gleisi Hoffman, era necessário “chamar o STF à ordem
Diante do ultimato dos senadores entrou em cena, para tentar acalmá-los, a presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia, que, apesar de magistrada, acreditou-se política. A solução foi simplesmente o STF “desdecidir” o que já havia decidido.
De repente, tudo e nada mudou.
O STF, Senado, Câmara e AGU continuaram os mesmos. Mas havia necessidade de adequar o entendimento conforme a qualidade do réu, que não era mais o desgastado Eduardo Cunha, mas sim o ainda poderoso articulador do PSDB, Aécio Neves.
Para isso, bastava inventar qualquer fundamento jurídico, ainda que contrário aos que os próprios subscritores já haviam manifestado. Afinal, o papel aceita tudo.
Assim, da noite para o dia, a AGU mudou o seu entendimento e a mesma Grace Mendonça assinou outro parecer dizendo: “que a concessão de medida cautelar prevista no art. 319 do Códio de Processo Penal aos parlamentares não encontra amparo na Constituição”. A consultoria do Senado e da Câmara também passaram a acreditar
que o afastamento do parlamentar por decisão judicial era inconstitucional. Finalmente, o STF reviu a decisão do próprio STF. Assim, a maioria dos ministros da Corte ao tentar fazer política, colocou ainda mais em crise a legitimidade do STF perante a sociedade, que não mais distingue o Supremo dos malfeitos que afetam os outros poderes. E o mais deprimente foi a titubeante argumentação jurídica dos ministros para legitimar o ilegítimo.
É lamentável que nossas instituições públicas tenham chegado a esse ponto. O Supremo Tribunal Federal
apoiou a República dos Coronéis. A corrupção avalizada pelos casuísmos decisórios moldados conforme o dote político do réu está acabando com a credibilidade do Poder Judiciário. Quando a Suprema Corte aceita barganhar com a corrupção institucionalizada do Poder Legislativo é hora de repensar nossos caminhos. Do contrário, em breve, o cidadão comum se espelhará nos seus coronéis para deixar de cumprir as decisões judiciais contrárias a seus interesses, o que levará o sistema ao colapso.
(*) Procurador da República e procurador regional da República, integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba