SUS joga fora R$ 16 milhões em medicamentos de alto custo
Com a descoberta da doença, ele soube que
precisaria tomar, a cada dois meses, cinco doses do medicamento
Remicade. Cada ampola do remédio custa até R$ 5,1 mil. Logo, aos 63
anos, Moreira gastaria R$ 25,5 mil a cada 60 dias para manter o
tratamento, um custo considerado impraticável por ele. “Se eu tivesse
que comprar, teria morrido há muito tempo”, conta.
A vida de Moreira e de muitos outros brasileiros
têm sido mantida graças a um programa do Ministério da Saúde chamado
Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), que
distribui medicamentos de alto custo – alguns deles ainda mais caros que
os de Moreira.
O Sistema Único de Saúde (SUS) gasta cerca de R$
7,1 bilhões por ano para comprar esses remédios. Mas pelo menos uma
parte desse valor tem ido direto para o lixo.
Um relatório inédito da Controladoria-Geral da
União (CGU), concluído em abril, mostra que 11 Estados e o Distrito
Federal jogaram remédios fora em 2014 e 2015. As causas do desperdício,
que chega a R$ 16 milhões, foram validade vencida e armazenagem
incorreta.
Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o
valor perdido seria suficiente para custear o tratamento de Moreira por
104 anos.
Os Estados em que houve descarte foram Amapá,
Bahia, Ceará, Distrito Federal, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Norte e Santa Catarina.
Perdas em série
Uma das situações mais graves identificadas
pelos auditores da CGU aconteceu na Bahia: entre 2013 e 2014, cerca de
200 mil comprimidos de Olanzapina (usado no tratamento da esquizofrenia)
tiveram de ser jogados fora. Por um erro de planejamento, os remédios
foram comprados e acabaram vencendo antes que os pacientes do Estado
pudessem tomá-lo. No total, foram R$ 3,5 milhões descartados em
comprimidos vencidos.
No caso da Bahia, um simples controle do estoque
teria evitado o problema. Como a demanda por determinados remédios
varia, as farmácias do CEAF têm o direito de devolver medicamentos
armazenados por elas até 15 dias antes da data de vencimento dos lotes.
Feito o pedido, o material é trocado sem qualquer custo para o
contribuinte.
No entanto, a Secretaria de Saúde da Bahia
permitiu que os remédios estragassem em seus galpões. Questionada pela
CGU sobre o problema, a pasta não respondeu.
Situação semelhante aconteceu no Rio de Janeiro.
Ali, perderam-se 1.104 frascos de um medicamento chamado Boceprevir 200
mg, usado para o tratamento da Hepatite C – cada unidade custa ao
governo R$ 6.102,98, segundo a tabela de aquisição de medicamentos do
SUS.
Neste caso, a Secretaria Estadual de Saúde disse
à CGU que os medicamentos já chegaram próximos do prazo de vencimento,
por serem importados, e que a prática é fazer um pedido de reposição
quando isso ocorre – mas não esclareceu se os frascos de Boceprevir
foram trocados.
No total, a auditoria da CGU encontrou perdas
que chegam a R$ 16,07 milhões. A estimativa é da reportagem da BBC
Brasil a partir dos dados do relatório aos quais a reportagem teve
acesso, já que a CGU não consolidou o valor das perdas financeiras.
As perdas alarmam, mas não são o único problema
do programa. Em 14 Estados, o controle de estoque simplesmente não
correspondia aos remédios que realmente estavam armazenados. Ou seja:
produtos foram retirados ou entraram nos estoques sem que tenham sido
registrados oficialmente pelos responsáveis – o que deixa uma porta
aberta para mau uso de dinheiro ou produto público.
Há ainda casos de compras de medicamentos em que os gestores públicos descumpriram a lei e trouxeram prejuízo ao erário.
Em Alagoas, a Secretaria de Saúde deixou de usar
a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
na compra de remédios em 2014. Ao pagar o imposto de forma indevida,
houve prejuízo de R$ 156 mil. Aos auditores da CGU, o então governo
estadual reconheceu a ocorrência do problema e disse que tomaria
previdências para corrigi-lo.
Em Brasília, várias doses de imunoglobulina
humana e outros medicamentos acabaram desperdiçados por terem sido
guardados de forma incorreta – não foram mantidos refrigerados na
temperatura certa. Ao todo, problemas de armazenagem foram encontrados
em nove Estados. Os responsáveis pela Secretaria de Saúde do Distrito
Federal à época (2014) não responderam aos questionamentos da CGU.
No Amapá, os auditores encontraram embalagens de
suco, frutas e garrafas d’água nos mesmos refrigeradores usados para
guardar os remédios. Novamente, o então governo estadual não respondeu
às perguntas dos auditores.
“Chegamos ao ponto de alguns Estados não terem
sequer um planejamento para a compra desses medicamentos de alto custo.
Quem não tem um planejamento não consegue nem sequer ver os eventuais
problemas que podem estar acontecendo, como uma fraude ou o aumento na
demanda de uma doença específica”, diz Antônio Carlos Bezerra Leonel,
auditor da CGU e hoje secretário federal de Controle Interno.
Leonel, que participou do processo de auditoria,
diz ainda que a CGU está planejando uma nova rodada de auditorias para
verificar se os desvios foram corrigidos. E que o Ministério da Saúde
criou uma equipe responsável por acompanhar os casos mais graves.
“O SUS é federativo, então o ministério não pode
impor algo aos Estados (que são autônomos na gestão), mas acho que a
auditoria criou condições para que haja uma troca de informações mais
efetiva (entre a pasta e os Estados)”, afirma.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a
responsabilidade pelo armazenamento e controle dos prazos de validade é
compartilhada entre a pasta e as secretarias de saúde dos Estados. A
compra de medicamentos para o SUS é divida em três grupos (básico,
estratégico e especializado). Os R$ 7,1 bilhões gastos em 2016 foram
para o componente especializado, que é o dos medicamentos de alto custo.
O ministério não comentou os casos de perda de medicamentos.
Gestão arcaica e fraudulenta
O bancário aposentado Francisco Single, de 57
anos, tem uma doença pulmonar crônica. Desde que foi diagnosticado, há
um ano e meio, ele se trata com dois medicamentos que lhe custariam
cerca de R$ 900 por mês – um valor alto para um orçamento de classe
média.
Single diz que é comum encontrar no posto de São
Paulo, onde mora, pessoas vindas de outras cidades ou mesmo Estados em
busca de seus tratamentos. Elas recorrem à capital paulista por não
encontrarem os medicamentos nas farmácias próximas de suas casas, diz
ele.
O programa é um dos mais caros do Ministério da
Saúde. Até agora, foram gastos R$ 3,3 bilhões neste ano. Em 2016, o
custo foi de R$ 7,1 bilhões, de acordo com o Ministério da Saúde. O
valor está crescendo: em 2015 foram R$ 5,8 bilhões, e em 2014, 4,8
bilhões, segundo a CGU.
“Havia um descasamento entre o que era investido
(pelo Ministério da Saúde) e o que a sociedade recebia em retorno”, diz
o auditor Carlos Leonel. “Neste contexto de ajuste fiscal é preciso
melhorar a gestão, pois provavelmente haverá dificuldades (para suprir a
demanda dos pacientes)”, diz ele.
O auditor diz ainda que às vezes são
identificados problemas que vão além da má gestão e do descaso. “São
frequentes operações de repressão, em conjunto com a Polícia Federal e o
Ministério Público”, lembra Leonel.
Uma desorganização no estoque ou uma falha de gestão pode ser usada para esconder um esquema fraudulento, por exemplo.
O último exemplo de investigação de corrupção na
área da saúde vem de Alagoas: CGU e Polícia Federal deflagraram em oito
de agosto a operação Correlatos, contra fraudes em licitações da
Secretaria de Saúde do Estado. Dispensa de licitações e falta de
planejamento em compras de materiais ajudaram a criar as condições para
que um esquema milionário de corrupção.
Agentes públicos usavam brechas na lei para
dispensar a licitação e escolher os fornecedores de remédios. No total,
R$ 237 milhões foram gastos assim. Enquanto isso, faltaram insumos
básicos na saúde estadual, como seringas descartáveis.
Especialistas dizem que a solução dos casos de
má gestão ou mesmo de corrupção não solucionariam todos os problemas da
saúde pública brasileira: há também a falta de recursos. O Brasil
investe muito menos que outros países em que existem sistemas universais
de saúde, similares ao SUS.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS), enquanto no Brasil o gasto por pessoa era de cerca de US$ 1,3 mil
anuais em 2014, na França este valor era de US$ 4,5 mil, e de US$ 4,6
mil no Canadá. Em um cenário de escassez, é ainda mais dramático que os
recursos acabem desperdiçados.