Justiça
O doutor milhão
Juiz acusado de desaparecer com 30 milhões
de dólares de uma herança apronta mais uma
Alexandre Oltramari
O desembargador Asdrúbal Cruxên, vice-presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, é a figura mais controvertida que surgiu na CPI do Judiciário, ao lado do juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lau-Lau, envolvido no desvio de 169 milhões de reais da obra do TRT em São Paulo. O nome de Cruxên costuma sempre aparecer associado a cifras espantosas. Na semana passada, essa sensação se reforçou quando ele se encontrou com seus colegas e, em seguida, apresentou uma conta milionária ao contribuinte brasileiro. Os desembargadores do TJ, liderados por Cruxên, decidiram triplicar os salários dos juízes no Distrito Federal, o que custará 30 milhões de reais aos cofres públicos. O aumento monumental que os juízes de Brasília concederam a si próprios pode parecer apenas mais um escândalo isolado na Justiça brasileira. Não é bem assim. Sobre Cruxên, para citar outro caso, também pesa a acusação de ter dilapidado 30 milhões de dólares da herança de um menino antes de virar desembargador em Brasília.
No relatório final da CPI, o desembargador Cruxên, assim como Lau-Lau, saiu-se muito mal. Ele foi acusado de dissipar a herança do garoto órfão Luiz Gustavo Nominato, 14 anos. Em 1987, quando o então juiz da Vara de Órfãos e Sucessões de Brasília, Asdrúbal Cruxên, começou a administrar o espólio do menino, a fortuna estava avaliada em 30 milhões de dólares. Ao deixar o caso, em 1992, a herança havia virado pó e o garoto devia 7 milhões de reais na praça. Ou seja, durante os cinco anos em que o doutor Cruxên gerenciou a herança, o menino Luiz Gustavo passou de milionário a devedor. Seu pai, Washington Nominato, que morreu de infarto em 1987, aos 33 anos, deixou para o filho um império formado por empresas de transporte, consórcio de veículos, seguro, saúde e turismo. A mãe do garoto, Miramar da Silveira Rocha, que não era casada nem vivia com o empresário, não tinha direito à herança. Luiz Gustavo, assim, tornou-se dono das empresas do pai. Mas hoje o menino não tem dinheiro para comprar um picolé. E está cercado por credores. O que o doutor Cruxên, responsável pelo inventário, diz de tudo isso?
Nada. Ele não gosta de dar explicações, mas processa todos os jornalistas que publicam seu envolvimento com o sumiço da herança do garoto Nominato. Na quinta-feira passada, procurado por VEJA, Cruxên mandou dizer que estava muito ocupado para dar entrevista. Já o relatório de 269 páginas produzido pela CPI é revelador. A CPI encontrou indícios muito fortes de que Cruxên e os administradores da herança nomeados por ele se associaram para torrar o patrimônio de Luiz Gustavo. Eles venderam a parte boa do império empresarial, os chamados ativos, e deixaram a parte ruim, o passivo, para o herdeiro. Segundo técnicos da CPI, os administradores do espólio criaram dívidas inexistentes numa empresa para justificar a venda de outra e fazer o dinheiro sumir. O problema dessa malandragem é que, quando o inventário foi aberto, nenhum credor se habilitou para receber eventuais dívidas do pai do menino. Daí a conclusão de que a dívida hoje cobrada de Luiz Gustavo foi criada pelos próprios administradores da herança.
Dólares na conta – A apuração da CPI aponta indícios de que o juiz Cruxên cometeu, pelo menos, três crimes: abuso de poder, prevaricação e improbidade administrativa. Administradores, inventariante e contadores nomeados por Cruxên são acusados de estelionato, peculato e formação de quadrilha. Com a quebra de sigilo bancário, que curiosamente não atingiu Cruxên, a CPI descobriu uma verdadeira fortuna nas contas dos envolvidos, todos nomeados pelo juiz. Nas do inventariante Welington Kuhlmann foram encontrados 2,1 milhões de dólares em depósitos entre 1987 e 1989. Flávio Talamonte, um dos administradores do espólio, recebeu 1,9 milhão de dólares no mesmo período. O relatório da CPI foi enviado ao Ministério Público, que decidirá se denuncia ou não o juiz e sua turma à Justiça.
Gaúcho, casado e pai de três filhos, Cruxên é um juiz para lá de polêmico. Em 1985 foi flagrado com a família numa praia da Bahia usando carro oficial. Uma das filhas, Juliana, trabalhou com o senador Luiz Estevão quando ele era deputado distrital, entre 1996 e 1997, enquanto Cruxên julgava ações do amigo no Tribunal de Justiça. No ano passado, o juiz mandou paralisar catorze inquéritos que tramitavam na polícia para investigar o grupo OK, que pertence a Estevão. Na última semana, ao liderar os desembargadores na cruzada para triplicar o próprio salário, Cruxên e seus colegas do TJ usaram um estratagema para alterar a base de cálculo que define os rendimentos de um magistrado, o que torna a remuneração de alguns desembargadores maior que a de um ministro do Supremo Tribunal Federal, STF. O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, considerou o aumento irregular e inconstitucional. Caberá ao STF decidir a pendenga salarial e, se Cruxên for denunciado pelo Ministério Público, julgar seu envolvimento com o sumiço da herança do pobre menino rico.
Desembargador denuncia colegas
Uma denúncia feita na segunda-feira passada por um desembargador baiano pode incluir membros da mais alta corte de Justiça da Bahia no rol de investigados pela CPI do Narcotráfico. Durante uma sessão do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargador Lourival Ferreira acusou dois colegas e um deputado estadual de terem feito pressão em favor do assaltante de cargas Vander Dornelles. Segundo Ferreira, o desembargador Walter Brandão o procurou pessoalmente no final de setembro para pedir a aprovação de um habeas-corpus para Dornelles. Nos dias seguintes, o também desembargador Mário Albiani e o líder do governo baiano na Assembléia Legislativa, Pedro Alcântara (PFL), telefonaram para reforçar o pedido. "Recebi inúmeros telefonemas. Se isso não é pressão, o que é então?", protestou Ferreira. Intrigados sobre que motivos estariam levando gente tão graúda a interceder por um acusado de roubo de cargas, os deputados da CPI do Narcotráfico vão embarcar para Salvador nas próximas semanas para ouvir o desembargador. Uma pista pode estar na carta enviada aos deputados da CPI pelo ex-policial militar rodoviário de São Paulo Luís Antônio Ferraz, atualmente cumprindo pena por roubo de carga. Nela, Ferraz afirma que Dornelles pagou 100.000 reais a autoridades baianas para que o desembargador Ferreira fosse pressionado a soltá-lo.
Ferreira deu os primeiros sinais de que tinha uma revelação bombástica a fazer há um mês. Em despacho publicado em 5 de novembro, se disse sem condições de julgar o pedido de habeas-corpus de Dornelles, pois estava sendo pressionado. "Pelo menos dois desembargadores e um deputado estadual nos telefonaram. O senhor Vander Dornelles, uma de duas, ou tem muito poder aquisitivo e influência ou tem muita sorte", escreveu, na época, sem citar o nome dos colegas. Quando os nomes vieram à tona, na sessão da semana passada, os três acusados reagiram de forma distinta. O deputado primeiro disse que ligou para Ferreira a pedido do advogado de Dornelles. Depois afirmou que era tudo mentira, que não falou com ninguém e que iria tomar providências na Justiça. Walter Brandão contou que teve apenas conversas corriqueiras sobre o caso. Já Mário Albiani partiu para o ataque. "Ferreira já pediu muito para mim. Um pedido terrível ao qual não pude atender." Enquanto isso, o pivô da crise, Vander Dornelles, permanece detido no Presídio de Feira de Santana desde fevereiro, quando foi flagrado com quatro carretas de cigarros roubados, no valor de 7 milhões de reais.