A intolerância sempre existiu e, ao longo da história da civilização, encontrou os mais diferentes focos. Seja religioso, de gênero, de raça ou social, o preconceito moveu a humanidade em direção a seus maiores desastres, por isso nunca é demais reunir uma boa leva de pensadores para refletir sobre o tema. É um pouco com essa perspectiva, e com a certeza de que as diferenças são necessárias e enriquecedoras da experiência humana, que a Casa Libre e a Nuvem de Livros convidaram mais de 30 escritores, intelectuais, poetas e ativistas para uma série de debates sobre a intolerância durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece até amanhã na cidade histórica fluminense.
Dividido em mesas com temas que pensam a intolerância de perspectivas que vão da infância e da cultura afrodescendente até comida, arte, sustentabilidade e ditadura, o ciclo pretende mesclar diversos olhares para falar de diversidade, pluralidade e discriminação. “Cada mesa propõe uma abordagem diferente da intolerância, que é encarada de várias maneira”, avisa o curador, Luis Maffei.
Assim, o argentino Bruno Bimbi, que articulou o movimento pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina, vai dividir a mesa Ditaduras: da exceção à opressão, com o delegado Orlando Zaccone, cientista social especializado em exclusão, e Marcelo Godoy, autor de A casa da vovó, sobre os crimes praticados pela ditadura. Radicado no Rio de Janeiro e autor do livroCasamento igualitário, Bimbi acha perigosa a palavra tolerância quando se fala de discriminação. “Eu não gosto de usar o conceito de ‘tolerância’ nesse tipo de debates, porque a gente tolera aquilo que nos desagrada, que nos causa rejeição ou repugnância”, explica. O argentino ficou conhecido em seu país pela campanha pela aprovação da lei do casamento igualitário, mas também por ser um crítico contumaz do papa Francisco, que foi duro em relação aos homossexuais na época da aprovação da legislação. “Bom, na época do debate da lei de casamento igualitário, ele disse que o projeto de lei era uma manobra do Demônio para destruir a criação de Deus e convocou os cristãos a uma guerra ‘santa’ contra os direitos dos homossexuais. Eu acho que ele achou que se o casamento gay fosse aprovado pela primeira vez na América Latina no país onde ele era o chefe da igreja, ele perderia a chance de ser papa, que era o que ele queria”, garante Bimbi.
Consciência negra
Em Poesia e produção do pensamento, Maffei e poeta Zé Luis Rinaldi falam do papel dos versos na sociedade e Literatura e consciência negra é tema de bate-papo com a escritora mineira Conceição Evaristo, autora de romances sobre discriminação racial. Para Maffei, a contemporaneidade é multifacetada, mas duas de suas faces são muito claras: “Há o recrudescimento da intolerância em várias faces, com um crescimento preocupante da violência em nome da religião, mas, por outro lado, não se admite mais esse tipo de coisa como normal na dinâmica da sociedade”, Rinaldi aponta que o papel do escritor, quando se trata de intolerância, é pensá-la poeticamente e insistir na beleza. “Porque ela mata e é capaz de aniquilar a beleza e a riqueza humanas. Penso, entretanto, que não se trate apenas de combater`´ a intolerância, não basta apenas mantê-la sob o controle da tolerância. É necessário que o homem se disponha a um relacionamento positivo com a diferença”, diz.
Já o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Antonio Torres tem como missão falar da “fabulação do mundo na criação de imagens”, mas ele sabe que não será difícil aproximar esse tema da intolerância. A literatura reflete o mundo e Torres lembra do romance Enigmas da primavera, de João Almino, como uma leitura recente que trata da intolerância. No livro, um jovem brasileiro de origem muçulmana está a meio caminho da radicalização e do fundamentalismo religioso. O próprio Torres abordou a discriminação em Essa terra, no qual um personagem é vítima de violência homofóbica. O acadêmico observa com certo medo a onda de intolerância no Brasil. “O país vive uma onda horrível e de todo lado. É uma coisa que acho que é acirrada pela crise econômica, a crise econômica puxa coisas do arco-da-velha, sentimentos muito arcaicos. A gente assiste aqui a um conflito que a gente não sabe onde vai dar”, lamenta.
Dividido em mesas com temas que pensam a intolerância de perspectivas que vão da infância e da cultura afrodescendente até comida, arte, sustentabilidade e ditadura, o ciclo pretende mesclar diversos olhares para falar de diversidade, pluralidade e discriminação. “Cada mesa propõe uma abordagem diferente da intolerância, que é encarada de várias maneira”, avisa o curador, Luis Maffei.
Assim, o argentino Bruno Bimbi, que articulou o movimento pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina, vai dividir a mesa Ditaduras: da exceção à opressão, com o delegado Orlando Zaccone, cientista social especializado em exclusão, e Marcelo Godoy, autor de A casa da vovó, sobre os crimes praticados pela ditadura. Radicado no Rio de Janeiro e autor do livroCasamento igualitário, Bimbi acha perigosa a palavra tolerância quando se fala de discriminação. “Eu não gosto de usar o conceito de ‘tolerância’ nesse tipo de debates, porque a gente tolera aquilo que nos desagrada, que nos causa rejeição ou repugnância”, explica. O argentino ficou conhecido em seu país pela campanha pela aprovação da lei do casamento igualitário, mas também por ser um crítico contumaz do papa Francisco, que foi duro em relação aos homossexuais na época da aprovação da legislação. “Bom, na época do debate da lei de casamento igualitário, ele disse que o projeto de lei era uma manobra do Demônio para destruir a criação de Deus e convocou os cristãos a uma guerra ‘santa’ contra os direitos dos homossexuais. Eu acho que ele achou que se o casamento gay fosse aprovado pela primeira vez na América Latina no país onde ele era o chefe da igreja, ele perderia a chance de ser papa, que era o que ele queria”, garante Bimbi.
Consciência negra
Em Poesia e produção do pensamento, Maffei e poeta Zé Luis Rinaldi falam do papel dos versos na sociedade e Literatura e consciência negra é tema de bate-papo com a escritora mineira Conceição Evaristo, autora de romances sobre discriminação racial. Para Maffei, a contemporaneidade é multifacetada, mas duas de suas faces são muito claras: “Há o recrudescimento da intolerância em várias faces, com um crescimento preocupante da violência em nome da religião, mas, por outro lado, não se admite mais esse tipo de coisa como normal na dinâmica da sociedade”, Rinaldi aponta que o papel do escritor, quando se trata de intolerância, é pensá-la poeticamente e insistir na beleza. “Porque ela mata e é capaz de aniquilar a beleza e a riqueza humanas. Penso, entretanto, que não se trate apenas de combater`´ a intolerância, não basta apenas mantê-la sob o controle da tolerância. É necessário que o homem se disponha a um relacionamento positivo com a diferença”, diz.
Já o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Antonio Torres tem como missão falar da “fabulação do mundo na criação de imagens”, mas ele sabe que não será difícil aproximar esse tema da intolerância. A literatura reflete o mundo e Torres lembra do romance Enigmas da primavera, de João Almino, como uma leitura recente que trata da intolerância. No livro, um jovem brasileiro de origem muçulmana está a meio caminho da radicalização e do fundamentalismo religioso. O próprio Torres abordou a discriminação em Essa terra, no qual um personagem é vítima de violência homofóbica. O acadêmico observa com certo medo a onda de intolerância no Brasil. “O país vive uma onda horrível e de todo lado. É uma coisa que acho que é acirrada pela crise econômica, a crise econômica puxa coisas do arco-da-velha, sentimentos muito arcaicos. A gente assiste aqui a um conflito que a gente não sabe onde vai dar”, lamenta.
>> Três perguntas para Maria Rita Kehl
Qual o desafio de tratar do tema "intolerância" no Brasil?
Tratar do tema não é difícil. Difícil é praticar a tolerância. Não conheço nenhuma receita para isso. Mas gosto de uma frase inscrita em algum lugar da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST: "contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres". É diferente ser intransigente de ser intolerante; na intransigência, você admite a diferença que o outro representa; mas, se preciso, vai lutar para impedí-lo de te constranger ou te oprimir. Algum jovem (suponho que seja um jovem) que não conheço escreveu em muros da Vila Madalena: "Odeie seu ódio". Acho essa proposta um bom começo para qualquer projeto de convívio com a diferença. Não conseguimos evitar de sentir muita raiva de algumas atitudes, algumas posições políticas, alguns discursos que nos parecem perniciosos e burros. Mas se conseguirmos não adorar nosso ódio, já conquistamos uma pequena chance de pelo menos conseguir discutir com os defensores dessas posições e discursos. Ou, se isso for impossível, ignorá-los sem agredir. O que me preocupa é que hoje no Brasil existem setores que eu chamaria de "direita enraivecida" que parecem adorar seu ódio. Aí é que mora o perigo.
O país vive uma onda de intolerância? O que isso significa? E que contornos tem a intolerância hoje no Brasil?
Sim, posso chamar de "onda de intolerância" o sintoma social brasileiro, hoje. Mas talvez o melhor conceito seria o termo freudiano: "narcisismo das pequenas diferenças". Segundo a proposta que Freud utiliza para entender o antissemitismo na Alemanha dos anos 1930, o ódio social raramente se dirige àqueles que são radicalmente diferentes de mim. O ódio se volta contra os que ameaçam nosso "campo narcísico". Ou seja: os que são diferentes, mas não tanto quanto eu gostaria para conseguir me imaginar especial, superior a eles. Claro que existe a revolta dos muito ricos contra a perda de alguns privilégios, sobretudo com essa crise econômica de agora. Mas será que os muito ricos perdem privilégios? Bem antes disso, eles demitem seus empregados pobres, não é? E existe também a raiva da classe média que de repente tem que conviver com os ex-pobres que agora conseguem se aproximar dos espaços até então interditados a eles. A frase que ouvi uma vez em Congonhas - "esse aeroporto agora parece uma rodoviária" - expressa com muita nitidez esse tipo de intolerância. A família de classe média que considera um privilégio viajar de avião se vê, de repente, naquele espaço "diferenciado", lado a lado com pessoas realmente pobres que conseguiram, de algum jeito, comprar passagens aéreas. Essa proximidade excessiva com quem deveria "conhecer seu lugar" ameaça certezas arcaicas, até então exclusivas das elites, que a classe média a custo alcançou.
A palavra tolerância não é, em si, carregada de significados problemáticos
Penso que sim. Tolerar não é amar, não é admirar, não é nem ao menos respeitar, no sentido republicano da palavra. Tolerar é aguentar, a contragosto, a presença ou a opinião alheia. Por isso mesmo, acho a proposta da tolerância algo assim como o degrau mais baixo da cidadania - que ainda assim, nos separa da barbárie. A questão do convívio com o diferente não pode ser relegada ao campo dos afetos, das decisões subjetivas. Este é um campo escorregadio, sobre o qual os próprios sujeitos não têm tanto controle quanto se espera. Para isso existem regras, existem leis, e no limite existe a polícia (se a polícia for justa, o que já é outro problema no caso das polícias brasileiras, herança militarizada da ditadura de 1964-85). Os padrões de convívio cidadão não dependem do sujeito amar o semelhante/ desconhecido com quem ele divide o espaço público. Dependem de ele temer as consequências do desrespeito. Ocorre que o Brasil é um país desigual, em vários aspectos. Tem uma elite acostumada a ser obedecida e desacostumada a negociar até mesmo o espaço da calçada com os que não reconhece como de sua classe. Tem uma classe média que gostaria de poder se comportar como essa elite, e sempre que pode, faz isso. Tem um enorme contingente de pessoas pobres e muito pobres que, se você pensar bem, são respeitosos porque tem medo, ou sentem-se inferiores. E claro, como consequência dessas diferenças abissais entre direitos e deveres de uns e outros, tem um contingente de revoltados violentos - nem todos bandidos, atenção! mas dispostos a enfrentar conflitos com violência.